Que diremos, então? Que a lei é pecado? De modo nenhum! Mas eu não teria conhecido o pecado, a não ser por meio da lei. Porque eu não teria conhecido a cobiça, se a lei não tivesse dito: "Não cobice."
Mas o pecado, aproveitando a ocasião dada pelo mandamento, despertou em mim todo tipo de cobiça. Porque, sem lei, o pecado está morto.
Houve um tempo em que, sem a lei, eu vivia. Mas, quando veio o mandamento, o pecado reviveu, e eu morri.
É impossível compreendermos a vida cristã sem primeiro nascermos de novo. Jesus disse que ninguém pode ver o reino de Deus sem esse novo nascimento (Jo 3.3). Por mais simples ou sofisticados que cada um de nós possa ser, o caminho até Deus Pai é o mesmo, Jesus Cristo. “Assim como fisicamente os reis da terra e os poderosos do mundo nascem exatamente da mesma maneira que nasce a pessoa mais simples, assim a pessoa mais intelectual se tornará cristã exatamente como a pessoa mais simples” (F. Schaeffer). “Ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6), disse Jesus.
O motivo é que existe uma culpa moral a separar os seres humanos de Deus. Essa culpa não é só o conceito moderno de sentimento de culpa, uma emoção humana de culpa psicológica. É uma verdadeira culpa moral diante do Deus santo, infinito e pessoal. Somente a obra substitutiva de Cristo na cruz pode resolver essa inimizade. Somos justificados pela graça, mediante a fé, por meio de Cristo.
Por outro lado, embora seja necessário o novo nascimento, ele é somente o começo da caminhada de um discípulo de Jesus. Assim como o nosso nascimento físico foi ficando para trás diante das novas possibilidades e fases da vida, o novo nascimento do Espírito agora nos oportuniza a experiência da vida cristã. Chamamos essa etapa de santificação, que culminará um dia com a volta de Jesus.
Mas o que significa viver a vida cristã? Geralmente alguns tentarão responder a essa pergunta com uma lista de proibições e obrigações que deve ser adotada pelo novo discípulo de Jesus. Mas adotar essas regras não significa a mesma coisa que desenvolver uma verdadeira espiritualidade cristã. Viver a vida de Cristo é mais do que meramente se abster de certos comportamentos antigos, embora essa abstenção também seja necessária: “Se o seu irmão fica triste por causa do que você come, você já não anda segundo o amor. Não faça perecer, por causa daquilo que você come, aquele por quem Cristo morreu” (Rm 14.15). Ora, não posso deixar de amar a Deus e aos meus semelhantes. Essa é a lei do amor. “E, deste modo, pecando contra os irmãos, ferindo a consciência fraca que eles têm, é contra Cristo que vocês estão pecando. E, por isso, se a comida serve de escândalo ao meu irmão, nunca mais comerei carne, para que não venha a escandalizá-lo” (1Co 8.12-13).
Uma pergunta que pode ser feita é a respeito do verdadeiro motivo que deve nos levar a evitar certos comportamentos pecaminosos. Ou seja, a pergunta aqui é sobre o nosso interior, e não somente sobre as nossas atitudes. Vejamos o último dos 10 mandamentos: “— Não cobice a casa do seu próximo. Não cobice a mulher do seu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que pertença ao seu próximo (Êx 20.17). “Cobiçar” não é algo exterior, mas interior. É intrigante que esse mandamento complete a lista dos outros nove. Aparentemente, toda vez que quebramos um dos mandamentos, já quebramos esse último, porque ele lida com os nossos desejos. Aqui voltamos ao texto bíblico lido agora há pouco: “Que diremos, então? Que a lei é pecado? De modo nenhum! Mas eu não teria conhecido o pecado, a não ser por meio da lei. Porque eu não teria conhecido a cobiça, se a lei não tivesse dito: ‘Não cobice.’ Mas o pecado, aproveitando a ocasião dada pelo mandamento, despertou em mim todo tipo de cobiça. Porque, sem lei, o pecado está morto. Houve um tempo em que, sem a lei, eu vivia. Mas, quando veio o mandamento, o pecado reviveu, e eu morri” (Rm 7.7-9).
Em outras palavras, Paulo disse: “eu não sabia que eu era pecador; achei que tudo daria certo, porque eu estava observando essas coisas externas e estava indo bem em comparação com outras pessoas” (Schaeffer). Ao lidar com a sua cobiça, Paulo percebeu o seu pecado. Talvez esse agir de Deus em sua vida tenha se dado antes mesmo do seu encontro com Cristo na estrada para Damasco, lá quando Deus já lhe preparava o coração.
Cobiçar é o lado negativo dos mandamentos positivos – “‘Ame o Senhor, seu Deus, de todo o seu coração, de toda a sua alma e de todo o seu entendimento.’ Este é o grande e primeiro mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: ‘Ame o seu próximo como você ama a si mesmo’” (Mt 22.37-39). Ora, mesmo que o amor tenha manifestações exteriores, ele é um fato interior. Assim, amar a Deus de todo o coração, alma e entendimento é não cobiçar contra Deus; e amar ao ser humano como a nós mesmos é não cobiçar contra o ser humano. Quando eu não amo o Senhor como devo, estou cobiçando contra ele. E quando não amo meu próximo como devo, estou cobiçando contra ele.
“Não cobiçarás” é o mandamento que mostra ao ser humano que se julga moralmente reto que ele precisa de um Salvador. Às vezes essa pessoa, que se compara a outras, pode sentir, como Paulo, que está tudo bem. Mas de repente, quando confrontada pela palavra e pelo Espírito de Deus para não cobiçar, ela é forçada a cair de joelhos.
Mas será que qualquer desejo é cobiça? Ora, nem todo desejo é pecado. “O desejo se torna pecado quando deixa de incluir o amor para com Deus e o próximo” (Schaeffer). Ou seja, “deverei amar a Deus o bastante para estar satisfeito... deverei amar os homens o suficiente para não cobiçar, não ter inveja”.
Deus nos fez com desejos corretos, mas se não houver um contentamento correto da minha parte, estarei em revolta contra o Criador, e é claro que a revolta é o problema central do pecado. Quando me falta a devida satisfação, ou é porque esqueci que Deus é Deus, ou então porque parei de me submeter a Ele. Uma disposição calma e um coração que esteja agradecendo em qualquer circunstância é o teste real da extensão do nosso amor a Deus naquele momento. Vejamos o que diz Paulo em Efésios 5.3-4: “Que a imoralidade sexual e toda impureza ou avareza não sejam nem sequer mencionadas entre vocês, como convém a santos. Não usem linguagem grosseira, não digam coisas tolas nem indecentes, pois isso não convém; pelo contrário, digam palavras de ação de graças”. Aqui, as ações de graças estão em contraste com toda a lista de vícios apresentada anteriormente. E logo adiante, Paulo escreve: “...dando sempre graças por tudo a nosso Deus e Pai, em nome de nosso Senhor Jesus Cristo” (5.20). Ora, até onde vão “todas as coisas” pelas quais devemos agradecer? “Sabemos que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8.28).
Um verdadeiro cristão aprende que “todas as coisas” cooperam para o seu bem. Não serão “todas as coisas” com exceção do sofrimento, ou da batalha. “Por que Deus me abandonou?” Paulo escreveu aos filipenses: “Não fiquem preocupados com coisa alguma, mas, em tudo, sejam conhecidos diante de Deus os pedidos de vocês, pela oração e pela súplica, com ações de graças” (4.6). Ou seja, Paulo orienta que não sejamos vencidos pela ansiedade em coisa alguma, ou pela preocupação em coisa alguma, mas que por meio da oração com ações de graças deixemos que nossos pedidos sejam conhecidos diante de Deus.
Ou seja, devemos agradecer a Deus sempre por todas as coisas! “Portanto, assim como vocês receberam Cristo Jesus, o Senhor, continuem a viver nele, estando enraizados e edificados nele, e confirmados na fé, como foi ensinado a vocês, crescendo em ação de graças” (Cl 2.6-7). E mais adiante: “Que a paz de Cristo seja o árbitro no coração de vocês, pois foi para essa paz que vocês foram chamados em um só corpo. E sejam agradecidos... E tudo o que fizerem, seja em palavra, seja em ação, façam em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai... Continuem a orar, vigiando em oração com ação de graças” (Cl 3.15, 17; 4.2). Ainda: “Em tudo, deem graças, porque esta é a vontade de Deus para vocês em Cristo Jesus. Não apaguem o Espírito” (1Ts 5.18-19).
O início da rebelião dos seres humanos contra Deus foi, e é, a falta de um coração agradecido: “Porque, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças. Pelo contrário, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, e o coração insensato deles se obscureceu” (Rm 1.21). A rebelião é a recusa proposital de ser criatura diante do Criador e de ser agradecido. O amor precisa trazer consigo um “muito obrigado” que não seja superficial ou meramente “oficial”, mas um “muito obrigado” dito de coração, fruto da ação de Deus em nós. Como faz falta esse espírito de gratidão em nossos dias, diante de tanto egoísmo! Isso não significa, é claro, ser indiferente à dor que existe no mundo e deixar de lutar contra ela.
Será que de fato confiamos em Deus como nosso Criador e Salvador? Como cristãos, costumamos dizer que vivemos num universo sobrenatural e que existe uma batalha sendo travada, desde a queda do ser humano, e que essa batalha acontece tanto no mundo visível como no invisível. Se cremos realmente nisso, podemos estar contentes (satisfeitos) e ainda assim lutarmos contra o mal. Além disso, sabemos que é direito de Deus colocar os cristãos onde ele julgar melhor para a batalha. Portanto, se o contentamento e as ações de graças desaparecem, não estamos amando a Deus como deveríamos, e o desejo apropriado tornou-se cobiça contra Deus.
Além disso, devemos amar as pessoas o suficiente para não inveja-las. Não se trata somente da inveja do dinheiro, mas de todas as coisas. Poderá ser até mesmo inveja dos dons espirituais de outra pessoa. Se uma pessoa tem algo, e o perde, você tem algum tipo de prazer secreto nisso? Não responda depressa demais, porque você mentirá. Se isso está ocorrendo, meus desejos se tornaram em cobiça, e ela acaba refletindo uma falta de amor para com as pessoas. Quando tenho um sentimento errado porque outras pessoas possuem o que eu não tenho, e quando deixo crescer esse sentimento, rapidamente isso me fará não gostar daquela pessoa. À medida que o Espírito Santo nos faz mais honestos conosco mesmos, devemos reconhecer que muitas vezes criamos uma aversão para com alguém porque tivemos um desejo errado para com alguma coisa dessa pessoa. O passo seguinte ao sentimento seria o ato em si, como mentir sobre a pessoa, ou prejudicá-la de alguma forma.
“‘Todas as coisas são lícitas’, mas nem todas convêm; ‘todas as coisas são lícitas’, mas nem todas edificam. Ninguém busque o seu próprio interesse, e sim o de seu próximo” (1Co 10.23-24). O amor não procura os seus próprios interesses (1Co 13.5). Quando lemos essas passagens e entendemos que fracassar nessas áreas é realmente cobiçar, faltar com o amor, cada um de nós precisa se ajoelhar como Paulo fez quando viu o mandamento para não cobiçar. Esse é o caminho para a superação de uma vida cristã artificial e superficial. Nunca é demais lembrar que gostamos de ocultar o nosso interior de nós mesmos.
Mas a espiritualidade cristã não é somente negativa: “Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim. E esse viver que agora tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou por mim” (Gl 2.19-20). A vida cristã verdadeira não é uma vida externa nem uma vida de negações básicas; não é detestar a vida, como costumamos fazer quando estamos ficando desanimados ou quando estamos com outros problemas psicológicos. A vida cristã também envolve os aspectos positivos da nova vida, e parar na atitude negativa – ou seja, do que não deve mais ser praticado – é perder o seu sentido: “Fomos sepultados com ele na morte pelo batismo, para que, como Cristo foi ressuscitado dentre os mortos pela glória do Pai, assim também nós andemos em novidade de vida” (Rm 6.4).
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