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Foto do escritorChristian Lo Iacono

A misericórdia é um teste - Série: O bom samaritano e a igreja | Parte III

E eis que certo homem, intérprete da Lei, se levantou com o objetivo de pôr Jesus à prova e lhe perguntou:

— Mestre, que farei para herdar a vida eterna?

26 Então Jesus lhe perguntou:

— O que está escrito na Lei? Como você a entende?

27 A isto ele respondeu:

— "Ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma, com todas as suas forças e todo o seu entendimento." E: "Ame o seu próximo como você ama a si mesmo."

28 Então Jesus lhe disse:

— Você respondeu corretamente. Faça isto e você viverá.

29 Mas ele, querendo justificar-se, perguntou a Jesus:

— Quem é o meu próximo?

30 Jesus prosseguiu, dizendo:

— Um homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos de alguns ladrões. Estes, depois de lhe tirar a roupa e lhe causar muitos ferimentos, retiraram-se, deixando-o semimorto.31 Por casualidade, um sacerdote estava descendo por aquele mesmo caminho e, vendo aquele homem, passou de largo.32 De igual modo, um levita descia por aquele lugar e, vendo-o, passou de largo.33 Certo samaritano, que seguia o seu caminho, passou perto do homem e, vendo-o, compadeceu-se dele.34 E, aproximando-se, fez curativos nos ferimentos dele, aplicando-lhes óleo e vinho. Depois, colocou aquele homem sobre o seu próprio animal, levou-o para uma hospedaria e tratou dele.35 No dia seguinte, separou dois denários e os entregou ao hospedeiro, dizendo: "Cuide deste homem. E, se você gastar algo a mais, farei o reembolso quando eu voltar."

36 Então Jesus perguntou:

— Qual destes três lhe parece ter sido o próximo do homem que caiu nas mãos dos ladrões?

37 O intérprete da Lei respondeu:

— O que usou de misericórdia para com ele.

Então Jesus lhe disse:

— Vá e faça o mesmo.


No sermão passado vimos como Jesus, diante do jovem rico, na verdade não "pegou pesado" demais, como se costuma pensar. É que o evangelho é o evangelho do reino, e, a menos que entreguemos nosso coração ao rei — a Jesus —, não o teremos entregado de verdade. O ministério de misericórdia, como vemos na história do bom samaritano, tem um custo, e nosso desejo de exercê-lo é um sinal decisivo de nossa submissão ao senhorio de Cristo.

 

Vimos também que o intérprete da lei sentiu a pressão do argumento do Senhor – “faça isto e você viverá” (Lc 10.28) –, pois, "querendo justificar-se, perguntou a Jesus: E quem é o meu próximo?" (v. 29). O que ele estava tentando fazer? Ele queria que Jesus definisse o segundo mandamento de tal forma que suas exigências se tornassem passíveis de serem alcançadas. Porém, Jesus procura nos tornar humildes quando mostra o amor que Deus requer, de modo que fiquemos desejosos de receber o amor que Deus oferece.

 

A misericórdia é um teste

 

Tiago e João usam o ministério de misericórdia como um teste. O apóstolo João escreve sua primeira carta para expor o teste que revela o cristão genuíno. Um dos testes do amor cristão é o ministério de misericórdia. A comunhão cristã deve ser caracterizada por suprir as necessidades físicas: “Ora, se alguém possui recursos deste mundo e vê seu irmão passar necessidade, mas fecha o coração para essa pessoa, como pode permanecer nele o amor de Deus? 18 Filhinhos, não amemos de palavra, nem da boca para fora, mas de fato e de verdade (1Jo 3.17,18; v. 17, NTLH: “...como pode afirmar que, de fato, ama a Deus?”).

 

O amor verdadeiro é demonstrado tanto por obras quanto por palavras. Tiago conclui que a profissão de fé desacompanhada de obras de misericórdia demonstra que essa fé é "morta"; não é nada verdadeira (Tg 2.13-17): “Porque o juízo é sem misericórdia sobre quem não usou de misericórdia. A misericórdia triunfa sobre o juízo. A fé sem obras é morta 14 Meus irmãos, qual é o proveito, se alguém disser que tem fé, mas não tiver obras? Será que essa fé pode salvá-lo? 15 Se um irmão ou uma irmã estiverem com falta de roupa e necessitando do alimento diário, 16 e um de vocês lhes disser: ‘Vão em paz! Tratem de se aquecer e de se alimentar bem’, mas não lhes dão o necessário para o corpo, qual é o proveito disso? 17 Assim, também a fé, se não tiver obras, por si só está morta”.

 

Em Provérbios 14.31 e 19.17 aprendemos que, se ignorarmos as necessidades do pobre, estamos pecando contra o Senhor. Dessa forma, os pobres e necessitados nos servem de prova. Nossa atitude para com eles prova a autenticidade de nossa fé em Deus.

 

Nenhum texto é mais claro nesse aspecto do que Mateus 25.31-46, que descreve a avaliação que Jesus fará da humanidade no Dia do Juízo. Ele diferenciará os que têm fé verdadeira daqueles que não têm, e fará isso ao avaliar seus frutos, ou seja, sua preocupação com os pobres, os sem-teto, os doentes e os encarcerados. Vejamos o que diz Mateus 25.31-46:

 

— Quando o Filho do Homem vier na sua majestade e todos os anjos com ele, então se assentará no trono da sua glória. 32 Todas as nações serão reunidas em sua presença, e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos: 33 porá as ovelhas à sua direita e os cabritos, à sua esquerda. 34 — Então o Rei dirá aos que estiverem à sua direita: "Venham, benditos de meu Pai! Venham herdar o Reino que está preparado para vocês desde a fundação do mundo. 35 Porque tive fome, e vocês me deram de comer; tive sede, e vocês me deram de beber; eu era forasteiro, e vocês me hospedaram; 36 eu estava nu, e vocês me vestiram; enfermo, e me visitaram; preso, e foram me ver." 37 — Então os justos perguntarão: "Quando foi que vimos o senhor com fome e lhe demos de comer? Ou com sede e lhe demos de beber? 38 E quando foi que vimos o senhor como forasteiro e o hospedamos? Ou nu e o vestimos?39 E quando foi que vimos o senhor enfermo ou preso e fomos visitá-lo?" 40 — O Rei, respondendo, lhes dirá: "Em verdade lhes digo que, sempre que o fizeram a um destes meus pequeninos irmãos, foi a mim que o fizeram." 41 — Então o Rei dirá também aos que estiverem à sua esquerda: "Afastem-se de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. 42 Porque tive fome, e vocês não me deram de comer; tive sede, e vocês não me deram de beber; 43 sendo forasteiro, vocês não me hospedaram; estando nu, vocês não me vestiram; achando-me enfermo e preso, vocês não foram me ver." 44 — E eles lhe perguntarão: "Quando foi que vimos o senhor com fome, com sede, forasteiro, nu, enfermo ou preso e não o socorremos?" 45 — Então o Rei responderá: "Em verdade lhes digo que, sempre que o deixaram de fazer a um destes mais pequeninos, foi a mim que o deixaram de fazer." 46 E estes irão para o castigo eterno, porém os justos irão para a vida eterna.

 

Quando Jesus afirma: " ... sempre que o fizeram a um destes meus pequeninos irmãos, foi a mim que o fizeram" (v. 40), ele está ampliando o que é dito em Provérbios 19.17 ("Quem se compadece do pobre empresta ao SENHOR..."). Também está concordando com Tiago, João e Isaías (1.10-17), ao dizer que uma consciência social sensível e uma vida dedicada a obras de misericórdia aos necessitados são resultado inevitável e marca da fé verdadeira. Por essas obras, Deus diferencia o amor genuíno do falso, este que só existe "da boca para fora". Vejamos o que diz Isaías 1.10-17:

 

Príncipes de Sodoma, escutem a palavra do Senhor! Povo de Gomorra, dê ouvidos à lei do nosso Deus! 11 O Senhor diz: "De que me serve a multidão dos sacrifícios que vocês oferecem? Estou farto dos holocaustos de carneiros e da gordura de animais cevados. Não me agrado do sangue de novilhos, nem de cordeiros, nem de bodes. 12 Quando comparecem diante de mim, quem requereu de vocês esse pisotear dos meus átrios? 13 Não me tragam mais ofertas vãs! O incenso é para mim abominação, e também as Festas da Lua Nova, os sábados e a convocação das assembleias. Não posso suportar iniquidade associada à reunião solene. 14 As Festas da Lua Nova e as solenidades, a minha alma as odeia; já são um peso para mim; estou cansado de suportá-las." 15 "Quando vocês estendem as mãos, eu fecho os meus olhos; sim, quando multiplicam as suas orações, não as ouço, porque as mãos de vocês estão cheias de sangue. 16 Lavem-se e purifiquem-se! Tirem da minha presença a maldade dos seus atos; parem de fazer o mal! 17 Aprendam a fazer o bem; busquem a justiça, repreendam o opressor; garantam o direito dos órfãos, defendam a causa das viúvas."

 

Imagine uma senhora idosa muito rica, sem herdeiros, a não ser um sobrinho que é muito bondoso com ela. Como ter certeza de que a bondade do rapaz não é só de fachada? Como saber o que está no coração dele? Ela, então, disfarça-se de moradora de rua e senta-se na escada que leva ao sobrado do rapaz. Quando este aparece, ele xinga e ameaça a mulher. Então ela se depara com o verdadeiro caráter do sobrinho! Da mesma forma, Deus se enfurece quando temos uma cara para ele e outra para os necessitados. (Is 1.15-17: "‘Quando vocês estendem as mãos, eu fecho os meus olhos; sim, quando multiplicam as suas orações, não as ouço, porque as mãos de vocês estão cheias de sangue. 16 Lavem-se e purifiquem-se! Tirem da minha presença a maldade dos seus atos; parem de fazer o mal! Aprendam a fazer o bem; busquem a justiça, repreendam o opressor; garantam o direito dos órfãos, defendam a causa das viúvas’"). É como se Jesus dissesse: "Eu sou aquela sem-teto em sua escada; sua maneira de tratá-la me revela como você é de verdade".

 

Há 150 anos, Robert Murray M'Cheyne, notável pregador, comentou o texto de Mateus 25 com sua igreja: “Cristãos, temo que alguns de vocês não ouvirão Cristo lhes dizer tal coisa ("Vinde, benditos [...] Possuí por herança o reino", em Mateus 25.34). Suas residências luxuosas se erguem no meio de milhares de pessoas que mal têm como acender um fogo para se aquecer e que têm poucas roupas para se proteger do frio mordaz; contudo, vocês nunca procuraram ajudá-las. Talvez suspirem de longe, mas não as visitam. Ah, meus caros amigos! Preocupo-me com os pobres; entretanto, eu me preocupo muito mais com vocês. Não sei o que Cristo lhes dirá naquele grande dia [...] Temo que muitos de vocês que estão aqui hoje sabem (agora) muito bem que não são cristãos, pois não gostam de ofertar. Ofertar generosamente, sem má vontade, exige um coração novo; o coração velho prefere ficar sem o sangue que lhe dá vida, mas não sem o seu dinheiro. Ah, meus amigos! Usufruam de sua riqueza; aproveitem bem o seu dinheiro; não deem sequer um centavo a ninguém; mas usem-no rapidamente, pois uma coisa eu lhes digo: vocês esmolarão por toda a eternidade.” (citado por Timothy Keller).

 

A misericórdia não é novidade

 

O ensinamento bíblico sobre o ministério de misericórdia não teve início com a Parábola do Bom Samaritano. A primeira "missão" dada ao homem foi a de sujeitar e dominar a terra (Gn 1.28). Vemos que Gênesis 2.15 reafirma essa comissão na perspectiva de "cultivar e guardar" o jardim de Deus. A ideia do ser humano como jardineiro é bastante sugestiva: o jardineiro não destrói a natureza nem a deixa como está. Ele a cultiva e a desenvolve, realçando sua beleza, utilidade e fecundidade. Digo isso, inclusive, para todas as áreas desta Igreja! Deus espera que seus servos coloquem a criação toda debaixo de seu senhorio. Ciência, engenharia, artes, educação, governo, tudo faz parte dessa responsabilidade. Devemos colocar cada aspecto da vida, tanto espiritual quanto material, sob o governo e a lei de Deus.

 

Obviamente, antes da queda do ser humano, não existia nenhum "ministério de misericórdia" como existe hoje, porque não havia sofrimento nem necessidades. Mas é evidente que os servos de Deus daquela época se preocupavam tanto com o mundo físico/material quanto com o espiritual. Depois da Queda, um dos efeitos do pecado foi a fragmentação imediata nos relacionamentos humanos. O ser humano se afastou de Deus (Gn 3.10). Como resultado, seu relacionamento com outros seres humanos também foi abalado (v. 12, 13), e o mesmo aconteceu em seu relacionamento com a natureza (v. 17, 18). Agora a doença, a fome, os desastres naturais, a injustiça social e a morte dominam a terra.

 

O primeiro ato do ministério de misericórdia aconteceu logo após a Queda: Deus cobriu Adão e Eva com peles de animais (Gn 3.21). Muitos dizem que essa atitude representa nossos pecados sendo cobertos pela obra de Cristo, mas certamente esse não foi o único motivo para o gesto de Deus. Agora o ser humano precisa de proteção contra o ambiente hostil. Com esse cuidado de Deus, Derek Kidner afirma que "a ação social não poderia ter tido um início mais imediato nem mais sublime".

 

Antes mesmo de entregar a lei a Moisés, Deus revelou sua vontade no que diz respeito ao ministério de misericórdia. Jó, que viveu numa era pré-mosaica, já sabia que a justiça de Deus inclui prover alimento, abrigo e vestimenta ao necessitado (Jó 24.1-21; 31.16-23). Na verdade, Jó afirma que fazia mais do que um mero serviço social: "Era pai dos necessitados e até as causas dos desconhecidos eu examinava. 17 Eu quebrava os queixos dos iníquos e arrancava as vítimas dos dentes deles’" (29.16,17).

 

Quando Deus entregou a lei a Moisés, ele estava construindo uma comunidade de fé em que a justiça social era tão obrigatória quanto a justiça pessoal e os padrões morais. Os israelitas eram proibidos de colher toda a plantação de seus campos, para que o pobre respigasse de graça (Êx 23.10-11). Deus mandou que eles doassem aos pobres até que estes não tivessem mais necessidade (Dt 15.7-11), especialmente se o pobre fosse um parente ou vizinho (Lv 25.25,35-38). O dízimo entregue a Deus era usado pelos sacerdotes para ajudar os pobres (Dt 14.28-29).

 

A lei de Deus exigia que o pobre recebesse mais do que uma simples "esmola”. Quando um escravo ficava livre da dívida e da servidão, ele não poderia ser mandado embora de mãos vazias; deveria receber trigo ou um rebanho do antigo senhor para que se tornasse independente financeiramente (Dt 15.12-15).

 

Essas leis dadas a Moisés foram o alicerce para a ira dos profetas posteriores, que denunciaram a insensibilidade de Israel em relação aos pobres como quebra da aliança com Deus. Eles ensinaram que o materialismo e o descaso com o infortúnio do pobre eram pecados tão repugnantes quanto a idolatria e o adultério (Am 2.6,7). Ter misericórdia do pobre é uma evidência do verdadeiro compromisso com Deus (Is 1.10-17; 58.6,7 (jejum); Am 4.1-6; 5.21-24). Por fim, os profetas anunciaram que o Messias, quando viesse, seria conhecido por sua misericórdia no trato com os pobres (Is 11.1-4; 61.1,2).

 

O evangelho para os pobres

 

Jesus escolheu Isaías 61 como texto de seu primeiro sermão. Para provar que é o Messias, ele enfatiza que prega aos pobres (Mt 11.1-6). Ao se tornar humano, Jesus "tornou-se pobre" literalmente (2Co 8.9). Ele nasceu em uma família que ofereceu pombinhos em sua circuncisão (Lc 2.24; Lv 12.8), oferta prescrita para as famílias mais pobres. Jesus conviveu, comeu e andou com leprosos e marginalizados, as classes mais baixas de então. Ele ensinou que todos os seres humanos são espiritualmente pobres (Mt 5.3) e estão em trapos diante de Deus (Is 64.6).

 

Assim como ele, que oferece as riquezas da salvação aos pobres em espírito, nós devemos fazer o bem aos perversos e ingratos, até mesmo a nossos inimigos: “Vocês, porém, amem os seus inimigos, façam o bem e emprestem, sem esperar nada em troca; vocês terão uma grande recompensa e serão filhos do Altíssimo. Pois ele é bondoso até para os ingratos e maus. 36 Sejam misericordiosos, como também é misericordioso o Pai de vocês” (Lc 6.35-36).

 

Vemos as palavras de Jesus e dos profetas refletidas no ensino e na prática da igreja primitiva. Os cristãos devem abrir o coração para os irmãos que estejam em necessidade (1Jo 3.16,17; Dt 15.7,8). Na igreja, a riqueza deve ser compartilhada tão generosamente a ponto de diminuir a desigualdade entre ricos e pobres (cf. 2Co 8.13-15 com Lv 25). Tiago (2.1-23) segue os profetas e Jesus ao ensinar que a fé genuína se mostrará inevitavelmente nas obras de misericórdia (Is 1.10-17).

 

Os cristãos são admoestados a se lembrar dos pobres (G1 2.10), das viúvas e dos órfãos (Tg 1.27), a hospedar desconhecidos (Hb 13.2) e a condenar o materialismo (1Tm 6.17-19). Embora eles devam ajudar mais e em primeiro lugar os necessitados da igreja, devem também ser misericordiosos para com todas as pessoas (Gl 6.10). Todos esses ensinos emanam diretamente da revelação do AT.

 

Essas responsabilidades são de todos os cristãos; porém, uma categoria especial de líderes — os diáconos — é designada para coordenar o ministério de misericórdia da igreja. Isso mostra que a misericórdia, tanto quanto o ministério da Palavra e a disciplina, é uma obra comissionada à igreja (cf Rm 15.23-29 – pobres da Judeia).


Assita o sermão completo no Youtube:



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