A Quinta-Feira Santa, na tradição cristã, é marcada pelo dia em que Jesus Cristo senta à mesa pela última vez com os seus discípulos antes da crucificação. Na mesa pascal podem ser vistos cordeiro, pão e vinho. Imagens familiares, de significado transcendental e que marcam a memória tanto de cristãos, quanto de judeus.
Num olhar para o passado, a linguagem do “cordeiro que foi morto”, ultrapassa Israel e avança em direção ao Éden, em Gênesis (Gn 3.21). De lá para cá, o que encontramos é um fio vermelho, atravessando toda a história humana. No calendário litúrgico de Israel, a Páscoa sempre foi a principal festa. Ela recuperava em um nível experiencial a memória daquela última noite no Egito, e os extraordinários atos redentivos de Deus para com seu povo. Bem sabemos que o Antigo Testamento, tanto em narrativa quanto em palavra profética, era sombra e seta apontada para Cristo (Cl 2.17).
Na tradição hebraica, a Páscoa era celebrada ao décimo sétimo dia do mês de nisan – fica entre março e abril do nosso calendário ocidental. Os judeus lembravam da noite em que sacrificaram um cordeiro e, por orientação de Deus, marcaram com sangue os umbrais das portas, ficando assim livres da morte os primogênitos de suas famílias, momentos antes de terem sido resgatados do Egito (Êx 12). Por conta disso, todos os anos, no décimo dia de nisan, um cordeiro de um ano, sadio e sem defeito, era escolhido entre o rebanho e trazido para a casa a fim de ser preparado para a Páscoa. Após sacrificado, o animal era assado inteiro e então consumido. Junto ao cordeiro, os hebreus também consumiam pão sem fermento e ervas amargas, o que sempre os lembrariam dos amargos anos no Egito. Veja a sugestão litúrgica feita por Hendriksen (2003).
Em Lucas 19.28-29, o evangelista narra a então entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Montado num jumentinho, ele percorreu a estrada que o levaria ao que hoje é chamado de portão dourado, do lado nordeste do templo. Era o décimo dia de nisan, dia reservado para sacrificar um cordeiro. A entrada de Jesus revela o cumprimento pelo próprio Deus, de seu mandamento dado ao povo de Israel no êxodo. O próprio Cordeiro, Jesus, se apresentava para o sacrifício da Páscoa.
A mesa está posta. Cristo é Deus, sentado entre os homens. Mas ele também é o próprio banquete, que torna possível a comunhão entre Deus e pecadores. O evangelho de Lucas registra a última ceia da seguinte maneira:
“Então Jesus lhes disse: — Tenho desejado ansiosamente comer esta Páscoa com vocês, antes do meu sofrimento. Pois eu lhes digo que nunca mais a comerei, até que ela se cumpra no Reino de Deus. E, pegando um cálice, depois de ter dado graças, disse: — Peguem e repartam entre vocês. Pois eu digo a vocês que, de agora em diante, não mais beberei do fruto da videira, até que venha o Reino de Deus. E, pegando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: — Isto é o meu corpo, que é dado por vocês; façam isto em memória de mim. Do mesmo modo, depois da ceia, pegou o cálice, dizendo: — Este cálice é a nova aliança no meu sangue derramado por vocês” (Lucas 22:15-20).
Diferente dos demais relatos nos evangelhos, Lucas chama a atenção para o intenso desejo por parte de Jesus em cear com seus discípulos. Carinhosamente, Cristo brinda aquela comunhão com palavras que deixam saudade e criam expectativa “... não voltarei a comê-la até que ela se cumpra no reino de Deus”. Note que Jesus não está dizendo: “Chegou o fim. Depois desta noite, nunca mais nos veremos”. O que ele está dizendo é: “Embora nossa contínua comunhão aqui esteja terminando, ela será gloriosamente renovada no reino por vir, reino de luz e amor, de triunfo e louvor, e, então, juntos viveremos por toda a eternidade”.
Ao final da ceia pascal, enquanto todos comiam livremente, Jesus instituiu o novo sacramento. É justamente por isso que tanto Lucas (22.20), quanto Paulo (1Co 11.25), falam do “cálice depois de haver ceado”. Agora a Páscoa passa a ser a “Santa Ceia do Senhor”. Bastam algumas horas, e aquele antigo símbolo, cruento – porquanto exigia a morte do cordeiro –, terá servido ao seu propósito para sempre, tendo alcançado seu cumprimento no sangue inocente de Jesus derramado no Calvário.
Jesus então toma em sua mão aquele fino pão sem fermento e, com os olhos fixos nos discípulos, rasga-o vagarosamente, dizendo: “isto é o meu corpo, que é dado por vocês”, da mesma forma que pegou o cálice e disse: “este cálice é a nova aliança no meu sangue derramado por vocês”. Naquela hora, eles mastigavam o pão entre seus dentes, mas logo depois veriam o Cristo ser dilacerado por cravos, espinhos e lança. Agora sentiam o cheiro e o gosto forte do vinho em sua boca, mas em seguida teriam que presenciar e engolir a terrível morte sangrenta pela qual Jesus haveria de passar. Tudo isso para que pudessem experimentar e lembrar em seu próprio corpo o quanto Deus os amava. A culpa estava prestes a dar lugar a tão perseguida paz (Hb 9.22; cf. Ef 1.7; Is 53.6,8,10,12; Mt 20.28; Mc 10.45; Jó 3.16; 6.51; Rm 5.19; 8.32; 2Co 5.20, 21; Gl 2.20; 3.13; lPe 2.24).
Reconstruir a noite da ceia a partir das coloridas marcas de um pincel em um bonito quadro, pode nos levar ao equívoco de pensar nas pessoas que ali estavam como sendo pessoas especiais para uma ocasião especial. Contudo, aquele banquete de maneira nenhuma pode ser visto isolado de todos os outros celebrados por Jesus. A alegação que fizeram a respeito de Jesus, de que ele era amigo de pecadores e que comia e bebia com eles (Lc 7.34), não era infundada. De fato, Cristo tinha comunhão de mesa com essas pessoas. Naquela mesa, estavam pessoas afoitas, inseguras, com pequena fé, sem recursos financeiros, alguns, alvo de preconceitos por sua vida pregressa, outros, vindos das classes sociais mais baixas da sociedade da época. Eram homens humildes, simples e pecadores. Não havia ninguém melhor do que nós. Aquele grupo pegaria no sono nas próximas horas, deixando seu Salvador e Mestre sofrer angústia de morte solitariamente. Pedro, naquela madrugada, por repetidas vezes veria Jesus apanhando inocentemente e agiria como se nunca o tivesse visto. Aliás, o Dr. James W.Fleming, com base nas narrativas do evangelho e no contexto cultural da época, sugere que Jesus, enquanto anfitrião, havia acomodado os discípulos na mesa de modo que Judas – “aquele a quem eu der o pedaço de pão molhado” (Jo 13:26) – teria ocupado o lugar de convidado de honra. Imediatamente após este ato, venderia Jesus por 30 moedas de prata.
Por isso, a celebração da Santa Ceia é um memorial de amor. Em todos os quatro relatos (Mateus, Marcos, Lucas e 1Coríntios 11), estabelece-se uma relação entre o sangue de Cristo e sua aliança (Êx 24.8; Jr 31.31-34). Aquela noite carregava o significado todo da história humana, constituía-se um marco para o mundo e inaugurava a Nova Aliança entre Deus e os homens. Era o surgimento de um novo “povo” e de um “novo mundo”. Sob o olhar do “ainda não”, a Ceia Cristã está para o eterno e grande banquete, como a Páscoa Judaica está para os cristãos. Um dia estaremos todos em torno da mesa novamente, olhando nos olhos do nosso Cristo, nas Bodas do Cordeiro (Mt 8.11).
“Sabendo que não foi mediante coisas perecíveis, como prata ou ouro, que vocês foram resgatados da vida inútil que seus pais lhes legaram, mas pelo precioso sangue de Cristo, como de um cordeiro sem defeito e sem mácula” (1Pe 1:18,19).
Até que ele venha. Amém.
Nota 1:
1. Uma oração de ação de graças é oferecida pelo responsável da família; bebe-se o primeiro cálice de vinho (diluído).
2. São ingeridas ervas amargas, como um memorial da amarga escravidão egípcia.
3. Um filho faz a pergunta: “Por que esta noite é diferente de todas as demais noites?”, o pai responde a partir do sentido bíblico, narrando ou lendo.
4. É cantada a primeira parte do Hallel (Sl 113 e 114), e são lavadas as mãos. Bebe-se o segundo cálice.
5. Momento de cortar e comer o cordeiro, junto com o pão sem fermento. O cordeiro era comido em comemoração ao que havia sido ordenado aos antepassados que fizessem na noite em que o Senhor golpeou mortalmente todos os primogênitos do Egito e deu liberdade ao seu povo (Êx 12 e 13). Os pães sem fermento eram em comemoração ao “pão da pressa” comido pelos ancestrais.
6. Continuação da ceia, quando cada um come o quanto quiser, porém sempre enquanto durar o cordeiro. Bebe-se o terceiro cálice.
7. Canta-se a última parte do Hallel (Sl 115-118). Bebe-se o quarto cálice.
Obras consultadas:
BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudo: antigo e novo testamento. Nova Almeida Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018.
CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1997.
COENEN, Lothar; BROWN, Colin (Orgs.). Dicionário Internacional de Teologia do NovoTestamento. São Paulo: Vida Nova, 2000.
HARRIS, R. Laird (Org.) Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
Hendriksen, William. Comentário do Novo Testamento Exposição do Evangelho de Lucas. Vol. 2. São Paulo: Cultura Cristã, 2003.
JEREMIAS, Joachim. Jerusalém no tempo de Jesus: pesquisa de história econômico-social no período neotestamentário. Santo André (SP): Academia Cristã; São Paulo: Paulus, 2010.
Manual Bíblico SBB. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2018.
MORRIS, Leon L. Lucas. Introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2014.
WALTKE, Bruce. Teologia do Antigo Testamento: uma abordagem exegética, canônica e temática. São Paulo: Vida Nova, 2015.