27 — Digo, porém, a vocês que me ouvem: amem os seus inimigos, façam o bem aos que odeiam vocês.
28 Abençoem aqueles que os amaldiçoam, orem pelos que maltratam vocês.
29 Ao que lhe bate numa face, ofereça também a outra; e, ao que lhe tirar a capa, deixe que leve também a túnica.
30 Dê a todo o que lhe pedir alguma coisa; e, se alguém levar o que é seu, não exija que seja devolvido.
31 Façam aos outros o mesmo que vocês querem que eles façam a vocês.
32 — Se vocês amam aqueles que os amam, que recompensa terão? Porque até os pecadores amam aqueles que os amam.
33 Se fizerem o bem aos que lhes fazem o bem, que recompensa terão? Até os pecadores fazem isso.
34 E, se emprestam àqueles de quem esperam receber, que recompensa terão? Também os pecadores emprestam aos pecadores, para receberem outro tanto.
35 Vocês, porém, amem os seus inimigos, façam o bem e emprestem, sem esperar nada em troca; vocês terão uma grande recompensa e serão filhos do Altíssimo. Pois ele é bondoso até para os ingratos e maus.
36 Sejam misericordiosos, como também é misericordioso o Pai de vocês.
Lucas 6.27-36
No sermão passado vimos que o alcance da misericórdia exercida pelo samaritano é amplo: as necessidades física, financeira e emocional da vítima foram atendidas. "A graça se aplica à questão do mérito humano; mas a misericórdia se aplica à questão da aflição humana". E anunciar o reino de Deus é mais do que ganhar almas para Cristo. Envolve também trabalhar para a cura de pessoas, famílias, relacionamentos e nações; implica realizar obras de misericórdia e buscar a justiça.
Necessidades que as pessoas sentem
Vemos, então, que a igreja deve ser um agente do reino. Isso significa que as necessidades resultantes de alienação social e física são uma preocupação do cristão de forma individual, bem como da igreja de forma coletiva. Para entender que a necessidade mais profunda do coração humano é a comunhão com Deus, é preciso a iluminação do Espírito Santo. Mas qualquer um pode reconhecer em si mesmo e nos outros a necessidade de alimento, roupa, tratamento médico ou amizade. Vemos, então, que essas necessidades são aquelas que as pessoas percebem ou "sentem".
É importantíssimo entender que essas necessidades que as pessoas "sentem" são uma porta para as necessidades fundamentais. Na verdade, Charles Kraft acredita que as necessidades que as pessoas sentem são a base da comunicação: “O processo de interação comunicacional baseado nas necessidades que as pessoas sentem geralmente resulta em dois processos contínuos. Primeiro, algumas dessas necessidades são resolvidas. Depois vêm à tona as necessidades mais profundas, que a princípio não foram alvo da interação por não serem percebidas ou porque o receptor não estava aberto em relação a elas.”
Vejamos um exemplo. Começar um sermão desta forma pode ser tedioso: "Neste momento, eu gostaria de apresentar um estudo sobre a doutrina bíblica da soberania de Deus". A forma a seguir pode ser bem mais interessante: "Muitos de vocês devem ter passado a semana bastante preocupados com alguma coisa, não é? A Bíblia explica exatamente quais são as causas da preocupação e a maneira mais apropriada de lidar com elas". Por que o impacto é diferente? O último exemplo conecta a mensagem a uma necessidade que as pessoas sentem.
Os que não são cristãos não necessariamente se comovem ao ver cristãos suprindo as necessidades teológicas e psicológicas das pessoas. Não conseguem entender a atitude porque eles mesmos não sentem a necessidade. Mas, mesmo não sendo cristãos, sentem necessidades físicas. Quando veem cristãos alimentando um faminto, limpando uma casa, confortando quem sofre, ajudando financeira e fisicamente os mais fracos, as pessoas que não são cristãs testemunham o nosso servir. Por meio dele, corações podem ser tocados para Cristo.
Não se trata de uma simples teoria "moderna" da comunicação. Seu modelo é a própria encarnação. As pessoas não conseguiam suportar Deus falando diretamente com elas (Êx 20.18-21). Deus adaptou seu modo de se comunicar às necessidades e à capacidade dos ouvintes, sem, contudo, comprometê-lo. A glória de Deus, inacessível a Moisés (Êx 33), é agora comunicada a nós por meio do Deus-homem, Jesus Cristo (Jo 1.14). Ele se tornou um de nós.
Ministério de obras
Outra característica dessas necessidades é que elas são satisfeitas mais por obras do que por palavras. Se fosse necessário, o bom samaritano poderia ter desempenhado seu ministério sem dizer uma palavra. As necessidades situadas mais em nosso interior precisam mais do ministério da palavra, enquanto as necessidades situadas mais em nosso exterior precisam mais do ministério de obras mencionado em Tiago 2.17 e em 1João 3.18.
Um estudo dos dons espirituais relacionados no Novo Testamento mostra que eles estão divididos em duas categorias básicas: "dons da palavra", exercidos especialmente por meio de habilidades verbais, e "dons de obras", desempenhados principalmente por meio do serviço ativo. Jesus era poderoso em obras e palavras (Lc 24.19); da mesma forma, o ministério da igreja tem duas frentes.
A palavra-chave do Novo Testamento para o ministério de obras é diakonia, geralmente traduzida na Bíblia como "servir". A raiz da palavra significa alimentar alguém servindo-lhe à mesa. Encontramos um exemplo em Lucas 10.40, em que Marta prepara uma refeição para Jesus. Outro exemplo é um grupo de mulheres que acompanhavam Jesus e os apóstolos, providenciando alimento e cuidando de outras necessidades físicas; esse ministério é chamado diakonia (Mt 27.55; Lc 8.3). No livro de Atos, a tarefa de prover as necessidades diárias das viúvas da igreja primitiva também é chamada diakonia (6.2).
A importância do ministério de obras é observada em dois textos bíblicos: Lucas 22.24-27 e 1João 3.17,18. Em Lucas 22, Jesus pergunta: "Pois qual é maior: aquele que está à mesa ou aquele que serve? [diakonia]?". A pergunta é digna de nota, pois, na escala de valores da cultura grega da época, servir a alguém era considerado terrivelmente degradante. Platão afirmou: "Como alguém pode ser feliz quando tem de servir a outra pessoa?". Jesus, então, faz uma declaração surpreendente, dizendo que a grandeza cristã é o oposto do conceito do mundo: " ... no meio de vocês eu sou como quem serve [diakonia] (v. 27)."
Um diakonos! Alguém que ajuda a servir e limpar mesas! Esse é o modelo cristão de grandeza e o modelo da obra de Cristo. Ele veio prestar o serviço mais humilde e básico. Ah, como somos cuidadosos em desejar o serviço do reino ligado à Palavra ou que nos coloque sob os holofotes! Mas não menos importante ao trabalho da igreja é o ministério de obras que atende às necessidades físicas mais básicas por meio do trabalho mais "servil".
Lemos em 1João 3.17,18: “Ora, se alguém possui recursos deste mundo e vê seu irmão passar necessidade, mas fecha o coração para essa pessoa, como pode permanecer nele o amor de Deus? 18 Filhinhos, não amemos de palavra, nem da boca para fora, mas de fato e de verdade.” João está afirmando com ousadia que amar só de palavra não é amar de verdade. "Amar" significa oferecer ao semelhante o que ele necessita. Às vezes precisamos de palavras para fazer isso; muitas vezes precisamos de ações. Não podemos limitar nosso amor apenas às necessidades espirituais; devemos estendê-lo também às necessidades que as pessoas sentem. Negligenciar essas necessidades não significa "amar pela metade", significa não amar de jeito nenhum.
Como a Bíblia julga uma família ou igreja que diz: "Nossa tarefa é simplesmente pregar o evangelho", e que não se envolve em "questões sociais"? O ministério de misericórdia é essencial para o amor e o estilo de vida cristãos. Embora o ministério de misericórdia volte seu foco para as necessidades materiais, ele ministra espiritualmente às necessidades materiais! Tem no doador uma motivação espiritual e causa um impacto espiritual no receptor.
A motivação para a misericórdia
“... e, vendo-o, compadeceu-se dele” (Lc 10.33).
Já observamos nesta série de sermões que, com frequência, Deus usa o ministério de misericórdia como teste da fé verdadeira (Mt 25.31-46; Is 1.10-17; Tg 2.1-26). Mas por quê? Como a fé verdadeira nos levará, inevitavelmente, a uma consciência sensível aos necessitados? Isso traz à tona a motivação principal do cristão para o ministério de misericórdia. O que exatamente na fé cristã nos impulsiona a cuidar dos necessitados? É simplesmente um senso de dever? Ou um sentimento de culpa? Qual é a verdadeira mola propulsora da misericórdia?
O evangelho da graça
Já sabemos que o doutor da lei que confrontou Jesus em Lucas 10 era um legalista. Ele achava que seus esforços morais lhe angariavam os favores de Deus. Ele era justificador de si mesmo – “...querendo justificar-se...” (Lc 10.29). Jesus, por outro lado, quis mostrar ao homem sua insuficiência; para tanto, o Mestre lhe apresentou um retrato do amor exigido pela lei de Deus.
A Parábola do Bom Samaritano é tão conhecida que muito facilmente podemos deixar de perceber a intenção de Jesus. O Senhor queria desconcertar o doutor da lei com a imagem de um amor altruísta tão sublime ao ponto do impossível! “Como é impossível imaginar um etíope mudando a cor de sua pele ou uma zebra trocando suas listras, assim é impossível imaginar um samaritano auxiliando um judeu... ‘Um católico irlandês cai nas mãos de ladrões, e um protestante irlandês se aproxima para ajudá-lo. Um senhor de terras branco cai nas mãos de bandidos, e um líder revolucionário negro corre em seu auxílio. É isso que a lei de Deus exige de você’” (Michael Wilcock).
Jesus queria mostrar ao doutor da lei, que se considerava espiritualmente rico, que ele na verdade era espiritualmente falido. Declarar falência é se declarar incapaz de pagar as próprias dívidas. Significa que não se tem mais recurso nenhum. É desesperador! Mas Jesus afirma que a pessoa que chegar a tal situação é "bem-aventurada". "Bem-aventurados os pobres em espírito, pois deles [de ninguém mais] é o reino do céu" (Mt 5.3). D. M. Lloyd-Jones explica claramente essa bem-aventurança:
“[Ser pobre em espírito] Significa ausência total de orgulho, ausência completa de autoconfiança e de autodependência; é estarmos conscientes de que não somos nada aos olhos de Deus. Portanto, essa bem-aventurança não é fruto do esforço nosso; de nada que possamos fazer por nós mesmos. É apenas o reconhecimento de nossa absoluta inutilidade quando nos colocamos perante Deus. Ser pobre em espírito é isso.”
Vemos, então, que o verdadeiro objetivo de Jesus era mostrar ao doutor da lei que este era pobre e capacitá-lo a buscar riquezas espirituais na misericórdia de Deus. Isaías afirma que nossas melhores obras são como "trapo da imundícia" (64.6). Em outras palavras, nossas melhores obras seriam como os panos manchados pelo sangue menstrual. Contaminados, eles são inúteis: “Liberações corporais ligadas à procriação eram consideradas uma contaminação porque estavam muito vitalmente associadas à vida humana caída. Até mesmo nossos atos de justiça, o que poderíamos considerar estar a nosso favor, fluem de uma natureza caída e compartilham seu caráter caído” (Alec Motyer).
Ou seja, nossas melhores obras nos deixam como "um impuro", um leproso de rua, aos olhos de Deus. Imagine um mendigo dos mais sujos e malcheirosos, vagando pela cidade vestido de trapos. O homem está praticamente caduco. Não tem recurso nenhum. Nele nada é digno de elogio. É isso que todos somos aos olhos de Deus, diz Isaías. É possível que Jesus quisesse mostrar ao doutor da lei sua situação de total desamparo, ao retratá-lo como o homem quase morto à beira da estrada.
Para que evangelho, então, Jesus está preparando o doutor da lei? Para este: apesar de estarmos deitados no próprio sangue, falidos e perdidos espiritualmente, Deus nos preparou uma riqueza espiritual. Ele empobreceu seu Filho para que as riquezas espirituais e a justiça do Filho fossem entregues aos que nele creem.
Paulo fala dessa transação feita pelo evangelho em 2Coríntios 5.21, quando diz: "Aquele que não conheceu pecado, Deus o fez pecado por nós, para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus". Mais tarde, o apóstolo explica isso em linguagem financeira: "Pois vocês conhecem a graça do nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, se fez pobre por amor de vocês, para que, por meio da pobreza dele, vocês se tornassem ricos" (2Co 8.9). Estávamos sentados em um monte de excrementos: “Mas o que para mim era lucro, isto considerei perda por causa de Cristo. Considero tudo como perda, por causa da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele perdi todas as coisas e as considero como lixo [skybala: termo vulgar para excrementos humanos ou restos de alimentos destinados ao lixo], para ganhar a Cristo” (Fp 3.7-8). Mas Deus, pela sua graça, nos vestiu de trajes reais e sentou-nos à mesa de seu banquete. O que significa, então, o evangelho da graça? Significa que, embora sejamos pobres, Deus nos faz ricos por intermédio da misericórdia divina.
A graça e os marginalizados
O evangelho da graça tem dois efeitos poderosos na pessoa por ele alcançada. Em primeiro lugar, aquele que sabe ter recebido graça quando não passava de um desprezível inimigo de Deus amará de coração até mesmo (e especialmente!) as pessoas mais ingratas e de difícil trato. Quando um cristão se depara com prostitutas, bêbados, prisioneiros, viciados, mães solteiras, pessoas sem-teto, refugiados, ele sabe que está se olhando no espelho. Talvez esse cristão faça parte da respeitável classe média desde que nasceu. Não importa. Ele pensa: "Do ponto de vista espiritual, eu era exatamente igual a essas pessoas, embora física e socialmente nunca tenha estado na situação em que se encontram. Elas são marginalizadas. Eu fui um marginalizado."
A preocupação de muitas pessoas é ajudar somente os pobres que realmente "merecem" receber ajuda. É verdade que nossa ajuda deve levar a pessoa a se tornar independente. Também é verdade que não somos obrigados a cuidar dos pobres de fora da igreja da mesma forma que devemos ajudar um irmão necessitado. No entanto, precisamos ter muito cuidado ao usar a palavra "merecedor" quando falamos em misericórdia. Será que nós merecíamos a misericórdia de Deus? Se alguém fosse grande merecedor, será, então, que nossa ajuda seria misericórdia de verdade?
Há séculos, Jonathan Edwards escreveu um folheto respondendo às objeções das pessoas quanto à responsabilidade dos cristãos de serem caridosos. Uma das objeções era: "Por que eu deveria ajudar uma pessoa que ficou na miséria em consequência do próprio pecado?" Edwards respondeu o seguinte: “Se a pessoa ficou na miséria pelo ócio vicioso e pelo esbanjamento, mesmo assim não estamos desobrigados de ajudá-la, a não ser que continue nesses vícios [...] Se agimos de outra forma, somos totalmente contrários à ordem de amarmos uns aos outros como Cristo nos amou. Cristo nos amou, apiedou-se de nós, e de maneira grandiosa se entregou para nos libertar da carência e da miséria que causamos a nós mesmos com nossa tolice e maldade. De maneira insensata e danosa desperdiçamos as riquezas que nos foram providas, com as quais teríamos vivido e sido felizes por toda a eternidade.”
O cristão que compreende a graça não desiste precipitadamente de um necessitado "indigno". A misericórdia de Cristo não foi baseada em merecimentos; foi concedida para nos tornar dignos. Assim também, nosso gesto de misericórdia não pode ser estendido somente a quem satisfaz certo padrão de merecimento.
Em nenhum outro texto bíblico esse princípio é ensinado de modo tão contundente quanto em Lucas 6.32-36. Nesses versículos, Jesus fala sobre amarmos nossos inimigos. Ele é bem explícito ao dizer que esse amor deve ser mostrado em ações: temos de lhes conceder empréstimo quando necessitarem (v. 33,34) e lhes "fazer o bem" (v. 33,35), "[...] e serão filhos do Altíssimo. Pois ele é bondoso até para os ingratos e maus. Sejam misericordiosos, como também é misericordioso o Pai de vocês" (v. 35b,36). Deus estende misericórdia ao ingrato e ao perverso – exatamente o que nós também éramos. Seremos iguais ao nosso Pai celeste se estendermos misericórdia a pessoas desse tipo.
Em Mateus 18.21-25, Jesus conta uma parábola que torna esse princípio ainda mais convincente. Ele fala de um rei que perdoou um servo que lhe devia dez mil talentos. Como um talento representava mais de quinze anos de salário de trabalho braçal, é evidente que Jesus usa essa quantia para ilustrar uma soma infinita, uma dívida impossível de ser paga. Depois de o servo ser perdoado, ele encontra outro servo que lhe deve uma pequena quantia de dinheiro. O segundo servo implorou por paciência, exatamente como o primeiro havia feito com rei, mas o servo perdoado não quis saber de conversa. Quando o rei fica sabendo da história, ele chama o servo perdoado e, enfurecido, pergunta-lhe: "Será que você também não devia ter compaixão do seu conservo, assim como eu tive compaixão de você?" (v. 33). O propósito de Jesus na parábola é ensinar o princípio do perdão incondicional (v. 22,35). O ministério de misericórdia tem a mesma motivação e lógica: a graça de Deus.
Agora entendemos por que Jesus (e também Isaías, Tiago, João e Paulo) usa o ministério de misericórdia para diferenciar o cristianismo verdadeiro do falso. Uma pessoa meramente religiosa, que acha que Deus irá abençoá-la por causa de seu elevado padrão moral e de sua respeitabilidade, geralmente sente desprezo pelos marginalizados. "Eu trabalhei duro para chegar aonde cheguei; que os outros façam o mesmo!" — é assim que o coração moralista se expressa. "Cheguei aonde cheguei simplesmente pela misericórdia imerecida de Deus. Sou igualzinho a qualquer outra pessoa" — é assim que o coração do cristão se expressa. Uma consciência social aguçada e uma vida entregue a obras de misericórdia aos necessitados são marcas inevitáveis da pessoa que de fato entendeu a doutrina da graça de Deus.
Graça e generosidade
O segundo efeito poderoso do evangelho da graça de Deus sobre alguém é a generosidade espontânea. O sacerdote e o levita seguiram adiante apesar da ordem bíblica para que ajudassem um compatriota. Contudo, ninguém esperava que um samaritano agisse com misericórdia. Um dos motivos de Jesus colocar um samaritano na história é que ele, em virtude de sua raça e história, não tinha obrigação nenhuma de parar e prestar socorro. Nenhuma lei, nenhuma convenção social, nenhum mandamento religioso ordenava que ele prestasse ajuda. Mesmo assim, ele parou para ajudar. Por quê? O versículo 33 diz que ele se encheu de compaixão.
A mensagem é claríssima! Como Edmund Clowney explicou, "Deus exige o amor que não se pode exigir". Exercer misericórdia é um mandamento. Contudo, a misericórdia não pode ser resposta a um mandamento; ela é a generosidade que transborda em resposta à misericórdia que recebemos de Deus.
Em geral, livros e pregadores ensinam que os cristãos, por possuírem tanto, devem ajudar os necessitados. Claro que isso é verdade. Se os seres humanos querem viver juntos na terra, o bom senso diz que devem sempre compartilhar os recursos existentes. Então, ao lermos as estatísticas sobre quanto usamos dos recursos mundiais, é natural nos preocuparmos com os menos favorecidos.
Contudo, essa abordagem é muito limitada em seu poder de motivação. Ela acaba sendo fonte de culpa, porque acusa: "Como você é egoísta! Tanta gente morrendo de fome neste mundo, e você, aí, com dois carros na garagem e comendo filé mignon!". Isso gera enormes conflitos emocionais no coração dos cristãos que ouvem esse argumento. Eles se sentem culpados, mas todos os mecanismos de defesa entram em ação: "E por que eu devo me sentir culpado por ter uma boa situação financeira? Se eu por acaso usar transporte público, isso vai ajudar alguém a melhorar de vida? Não tenho o direito de aproveitar dos frutos do meu trabalho?" Ou seja, a solução não é só fazer os outros se sentirem culpados em relação às pessoas carentes.
A Bíblia não faz uso de motivação para gerar culpa, mas argumenta de forma contundente em favor do ministério de misericórdia. Em 2Coríntios 8.2-3, Paulo conta que os cristãos da Macedônia ofertaram generosamente às vítimas da fome em Jerusalém. Ele afirma que: "... no meio de muita prova de tribulação, manifestaram abundância de alegria, e a profunda pobreza deles transbordou em grande riqueza de generosidade" (v. 2). Os macedônios não pertenciam a uma classe social mais abastada que os irmãos necessitados de Jerusalém. Parece que eles mesmos atravessavam sérias dificuldades. O que foi, então, que os levou a ajudar? "... abundância de alegria..." (v. 2) e o fato de que "deram a si mesmos, primeiro ao Senhor, depois a nós" (v. 5), Paulo escreveu. Essa foi a resposta dos macedônios ao Senhor que esvaziou a si mesmo. A oferta deles foi uma resposta proporcional não à renda deles, mas à dádiva de Cristo!
A misericórdia é espontânea, é amor exuberante que resulta da graça de Deus em nossa vida. Quanto mais profunda for nossa experiência com a graça de Deus, mais generosos seremos. Foi isso que levou Robert Murray M'Cheyne a dizer: "Muitos dos que me ouvem sabem agora muito bem que não são cristãos, pois não amam ofertar. Ofertar muito e generosamente, sem reclamações, é fruto de um novo coração".
Em outras palavras, o ministério de misericórdia é um sacrifício de louvor à graça de Deus. O Senhor ressuscitado que nos salvou não está presente em corpo para ungirmos seus pés, mas temos os pobres a quem servir como sacrifício de amor e honra a Jesus Cristo (veja Jo 12.1-8). A oferta dos cristãos da Macedônia aos famintos transborda em louvores a Deus (2Co 9.12-15): “Porque o serviço desta assistência não só supre a necessidade dos santos, mas também transborda em muitas orações de gratidão a Deus. 13 Na prova deste serviço, eles glorificam a Deus pela obediência da confissão que vocês fazem do evangelho de Cristo e pela generosidade com que vocês contribuem para eles e para todos, 14 enquanto eles oram por vocês, com grande afeto, por causa da extraordinária graça de Deus que foi dada a vocês. 15 Graças a Deus pelo seu dom indescritível!”
As doações dos filipenses a Paulo são um “sacrifício que Deus aceita e que lhe agrada" (Fp 4.18). E o autor de Hebreus ensina que repartir com os outros é um “sacrifício de louvor”: “Por meio de Jesus, pois, ofereçamos a Deus, sempre, sacrifício de louvor, que é o fruto de lábios que confessam o seu nome. Não se esqueçam da prática do bem e da mútua cooperação, pois de tais sacrifícios Deus se agrada” (Hb 13.15-16).
Por que a generosidade é a marca do cristão? Imagine um doente à beira da morte. O médico lhe diz que conhece um remédio que garante sua cura. Sem ele, o enfermo não tem chance nenhuma. "No entanto", diz o médico, "é um remédio caríssimo. O senhor terá de vender seus carros, e até mesmo sua casa, para comprá-lo. Talvez o senhor não queira gastar tanto dinheiro assim". O enfermo se volta para o médico e responde: "De que me valem os carros agora? Qual é a vantagem de manter a casa? Tenho de tomar esse remédio; ele é precioso para mim. Essas outras coisas, que eram tão importantes para mim, perderam o valor em comparação ao remédio. São descartáveis agora. Providencie o remédio, doutor". Foi por isso que o apóstolo Pedro afirmou: "... para vocês, os que creem, esta pedra é preciosa" (1Pe 2.7). A graça de Deus torna Cristo precioso para nós, de modo que nossos bens, nosso dinheiro, nosso tempo se tornaram eterna e completamente descartáveis. Eram vitais para nossa felicidade, mas deixaram de ser.
Assista o Sermão completo no Youtube:
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