Porque vocês, irmãos, foram chamados à liberdade. Mas não usem a liberdade para dar ocasião à carne; pelo contrário, sejam servos uns dos outros, pelo amor. Porque toda a lei se cumpre em um só preceito, a saber: “Ame o seu próximo como a você mesmo.” Mas, se vocês ficam mordendo e devorando uns aos outros, tenham cuidado para que não sejam mutuamente destruídos.
O que significa a liberdade? Há diferentes reivindicações a respeito dela hoje. O capitalista, por exemplo, quer se ver livre do Estado, e o comunista quer se ver livre da exploração capitalista. Há também quem deseje a liberdade sexual e a liberdade para a comercialização e o consumo de drogas. O Presidente Roosevelt, em 1941, falou em “liberdade de falar em qualquer parte, liberdade de prestar culto em qualquer lugar, liberdade de miséria por toda parte, e liberdade do medo em qualquer lugar”. Que tipo de liberdade é a cristã?
Em primeiro lugar, é a liberdade de consciência, como vimos no versículo 1. Nenhuma pessoa é livre até que Cristo a liberte do sentimento de culpa. E Paulo escreveu que os crentes foram chamados para essa liberdade. Nossa vida cristã não começa com a decisão de seguir a Cristo, mas com o chamado divino para fazê-lo. Em sua graça, Deus tomou a iniciativa enquanto ainda estávamos mortos em nossos pecados. Nesse estado, nós não tínhamos o desejo de abandonar o pecado e abraçar a Cristo, muito menos a capacidade para tanto. Mas Cristo veio e nos fez livres! Paulo mesmo escreveu que Deus o “chamou pela sua graça” (Gl 1.15). E até mesmo os gálatas sabiam disso por experiência própria: “vocês estão passando tão depressa daquele que os chamou na graça de Cristo” (1.6).
Mas a imagem popular do cristianismo hoje não é de uma religião de liberdade, mas de uma servidão cruel e limitante. Por isso, nós, “irmãos” (v. 13) em Cristo, precisamos conhecer o sentido e as implicações dessa liberdade. O próprio Paulo foi acusado de ensinar uma espécie de anarquia moral em nome da liberdade. O que Paulo vai fazer aqui, então, é esclarecer as falsas interpretações a respeito da liberdade e protegê-la do abuso irresponsável. Para Paulo, ser livre é ser liberto da terrível servidão de buscar o merecimento do favor de Deus.
A “carne” no versículo 13 não é aquilo que reveste nosso esqueleto, mas a natureza caída do ser humano, aquela que herdamos de nossos pais e que foi distorcida pelo egocentrismo. Ou seja, não devemos usar a nossa liberdade cristã para satisfazer ou dar “ocasião à carne”. Aphorme (“ocasião”) é o lugar de onde parte uma ofensiva militar, significando, aqui, um local vantajoso. Assim, a nossa liberdade em Cristo não deve ser usada como pretexto para a autoindulgência, ou seja, para a nossa omissão. Como Judas escreveu: “certos indivíduos... transformam em libertinagem a graça de Deus” (v. 4). Pedro também escreveu: “Como pessoas livres que são, não usem a liberdade como desculpa para fazer o mal; pelo contrário, vivam como servos de Deus” (1Pe 2.16).
A liberdade cristã é liberdade do pecado, e não uma liberdade para se pecar. “Mas não deixem que essa liberdade se torne uma desculpa para permitir que a natureza humana domine vocês” (v. 13, NTLH). Ora, esse tipo de “liberdade”, uma licenciosidade, na verdade não é liberdade alguma, mas outra forma terrível de servidão, uma escravidão aos desejos de nossa natureza caída. “Todo o que comete pecado é escravo do pecado” (Jo 8.34), ensinou Jesus. E Paulo também advertiu que “nós também, no passado, éramos insensatos, desobedientes, desgarrados, escravos de todo tipo de paixões e prazeres” (Tt 3.3).
Em nossos dias vemos muitos escravos desse tipo. Eles proclamam em altas vozes a sua liberdade. Falam de amor livre e vida livre. Mas, na realidade, são escravos de seus próprios apetites, aos quais deram livre curso, simplesmente porque não conseguem controlá-los. O apóstolo Paulo aqui nos deixa uma regra infalível: “‘Todas as coisas me são lícitas’, mas nem todas convêm. ‘Todas as coisas me são lícitas’, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas” (1Co 6.24). Ora, os cristãos “crucificaram a carne, com as suas paixões e os seus desejos” (Gl 5.24).
“Pelo contrário, sejam servos uns dos outros, pelo amor” (v. 13). Onde estava o amor no discurso dos judaizantes, que tanto se preocupavam com a circuncisão e com dias, meses e anos (4.10), ou seja, com obras (Mt 12.1; Lc 13.14)? A liberdade cristã não é liberdade para fazer a minha vontade sem respeitar o bem-estar do meu próximo. Na verdade, longe de ter liberdade para ignorar, negligenciar ou abusar do próximo, devemos amá-lo e servi-lo. Nossa liberdade é para nos aproximarmos de Deus sem medo, não para sermos indiferentes para com os outros. Não podemos usar o próximo como se fosse uma coisa que nos servisse; precisamos respeitá-lo como pessoa a ser servida. O amor de Deus em nós leva a uma libertação de nós mesmos para amarmos aos outros, servindo-os como “escravos” (douleuete). “Não somos um senhor com uma porção de escravos, mas um escravo com uma porção de senhores” (Neill). A liberdade cristã é serviço, não egoísmo!
Essa verdade é paradoxal. Num certo sentido, a liberdade cristã é uma forma de escravidão, não para com a nossa carne, mas para com o nosso próximo. Somos livres em nosso relacionamento com Deus, mas escravos em nosso relacionamento com os outros. Esse é o significado do amor. Se nos amamos uns aos outros, servimos uns aos outros, e não nos “mordemos” ou “devoramos” (v. 15) com palavras e atos maliciosos. Essas atitudes destrutivas são mais próprias dos animais selvagens, ao passo que o amor é construtivo, pois ele serve. Mais adiante, Paulo vai descrever alguns sinais do amor: alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade etc (v. 22). Além disso, se nos amamos, levamos “as cargas uns dos outros” (Gl 6.2), pois o amor não é cobiçoso nem ganancioso. “Amar uma pessoa não é possuí-la para mim mesmo, mas servi-la para ela mesma” (Stott).
No versículo 14, Paulo não escreve que “se amamos uns aos outros podemos transgredir a lei”, como alegam alguns dos “novos moralistas”. Ao contrário, se amamos uns aos outros devemos cumprir a lei, pois ela se resume neste mandamento: “Ame o seu próximo como a você mesmo”. Lutero escreveu: “Paulo recomenda, portanto, aos gálatas e a todos os cristãos o amor, e os exorta a servir uns aos outros pelo amor. É como se dissesse: ‘Não é necessário sobrecarregar-vos com a circuncisão e as cerimônias de Moisés. Mas, antes de tudo, perseverai na doutrina da fé que de mim recebestes. Depois, se quereis praticar boas obras, mostrar-vos-ei, numa frase, as obras supremas e máximas e como podeis cumprir todas as leis: ‘Amai-vos mutuamente pelo amor’. Não faltarão aqueles, aos quais podereis fazer o bem. O mundo está cheio de homens que carecem do auxílio dos outros. É essa a doutrina absoluta da fé e do amor”.
Em outro lugar, Lutero escreve: “Se desejas saber de que modo o próximo deve ser amado e queres ter um exemplo brilhante desse tipo, observa, diligentemente, de que modo te amas a ti mesmo. Certamente, desejarias ansiosamente, na necessidade ou no perigo, ser amado e ajudado com todos os conselhos, recursos e forças, não somente por todos os homens, mas, também, por todas as criaturas. Por isso não careces de nenhum livro que te instrua ou admoeste de que modo deves amar o teu próximo, mas tens um livro belíssimo e ótimo de todas as leis no teu coração. Não necessitas de nenhum doutor nesse assunto; consulta apenas o teu próprio coração e este te ensinará, suficiente e abundantemente, que teu próximo deve ser amado assim como amas a ti mesmo. Além disso, o amor é a virtude suprema que não, apenas, está disposta a servir com a língua, com as mãos, com o dinheiro, com os bens, mas, também, com o corpo e a própria vida. Nem é motivada por méritos ou outros interesses nem se deixa embaraçar por desmerecimentos, ingratidão, etc. Uma mãe, por conseguinte, trata e cuida de seu filho, porque o ama”.
Conclusão:
Paulo escreve aos gálatas que somos chamados à liberdade, que significa que agora temos paz com Deus por meio da obra graciosa de Jesus Cristo, que purificou a nossa consciência de toda culpa, através da fé. Essa obra de amor divino, sem méritos nossos, se manifesta também em nossas atitudes de amor para com os nossos semelhantes, por meio do Espírito. A verdadeira liberdade cristã não permite que fiquemos escravos de nós mesmos, como no passado, submetidos aos impulsos da velha natureza humana, com toda a sua vaidade, egoísmo e indiferença. Ao contrário, fomos salvos para agora sermos de Deus e para servirmos ao próximo em amor, cumprindo a lei de Deus.
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