Por isso vos digo: Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário? Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas? E qual de vós poderá, com todos os seus cuidados, acrescentar um côvado à sua estatura? E, quanto ao vestuário, por que andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham nem fiam; E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe, e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pouca fé? Não andeis, pois, inquietos, dizendo: Que comeremos, ou que beberemos, ou com que nos vestiremos? Porque todas estas coisas os gentios procuram. Decerto vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas; Mas, buscai primeiro o reino de Deus, e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. Não vos inquieteis, pois, pelo dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal.
Mateus 6:25-34
O contexto dessa passagem vem basicamente dos versículos anteriores. Jesus havia perguntado aos discípulos que tipo de tesouro eles queriam acumular (vs. 19-21); e que tipo de Senhor eles queriam servir (v. 24). Somente depois de respondidas essas perguntas e de feitas as escolhas é que é possível atender à exortação de Cristo (v. 25).
Jesus considerou que todos os seres humanos buscam alguma coisa na vida, algo pelo qual lutar e viver, e que dê significado à existência. Os filósofos gregos chamavam isso de “o bem supremo”. Talvez “ambição” seria o termo moderno equivalente. No dicionário, “ambição” pode significar “um forte desejo de alcançar o sucesso”, sentido que pode ter uma conotação negativa, relacionada ao egoísmo. Mas a “ambição” também pode se referir a desejos altruístas e piedosos, ou seja, é possível ter “ambições para Deus”. Assim, nesse sentido, a ambição é aquilo que impele uma pessoa, e essa palavra tem tudo a ver com o convite de Jesus aqui, que nos convida a buscá-lo em primeiro lugar. E, novamente, Jesus nos apresenta duas alternativas: a vida de um discípulo dele ou a de um gentio, pagão.
A maior parte da perícope é negativa: Jesus repete três vezes a sua proibição: “não se preocupem” (vs. 25, 31 e 34) com comida, bebida ou vestimenta. Ele alega que são os gentios que se preocupam com isso (v. 32). Spurgeon chamou esses três elementos de “a trindade dos cuidados do mundo”. Ora, Jesus não desprezou as necessidades do corpo. Ele mesmo ensinou a orarmos: “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Mas Ele alega que ficar absorto pelo conforto material é uma falsa preocupação. De um lado, não é produtivo, porque acarreta sofrimentos desnecessários; por outro, não é necessário, porque o Pai sabe do que necessitamos (v. 32). Essa postura materialista indica uma falsa visão de ser humano, uma visão reducionista, como se o ser humano fosse somente matéria, degradado ao nível dos animais, das aves e das plantas. Ocorre que a grande maioria dos anúncios comerciais hoje, não se pode negar, é dirigida ao corpo. Ora, não tem a vida humana um significado maior do que esse?
É bom dizer que Jesus não está proibindo o pensamento aqui. Ele, inclusive, orienta que olhemos para as aves e as flores, a fim de considerarmos como Deus cuida delas. Jesus também não está proibindo a previdência (ex. a formiga em Provérbios), mas a “preocupação ansiosa”, a mesma expressão usada em relação a Marta, “distraída” com os serviços da casa (Lc 10.40), e também com relação à boa semente lançada entre os espinhos, mas que foi abafada pelos “cuidados” da vida (Lc 8.14). Ora, Paulo também recomendou que não andássemos “ansiosos de coisa alguma” (Fp 4.6). “A provisão prudente para o futuro é boa; a fadiga, o desgaste, a ansiedade que atormenta são ruins” (Ryle). Mas por que a preocupação é ruim? Jesus responde: ela é incompatível com a fé cristã e com o bom senso.
Jesus chama essas pessoas que vivem assim de “homens de pequena fé” (v. 30). Ele alega que deveríamos confiar em Deus, e argumenta a partir da experiência humana e também da sub-humana (aves e flores). Ora, sabemos que Deus nos criou e é Ele quem nos sustém. Se Ele cuida do mais importante, não cuidará também do menos importante? Além disso, podemos nós, ansiosos, alongar a nossa vida? É mais provável que encurtemos ela. Ou seja, se sabemos que Deus nos criou e mantêm vivos, não seria sensato confiar nele para as coisas de menor importância?
Jesus também usa as aves pra ilustrar o cuidado divino com a alimentação (v. 26) e as flores para ilustrar o cuidado com o vestir (v. 28-30). Ele nos manda “olhar”, “considerar”, ou seja, pensar sobre o cuidado providencial de Deus: “observem as aves do céu!” (fixar os olhos em algo para enxergar bem, segundo Bruce). Somos ensinados de que pássaros não semeiam nem colhem, mas nosso Pai os sustenta, e de que lírios não trabalham, mas o Pai os veste, e suntuosamente. Sendo assim, não podemos confiar em Deus para a comida e o vestir, já que temos mais valor do que as aves e as flores, que amanhã já não existem mais? Lutero disse que Jesus “está fazendo das aves nossos professores e mestres. É uma grande e permanente vergonha para nós o fato de que, no evangelho, um frágil pardal se tornar teólogo e pregador para o mais sábio dentre os homens... Portanto, sempre que você ouvir a voz de um rouxinol está ouvindo um excelente pregador... É como se ele estivesse dizendo: ‘Eu prefiro estar na cozinha do Senhor. Ele fez o céu e a terra, e ele mesmo é o cozinheiro e o anfitrião. Todos os dias ele alimenta e nutre inúmeros passarinhos em sua mão’”. Spurgeon: “Maravilhosos lírios, como vocês reprovam nosso tolo nervosismo”.
Isso não quer dizer que os crentes estão isentos de ganhar a sua própria vida. Quem não quer trabalhar não coma, escreveu Paulo (2Ts 3.10). “Deus não tem nada a ver com os preguiçosos, com os glutões displicentes; eles agem como se apenas devessem ficar sentados à espera de que Deus lhes atire na boca um ganso assado” (Lutero). Ora, as aves se alimentam sozinhas, de modo que Deus providencia na natureza recursos para elas. “O uso de meios não diminui a nossa fé em Deus, e a nossa fé em Deus não impede que usemos quaisquer meios que ele tenha fornecido para a realização dos seus propósitos” (Hudson Taylor, 1853). Deus não coloca a todos na situação de Elias, alimentado por aves, mas nos provê as necessidades através de meios naturais, por meio de vocações, por exemplo.
O cuidado de Deus também não quer dizer que estamos isentos de ajudar os outros em necessidade (Mt 25). A principal causa da fome no mundo não é a falta de provisão divina, mas talvez uma injusta distribuição do alimento por parte dos seres humanos. Deus forneceu amplos recursos naturais a todos, mas o pecado nos trouxe grandes injustiças.
Esse cuidado de Deus não quer dizer, por fim, que os crentes estarão isentos de dificuldades. Mas eles podem ficar livres de “preocupações”. Não somos imunes ao sofrimento (Mt 10.29: os pardais sofrem com o consentimento de Deus). Ora, “basta ao dia o seu próprio mal” (v. 34). Sim, o mal é uma realidade! Mas todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus (Rm 8). Helmut Thielicke pregou após a 2ª guerra mundial na Alemanha (1946-1948) e disse o seguinte sobre esse texto bíblico: “acho que devemos parar e ouvir quando este homem, cuja vida na terra teve muito pouco de ‘passarinhos e flores’, aponta-nos para a despreocupação deles. Será que as tenebrosas sombras da cruz já não se espalhavam sobre esta hora em que ele pregou o Sermão do Monte?” Portanto, é razoável confiar no amor do Pai celeste.
A preocupação também é incompatível com o bom senso (v. 34). Ela se dirige ao amanhã, mas é experimentada hoje. Mas e se o temor não se confirmar amanhã? Os temores podem ser mentirosos, e geralmente o são. Assim, a preocupação é uma perda de tempo, de pensamentos, de emergia nervosa. Precisamos aprender a viver um dia de cada vez! “Basta ao dia o seu próprio mal”; do contrário, multiplicaremos o sofrimento, ou sofreremos sem necessidade.
Os gentios é que se preocupam com tudo isso. Eles “procuram todas essas coisas” (v. 32), ou “ficam ansiosos” (ambição). Ora, Deus sabe do que precisamos, e essas coisas todas não constituem nosso objetivo maior, mas o reino de Deus e sua justiça (responsabilidade social), que é Cristo governando o seu povo. Buscar o reino e sua justiça fará com que Deus cuide das demais coisas para nós (v. 34).
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