Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós.
A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus.
Pois a criação está sujeita à vaidade, não por sua própria vontade, mas por causa daquele que a sujeitou,
na esperança de que a própria criação será libertada do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.
Porque sabemos que toda a criação a um só tempo geme e suporta angústias até agora.
E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo.
Porque na esperança fomos salvos. Ora, esperança que se vê não é esperança. Pois quem espera o que está vendo?
Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos.
O sofrimento está por todos os lados. Quando um número muito alto de mortes acontece de uma só vez, como no tsunami no oceano Índico em 2004 ou no terremoto no Haiti em 2010 – somando mais de 300 mil mortes –, as manchetes se espalham pelo mundo, e todos ficam chocados com a tragédia. No entanto, as estatísticas enganam, porque essas calamidades não alteram de fato as proporções do sofrimento. Dezenas de milhares de pessoas morrem todos os dias em tragédias inesperadas, e centenas de milhares são esmagadas pela tristeza.
Quando ouvimos sobre uma tragédia, um profundo mecanismo psicológico de defesa entra em ação. Dizemos a nós mesmos que essas tragédias acontecem com os outros, com gente pobre ou desprevenida. Ou nos convencemos de que, se elegermos os políticos certos e endireitarmos o sistema social, nada assim se repetirá. Contudo, o escritor Ernest Becker acredita que esse tipo de raciocínio “não leva a vida a sério” ou não admite o “contexto da verdade em que se vive, a do terror da criação... a do ressoar do pânico que está por detrás de todas as coisas” (Denial os death).
Num artigo publicado no The New York Times em 2002, Ann Patchett escreveu: “Buscamos sempre uma explicação para um assassinato com o objetivo de mantê-lo distante de nós: não me encaixo nessa descrição; não moro nessa cidade; eu jamais frequentaria um lugar desses nem conheceria uma pessoa dessas. Mas o que acontece quando não há uma descrição, um local, um perfil das pessoas envolvidas? Onde buscamos nossa paz de espírito? A verdade é que adiar a própria morte é um dos passatempos nacionais favoritos. Seja com exercícios físicos, seja com checagem de colesterol, seja com mamografia anual, vivemos nos protegendo da mortalidade” (Scared senseless).
O importante é saber viver bem e até mesmo com alegria diante dessas realidades terríveis. A perda de pessoas amadas, as doenças debilitantes e fatais, a traição pessoal, as reviravoltas financeiras e os fracassos morais – todas essas coisas um dia o atingirão se você tiver uma longevidade normal. Ninguém está imune. Assim, não importam nossas precauções, quanto nos esforçamos para ter uma vida boa nem quanto nos empenhamos para ser saudáveis, para ficar ricos, para viver bem com os familiares e amigos, para ser bem-sucedidos na profissão. Não há dinheiro, poder nem planejamento capazes de impedir que o luto, uma doença terrível ou outros problemas entrem em sua vida.
Muitas pessoas resistem e rejeitam a Deus por isso. Como um Deus bom, justo, amoroso pode permitir tanta infelicidade? Porém, também é verdade que muitas pessoas encontram Deus no sofrimento, quando elas percebem que não estão no controle de suas vidas nem nunca estiveram.
Nas Escrituras, há temas marcantes que nos ajudam na questão da dor e do sofrimento na vida. Além de aprofundar nosso entendimento sobre o assunto, cada um deles influencia diretamente nossas atitudes, dando-nos uma nova disposição de espírito capaz de enfrentar as adversidades.
O primeiro conjunto de ensinamentos cristãos que moldam o coração nesse sentido são as doutrinas bíblicas da Criação e da Queda. Vemos em Gênesis 1 e 2 que Deus colocou a humanidade num mundo sem morte nem sofrimento. O mal que testemunhamos hoje não fazia parte do projeto original de Deus. Não era a intenção dele para vida humana, ou seja, em última análise, mesmo uma morte tranquila aos noventa anos não foi planejada para ser assim. As pessoas que veem a morte como algo “errado” – venha ela como vier – estão certas.
O clamor do famoso poema de Dylan Thomas, “enfurecei-vos perante o morrer da luz”, é o nosso instinto gritando que não fomos criados para a mortalidade, para a perda do amor ou para o triunfo das trevas. Na intenção de ajudar aqueles que enfrentam a morte e o sofrimento, geralmente as pessoas dizem que a morte é parte natural da vida. Mas essa perspectiva exige que se reprima uma intuição humana bastante correta e profunda: não fomos criados para simplesmente virar pó; o amor foi criado para ser eterno.
O capítulo 3 de Gênesis confirma essa intuição com riqueza de detalhes, mostrando que a origem das trevas no mundo é resultado da nossa recusa de permitir que Deus fosse nosso senhor e rei. Quando nos afastamos de Deus e cortamos nosso relacionamento com ele, todos os outros relacionamentos desabaram. Quando rejeitamos a autoridade de Deus, todas as coisas relacionadas ao mundo – nosso coração, nossas emoções, nossos corpos e nosso relacionamento com outras pessoas e com a natureza – deixaram de funcionar como deveriam.
A Queda da humanidade significa que o projeto original do mundo foi deturpado. No Jardim, homens e mulheres foram chamados a trabalhar: a cuidar da terra e a cultivá-la. Quando Adão e Eva pecaram, parte da maldição foi que “espinhos e ervas daninhas” (Gn 3.18) cresceriam na terra, assim como flores e alimentos. Isso mostra que o ideal perfeito de vida que Deus criou não foi totalmente erradicado, mas está longe da intenção original. O ideal era que o trabalho sério resultasse sempre em prosperidade; porém, hoje em dia, muitas vezes “nos matamos de trabalhar” e uma injustiça ou tragédia desaba sobre nós e acaba com tudo. A doutrina da Queda, portanto, nos concede um entendimento extraordinariamente carregado de sofrimento.
Por um lado, esse ensino rejeita a ideia de que as pessoas que sofrem mais são sempre piores do que as que sofrem menos. Essa era a premissa de justiça farisaica dos amigos de Jó, que, sentados ao lado dele, diziam: “Isso está acontecendo com você e não conosco porque nossa vida é correta, mas a sua não é”. No final do livro, Deus se enfurece com esses “consoladores lastimáveis”. O mundo está caído e destruído demais para ser dividido entre pessoas boas que vivem bem e pessoas ruins que vivem mal. A espécie humana inteira herdou a ruína do mundo, Como Jesus afirma, o sol brilha e a chuva cai sobre justos e injustos (Mt 5.45). O indivíduo que sofre não está necessariamente recebendo o devido pagamento pelas coisas erradas que fez.
Por outro lado, embora não devamos nunca dizer que o sofrimento individual é causado por um pecado em particular, podemos afirmar que em geral o sofrimento e a morte são consequências naturais do pecado e o justo juízo de Deus por ele. Assim, levando em conta nossos antecedentes, não podemos protestar dizendo que a humanidade merece uma vida melhor do que tem agora.
Para muitas pessoas, geralmente está subentendido que a tarefa de Deus é criar um mundo que nos beneficie. O deísmo do século 18 promovia abertamente essa ideia, embora ele entrasse em conflito com o livro de Gênesis e o restante da Bíblia. Mesmo assim, a ideia seduz o coração da maioria de nós, como afirma o sociólogo Christian Smith. Ele fez uma pesquisa e concluiu que a maioria dos jovens americanos é formada de “deístas práticos”, embora muitos nem sequer façam ideia do que isso significa.
De acordo com Smith, para esses jovens, Deus é um ser que tem a obrigação de satisfazer suas necessidades. O pressuposto cultural implícito, mas profundamente enraizado nos corações, é que a obrigação de Deus é dar uma vida confortável a todos, exceto às pessoas “muito más”. No entanto, essa premissa acaba sempre nos levando à desilusão amarga. A presunção desse direito espiritual condena os que a sustentam a se sentirem perplexos quando, inevitavelmente, as coisas vão mal com eles.
Quando analisamos a premissa de que Deus deve nos dar uma vida boa observamos claramente que ela não procede. Se existe mesmo um Deus infinitamente glorioso, por que o universo giraria ao nosso redor e não ao redor dele? Se compararmos os padrões que Deus estabeleceu na Bíblia para nosso viver diário – a Regra de Ouro, os Dez Mandamentos e o Sermão do Monte – com o histórico da humanidade em transgredir esses padrões, descobriremos que o verdadeiro enigma do mal não é exatamente o que pensamos. Talvez seja este na verdade: Por que, à luz do nosso comportamento como raça humana, Deus permite tanta felicidade? A doutrina da Criação e Queda acaba com a autopiedade que aflige os que abraçam a visão deísta da vida, fortalecendo a alma e preparando-a para não se surpreender quando aparecerem as dificuldades da vida.
A segunda doutrina cristã que fala tão profundamente ao nosso coração se refere ao julgamento final e à restauração do mundo. Muitas pessoas protestam dizendo que não podem acreditar num Deus que julga e castiga as pessoas. Mas, se o Dia do Julgamento final é pura invenção, como fica a montanha de injustiças já acontecidas e que continuam a acontecer no mundo? Se não existe nenhum Dia do Julgamento, então só nos restam duas coisas a fazer: perder toda e qualquer esperança ou buscar vingança. Assim, ou a tirania e a opressão tão predominantes através dos séculos jamais serão reparadas, e, no fim das contas, não fará diferença se vivemos de maneira justa e boa ou cruel e egoísta, ou, então, como não existe um Dia de Julgamento, teremos de pegar nossas armas e sair caçando os malfeitores imediatamente. Precisaremos fazer justiça com as próprias mãos. Se não houver um juiz, teremos de ser juízes.
Portanto, a doutrina bíblica do Dia do Julgamento final, longe de ser um conceito sombrio, nos ajuda a viver com esperança e graça. Se a aceitamos, temos a esperança e o incentivo para lutar a favor da justiça, porque, mesmo obtendo poucos resultados, sabemos que a justiça será estabelecida, completa e perfeitamente. Todos os erros – que chamamos de mal moral – serão reparados. Mas isso também nos leva a ser generosos, a perdoar e a abrir mão da vingança e da violência.
Por quê? Se não acreditamos muito em julgamento final, ao sermos ultrajados, sentimos uma compulsão quase irresistível de passar a mão numa arma e acabar com os malfeitores. Contudo, se sabemos que ninguém ficará impune, e que todos os erros serão reparados um dia, conseguimos viver em paz. A doutrina do Julgamento final nos alerta de que não temos conhecimento para saber exatamente o que as pessoas merecem nem temos o direito de aplicar um castigo sabendo que nós mesmos somos pecadores (Rm 2.1-16; 12.17-21). Desse modo, crer no Dia do Julgamento nos impede de ser passivos ou violentos demais em nossa busca de verdade e justiça.
No entanto, o maior consolo dos que sofrem se encontra na outra face do dia do Julgamento. Peter van Inwagen escreve: “A certa altura, por toda a eternidade, não haverá mais sofrimento imerecido: a escuridão atual, esta ‘era do mal’, será lembrada apenas como uma chama tênue no início da história humana. Toda maldade do perverso contra o inocente será vingada e toda lágrima será totalmente enxugada” (Problem of evil).
Nenhuma teodiceia explica de modo completo e satisfatório por que é justificável a permissão de Deus para a existência do mal. Mesmo assim, a doutrina cristã da ressurreição e da restauração do mundo – quando todas as promessas e implicações bíblicas serão avaliadas e entendidas – é a que mais se aproxima de qualquer explicação coerente que possamos dar. A ressurreição do corpo não significa apenas um consolo pela vida que perdemos, mas sua restauração. Além do corpo e da vida que tínhamos antes, receberemos o corpo e a vida que sempre desejamos ter, mas nunca tivemos. Receberemos uma vida rica, gloriosa e perfeita, além da nossa imaginação, num mundo físico restaurado.
Muitas vezes podemos observar como coisas ruins concorrem para o bem (Rm 8.28). O problema é que geralmente só vemos isso acontecer algumas vezes, em casos limitados. Mas será que Deus não permite a existência do mal porque ele resulta em muito mais glória e alegria do que teríamos de outra forma? Será que a provável glória e alegria que iremos conhecer não são infinitamente maiores do que seriam caso o mal não existisse? Quem sabe o mundo futuro não será mais grandioso por causa de sua derrocada e perdição no passado? Se assim for, o mal sofrerá sua queda final e devastadora. Apesar de haver sido um obstáculo à nossa beleza e felicidade, o mal tornará tudo muito melhor. Assim, o mal terá realizado exatamente o oposto que planejou.
Como isso acontecerá? De forma mais básica possível, sabemos que só pode haver coragem quando existe perigo. Sem o pecado e o mal, jamais conheceríamos a coragem de Deus ou a extensão impressionante do seu amor, ou a glória de uma divindade que deixa seu trono e vai para a cruz. Pois aqui, neste mundo, a noção da glória de Deus nos parece bastante remota e abstrata. Porém, precisamos entender que as alegrias mais arrebatadoras que já sentimos – ao contemplar a beleza de uma paisagem, ao nos deliciar com uma refeição ou um abraço reconfortante – são como gotas de orvalho se comparadas ao oceano infindável de alegria que sentiremos ao ver Deus face a face (1Jo 3.1-3). É isso que nos aguarda, e nada menos que isso.
De acordo com a Bíblia, essa beleza gloriosa, e nosso desfrutar dela, foram infinitamente aperfeiçoados quando Cristo nos resgatou do mal e da morte. A Bíblia conta que os anjos anseiam por apreciar o evangelho para todo o sempre, por contemplar a maravilha realizada por Jesus em sua encarnação e expiação: “A eles [profetas] foi revelado que, não para si mesmos, mas para vocês, ministravam as coisas que, agora, foram anunciadas a vocês por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, lhes pregaram o evangelho, coisas essas que anjos desejam contemplar” (1Pe 1.12).
Paulo fala de modo enigmático que nós que conhecemos Cristo e o poder de sua ressurreição também conhecemos “a participação nos seus sofrimentos” (Fp 3.10-11). Alvin Plantiga destaca os ensinos de antigos teólogos da Reforma, como Jonathan Edwards e Abraham Kuyper, para os quais a queda e a redenção nos levaram a um grau de intimidade com Deus que não alcançaríamos de nenhuma outra forma. E por isso os anjos sentem “inveja” desse relacionamento. E se, no futuro, descobrirmos que, assim como Jesus não poderia revelar tal glória e amor de nenhum outro modo a não ser por meio do sofrimento, nós também não teríamos vivenciado glória, alegria e amor tão sublimes a não ser por meio de um mundo de sofrimento?
E por que não acreditar que nossa glória futura “engolirá” o mal do passado de tal forma que, por mais incrível que pareça, nem mesmo a lembrança de sua existência entristecerá nosso coração, mas apenas o deixará ainda mais feliz? Em O grande divórcio, história fictícia sobre o céu e o inferno, C. S. Lewis descreve o inferno e seus habitantes como tendo se tornado microscopicamente pequenos. Ele escreve que, quando vivem no mundo, as pessoas dizem que “nenhuma alegria futura compensa” uma situação de sofrimentos, “sem saber que o céu, uma vez que se chegar lá, agirá em retrospectiva e transformará aquela agonia em glória”. Essa é uma tentativa de transmitir a mesma ideia de J. R. R. Tolkien quando ele imagina uma época em que “toda tristeza se transformará em não verdade” (Senhor dos Anéis: o retorno do rei).
Assista o Sermão completo no Youtube
コメント