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Foto do escritorChristian Lo Iacono

A prática da Oração | Parte I

Porque vocês não receberam um espírito de escravidão, para viverem outra vez atemorizados, mas receberam o Espírito de adoção, por meio do qual clamamos: "Aba, Pai."

O próprio Espírito confirma ao nosso espírito que somos filhos de Deus.





Hoje, talvez, a maioria das pessoas enfatiza a oração como meio de experimentar o amor de Deus e a união com Ele. Costuma-se destacar, nesse caso, o desfrute da presença de Deus pelo crente. Outras pessoas, porém, consideram a essência da oração não como descanso interior, mas como uma súplica a Deus para que traga o seu reino, quando, então, a oração é vista como um embate em que, em geral, não há um senso claro da presença imediata de Deus, já que a oração visaria a conformidade aos propósitos divinos, e não um estado interior.


Ou seja, a oração pode ser vista como “centrada na comunhão” ou como “centrada no reino de Deus”. Algumas pessoas percebem certa frieza nas próprias emoções para com Deus e encontram muita dificuldade para fixar a atenção no ato de orar. Outras experimentam com regularidade o sentimento da presença de Deus. Qual visão da oração é melhor?


Nos Salmos, vemos essas duas experiências. Os salmos 27, 63, 84, 131 e os de 146 a 150 retratam a comunhão com Deus por meio da oração. Em Salmos 27.4, Davi afirma pedir em oração uma coisa fundamental: “contemplar a beleza do SENHOR”. Embora Davi na verdade orasse por outras coisas, no mínimo com isso quis dizer que nada é melhor do que conhecer a presença de Deus. Por isso, ele declara: “Ó Deus [...] minha alma tem sede de ti; [...] Eu te vi no santuário e contemplei teu poder e tua glória. Porque teu amor é melhor que a vida, eu te louvarei” (63.1-3). Quando Davi adora a Deus em sua presença, diz que sua alma “se sacia dos alimentos mais ricos” (v. 5). Isso é de fato comunhão com Deus.


Porém, há ainda mais salmos de lamento, gritos de socorro e clamores para que Deus exerça seu poder no mundo. Há expressões fortes de experiências da ausência de Deus. Vemos aqui de fato a oração como luta. Os salmos 10, 13, 39, 42, 43 e 88 são alguns exemplos. O salmo 10 começa perguntando por que Deus “permanece longe” e “se esconde” em tempos de dificuldade. De repente o autor clama: “Levanta-te, Senhor; levanta tua mão, ó Deus. Não te esqueças dos necessitados” (v. 12). Todavia, em seguida parece se pôr a pensar em voz alta, ao mesmo tempo em que fala com Deus: “Mas tu, ó Deus, vê sim o sofrimento e a dor. Considera-os para os tomares na tua mão. [...] És o amparo do órfão” (v. 14). A oração termina com o salmista curvando-se diante do templo e da sabedoria de Deus em todas as questões, embora ainda clame ferozmente por justiça na terra. O livro de Salmos, assim, apoia tanto a oração centrada na comunhão como a que é centrada no reino.


Ao mesmo tempo, aprendemos nas Escrituras que Jesus Cristo faz o papel de nosso mediador a fim de que, embora não sejamos dignos por nós mesmos, possamos nos achegar com ousadia ao trono de Deus e clamar para que nossas necessidades sejam satisfeitas (Hb 4.14-16; 7.25). Aprendemos também que o próprio Deus habita em nós por meio do Espírito (Rm 8.9-11) e nos ajuda a orar (Rm 8.26-27), de modo que hoje, pela fé, já podemos fitar e contemplar a glória de Cristo (2Co 3.17-18). Assim, a Bíblia nos oferece base tanto para a oração “centrada na comunhão” como para a “centrada no reino”.


Portanto, é possível dizer que esses dois tipos de oração não se opõem, porque a adoração a Deus acontece em meio à súplica. Louvar a Deus é orar “santificado seja o teu nome”, pedir-lhe que revele ao mundo sua glória para que todos venham honrá-lo como Deus. Contudo, assim como a oração contém súplica, a busca do reino também deve incluir a oração para conhecer a Deus. Podemos orar pela vinda do reino de Deus, mas, se não desfrutarmos de Deus acima de todas as coisas, com todo o nosso ser, não o honraremos de verdade!


Quando lemos o que vários dos maiores escritores da antiguidade, como Agostinho, Lutero e Calvino, disseram sobre oração, vemos que eles não se encaixam com precisão em nenhum dos dois lados. Aliás, até o famoso teólogo católico Hans Urs von Balthasar procurou trazer equilíbrio à tradição mística e contemplativa. Ele adverte contra o recolhimento excessivo. “A oração contemplativa [...] não pode nem deve ser uma autocontemplação, mas [sim] o voltar de olhos e ouvidos reverentes para [...] o Não-eu, ou seja, a Palavra de Deus” (Prayer).


Assim, como lidar com o dever e o prazer? Se as duas coisas permanecem juntas, a comunhão não será apenas consciência mística sem palavras, por um lado, nem serão nossas petições um modo de obter o favor de Deus “com nossas muitas palavras” (Mt 6.7), por outro. Ou seja, a oração é tanto conversa quanto encontro com Deus. As formas tradicionais de oração – adoração, confissão, ações de graça e súplica – são práticas concretas bem como experiências profundas. Precisamos conhecer a reverência de louvar sua glória, a intimidade de encontrar sua graça e a luta de pedir sua ajuda, e tudo isso pode nos levar a conhecer a realidade espiritual de sua presença. A oração, portanto, é reverência e intimidade, luta e realidade. O livro de J. I. Packer sobre a oração tem um subtítulo que resume bem a ideia: Orar é ir “do dever ao deleite”.


Timothy Keller escreve que só descobriu a oração na segunda metade da sua vida adulta, quando ministrou um curso sobre Salmos, em 1999. Em seguida, com o ataque de 11 de setembro de 2001, quando a cidade de Nova Iorque afundou num caos coletivo, as trevas em sua vida pessoal foram intensas, porque sua esposa lutava contra os efeitos de doença de Crohn e porque ele foi diagnosticado com câncer de tireoide. Em meio a tudo isso, sua esposa insistiu que ele fizesse com ela algo que nunca tiveram disciplina para fazer com regularidade. Ela pediu que ele orasse com ela todas as noites. Sua esposa argumentou o seguinte:


“Imagine que você recebeu o diagnóstico de uma enfermidade tão letal que o médico lhe deu poucas horas de vida, a menos que tome determinado remédio toda noite antes de dormir. Imagine que ele lhe recomende não deixar de tomar o remédio uma noite sequer, senão poderá morrer. Você acha que se esqueceria de tomá-lo? Ou deixaria de tomá-lo algumas noites? Não. Bem, se não orarmos juntos a Deus, não sobreviveremos a tudo o que estamos enfrentando. Eu com certeza não sobreviverei. Temos de orar. Simplesmente não podemos deixar que isso saia da cabeça.”


O casal percebeu a seriedade da questão e reconheceu que qualquer coisa que constituísse uma necessidade verdadeiramente inegociável era algo que podiam fazer. Quando Keller escreveu sobre isso haviam se passado mais de 12 anos, e ele não lembra de haver perdido uma noite sequer de oração junto de sua esposa, nem que fosse por telefone, mesmo quando ambos estiveram em hemisférios diferentes.


Em 1946, Flannery O’Connor, que tinha 21 anos e que viria a se transformar numa famosa escritora, começou um diário de oração escrito à mão: “Quero muito ser bem-sucedida no mundo com a atividade que desejo desenvolver. [...] Sinto-me tão desencorajada com meu trabalho. [...] Mediocridade é uma palavra dura para aplicar a si mesmo [...]; no entanto, é impossível não fazê-lo no meu caso. [...] Ainda não tenho nada do que me orgulhar. Sou tão obtusa quanto as pessoas que considero ridículas”. Qualquer aspirante a artista poderia escrever isso, mas Flannery tomou outro caminho sobre seus sentimentos. Ela orou a respeito deles, trilhando um percurso muito antigo, como os salmistas do AT, que não se limitavam a identificar, expressar e desabafar seus sentimentos, mas também os processavam com sinceridade brutal na presença de Deus:


“Querido Deus, não consigo amá-lo como desejo. Tu és o crescente tênue de uma lua que contemplo e eu sou a sombra da terra que me impede de enxergá-la por completo [...] Tenho medo, querido Deus, medo de que minha própria sombra cresça tanto a ponto de bloquear a lua inteira, e eu me julgue por essa sombra que nada é. Não te conheço, Deus, porque estou bloqueando o caminho”.


Ela reconhece aqui algo que Agostinho viu com clareza em seu diário de oração, as Confissões: viver bem depende de reordenar nossos afetos. Amar o sucesso mais do que a Deus e ao próximo embrutece o coração e torna-nos menos capazes de sentir e aprender. Isso ironicamente faz de nós pessoas mais medíocres. Portanto, por ser uma escritora talentosa que talvez tivesse se tornado arrogante e egocêntrica, a única esperança de Flannery estava na constante reorientação da alma pela oração: “Ó Deus, por favor, clareia e limpa a minha mente... Por favor, ajuda-me a ir mais fundo nas coisas e descobrir onde estás” (A prayer journal).


Flannery descobriu que a oração não se resume à exploração solitária da própria subjetividade. Você está na companhia de Alguém, e Ele é único. Deus é a única pessoa de quem você nada pode esconder. Diante dele, inevitavelmente você se enxergará sob uma nova luz sem igual. A oração, portanto, leva a um autoconhecimento impossível de se alcançar de outro modo.


Por toda a sociedade ocidental vem crescendo o interesse pela espiritualidade, meditação e contemplação, algo que se iniciou uma geração atrás, influenciado talvez pelo interesse divulgado dos Beatles por formas orientais de meditação e alimentado pelo declínio da religião institucional. Ninguém estranha mais o incentivo à espiritualidade nos jornais, revistas e artigos de maior influência. Na igreja cristã, tem ocorrido crescimento semelhante. Há um forte movimento em defesa de antigas práticas de meditação e contemplação, como a oração contemplativa, a oração da “escuta”, a lectio divina e muitas outras das hoje denominadas “disciplinas espirituais”.


Mas vejamos o que Paulo escreveu em Romanos 8.15-16: “Porque vocês não receberam um espírito de escravidão, para viverem outra vez atemorizados, mas receberam o Espírito de adoção, por meio do qual clamamos: ‘Aba, Pai.’ O próprio Espírito confirma ao nosso espírito que somos filhos de Deus.” Ora, o Espírito de Deus nos assegura do amor de Deus. Primeiro, nos capacita a nos aproximarmos e clamarmos a Deus como nosso Pai amoroso. Em seguida, o Espírito se coloca ao lado do nosso espírito e acrescenta um testemunho mais direto. O “testemunho do Espírito” de Rm 8.16 é uma experiência de elevado grau de segurança que pode nos sobrevir na oração (Martyn-Lloyd Jones).


A maioria dos comentaristas bíblicos modernos diz que esses versículos descrevem “uma experiência religiosa inefável”, uma vez que a certeza de amor seguro em Deus “é mística no melhor sentido da palavra” (Thomas Schreiner). “Não devemos dar pouca ênfase à base emocional da experiência... Alguns evitam de pronto essa ideia por sua subjetividade, mas o abuso da subjetividade em certos círculos não pode eliminar as dimensões ‘mística’ e emocional da experiência cristã” (Thomas Schreiner).


Em um sermão sobre o evangelho pregado por John Owen, ele exortou seus ouvintes a “terem uma experiência do poder do evangelho [...] sobre o próprio coração, dentro dele ou toda sua profissão de fé estará fadada a definhar” (The works of John Owen). Essa experiência do poder do evangelho no coração só pode acontecer por meio da oração – tanto em público, na assembleia cristã reunida, quanto em particular, na meditação.


Outro teólogo importante nessa questão é John Murray: “Precisamos reconhecer a existência de um misticismo inteligente na vida de fé [...] de união e comunhão vivas com o Redentor exaltado e onipresente. [...] Ele tem comunhão com seu povo e seu povo tem comunhão com ele em amor recíproco e consciente. [...] A vida de fé verdadeira não pode ser de assentimento metálico e frio. Deve ter a paixão e o calor do amor e da comunhão, pois a comunhão com Deus é a coroa e o ápice da verdadeira religião” (Redemption).


No meio do parágrafo, Murray cita a primeira carta de Pedro: “Mesmo sem tê-lo visto vocês o amam. Mesmo não o vendo agora, mas crendo nele, exultam com uma alegria indescritível e cheia de glória” (1.8). A antiga versão King James fala em “alegria indizível, e plena glória”. Alguns traduzem isso como “alegria glorificada para além das palavras”. Vejamos que Pedro não disse “bem, alguns de vocês, os que têm uma espiritualidade avançada, começaram a experimentar momentos de grande júbilo em oração. Espero que o restante também o alcance”. Não, ele presumiu que essa experiência de um júbilo por vezes assombroso na oração era algo normal. Isso nos traz convicção.


Ou seja, somos chamados a um misticismo inteligente, que significa um encontro com Deus que envolve não só os afetos do coração, mas também as convicções da mente. Não somos chamados a escolher uma vida cristã pautada na verdade e na doutrina OU uma vida cheia de experiências e poder espirituais. As duas coisas andam juntas.


A oração é a única porta para o autoconhecimento genuíno. É também a principal maneira de experimentarmos profunda transformação – a reordenação dos nossos afetos. A oração é o modo pelo qual Deus nos concede muitas das coisas inimagináveis que tem para nós. Aliás, do ponto de vista de Deus, a oração confere confiabilidade para que ele nos dê muitas das coisas que mais desejamos. É a maneira de conhecermos a Deus, o caminho para, enfim, tratá-lo como Deus. A oração nada mais é que a chave para tudo o que necessitamos fazer e ser na vida. Precisamos aprender a orar. Como isso pode ser feito de forma prática?




Assista o sermão completo no Youtube.



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