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Foto do escritorChristian Lo Iacono

Deus é o evangelho - Parte IV


Este é aquele que veio por meio de água e sangue, Jesus Cristo. Ele não veio somente com a água, mas com a água e com o sangue. E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade.

Pois há três que dão testemunho: o Espírito, a água e o sangue, e os três são unânimes num só propósito.

Se aceitamos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus é maior. E este é o testemunho de Deus, que ele dá a respeito do seu Filho.

Aquele que crê no Filho de Deus tem, nele, esse testemunho. Aquele que não dá crédito a Deus faz de Deus um mentiroso, porque não crê no testemunho que Deus dá a respeito do seu Filho.

E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna, e esta vida está no seu Filho.



A interpretação mais satisfatória a respeito do v. 6 parece ter sido a dada originalmente por Tertuliano. Ele entendia “água” como se referindo ao batismo de Jesus, momento em que Ele foi declarado “o Filho” e foi comissionado para a sua crucificação e morte, e “sangue” como se referindo à sua morte. Esse sentido se harmoniza com o que Irineu desvendou do ensino herético dos gnósticos, que distinguiam “Jesus”, mero homem, de “o Cristo”. Sabendo que Jesus era o Cristo antes e durante o batismo, e durante e após a cruz, João descreveu-o como “aquele que veio por meio de água e sangue” (v. 6a). Ou seja, aquele que veio do céu é aquele mesmo que passou “por meio da água e sangue”, o Deus-homem.


“O Espírito é o que dá testemunho” (v. 6b), porque é da sua natureza e função. Ele dá testemunho de Cristo (1Jo 4.2), e é “o Espírito da verdade” (Jo 15.26; 16.13; 1Jo 4.6). Ora, a verdade não pode ser escondida. Ao que parece, o texto aqui se refere ao testemunho interno do Espírito Santo, que nos abre os olhos para vermos a verdade em Jesus. A revelação da majestade da glória de Deus no evangelho é uma das razões por que não é irracional nem arbitrário crer no evangelho, por causa do testemunho interno do Espírito Santo (1Jo 2.20, 27; 4.1-6, 13-14; 1Co 12.3). Temos aqui, então, duas espécies de testemunho, objetivo e subjetivo, histórico e experimental: “água e sangue” por um lado; e “o Espírito” por outro.


v. 9 O Espírito, e água e o sangue dão testemunho de Cristo, e a razão por que concordam é que o próprio Deus está por trás deles. Foi Deus quem deu testemunho do seu Filho na história, na água e no sangue, e é Deus quem dá testemunho dele hoje, por meio do seu Espírito em nossos corações. E como admitimos o testemunho humano, com o depoimento de duas ou três testemunhas, certamente devemos acatar o testemunho de Deus.


v. 11 Historicamente, o testemunho de Deus acerca de Jesus não é somente de que Ele é o Cristo divino-humano, mas que é o doador da vida, o “salvador do mundo” (4.14), não somente de que Ele é o Filho, mas que nele está a vida.


Quando João Calvino refletiu sobre o fundamento de nossa confiança no evangelho, ficou admirado de que a Igreja Católica Romana havia tornado a Palavra dependente da autoridade da igreja: “Um erro muito pernicioso prevalece amplamente, ensinando que a Escritura tem muita importância somente quando essa importância lhe é concedida por meio da aprovação da igreja. Como se a verdade eterna e inviolável de Deus dependesse da decisão de homens!... Mas, se isto fosse verdade, o que aconteceria às consciências infelizes que procuram a firme segurança da vida eterna, se todas as promessas da vida eterna consistissem e dependessem unicamente do julgamento dos homens?” (Institutas).


Então, como podemos saber com certeza que o evangelho é a Palavra de Deus? Como podemos estar certos não apenas de que os eventos relacionados a Cristo aconteceram, mas também de que o significado bíblico atribuído aos grandes acontecimentos do evangelho é o seu verdadeiro significado – o significado de Deus? Calvino prossegue: “O testemunho do Espírito é mais excelente do que toda a razão. Pois, assim como somente Deus é a testemunha adequada de Si mesmo em sua Palavra, assim também a Palavra não encontrará aceitação no coração do homem antes de haver sido selada pelo testemunho interno do Espírito. O mesmo Espírito que tem falado pela boca dos profetas tem de penetrar nosso coração e nos persuadir de que os profetas proclamaram com fidelidade o que lhes havia sido ordenado por Deus... porque, enquanto o Espírito não ilumina a nossa mente, ela vagueia em meio a muitas dúvidas.”


Mas como acontece essa persuasão? Na verdade, o Espírito nos vivifica, como que dentre os mortos, para vermos e experimentarmos a divina realidade da glória de Cristo no evangelho (2Co 4.4-6). Essa percepção autentica o evangelho como a própria Palavra de Deus. Calvino disse: “Nosso Pai celestial, revelando a sua majestade [no evangelho], exalta a reverência para com a Escritura, acima do âmbito da controvérsia”. Ou seja, o testemunho de Deus quanto ao evangelho é a imediata, incontestável e vivificadora revelação, feita à mente, a respeito da majestade de Deus manifestada na própria Palavra – e não uma nova revelação a respeito da Palavra. Calvino continua:


“Portanto, iluminados pelo poder [do Espírito], cremos que as Escrituras são de Deus não por causa de nosso próprio julgamento [observe isso!], nem por causa do julgamento de outrem. Todavia, acima do julgamento humano, afirmamos, com plena certeza (como se estivéssemos contemplando a majestade do próprio Deus), que a Escritura veio até nós da própria boca de Deus, por meio do ministério de homens” (Institutas). Voltamos a 1João 5.6, 9: “E o Espírito é o que dá testemunho, porque o Espírito é a verdade... Se aceitamos o testemunho dos homens, o testemunho de Deus [o Espírito] é maior. E este é o testemunho de Deus, que ele dá a respeito do seu Filho”.


Em outras palavras, o “testemunho de Deus”, ou seja, o testemunho interno do Espírito, é maior do que qualquer testemunho humano, incluindo o testemunho de nosso próprio julgamento. E o que é esse testemunho de Deus? Não é meramente uma palavra entregue para nosso julgamento e reflexão, pois, desse modo, nossa confiança repousaria em nossa própria reflexão. Então, o que é? O versículo 11 diz: “E o testemunho é este: que Deus nos deu a vida eterna”. Assim, entendo essas palavras como significando que Deus testemunha para nós sobre sua realidade, a realidade de seu Filho e a do evangelho, por nos dar vida dentre os mortos, de modo que nos tornamos vivos para a sua glória auto autenticadora no evangelho. Nesse instante, não argumentamos com premissas para chegarmos a conclusões, mas percebemos que estamos vivos, e não existe qualquer julgamento humano anterior no qual possamos confiar. Quando Lázaro ressuscitou dentre os mortos, por meio da chamada ou “testemunho” de Cristo, ele sabia, sem argumentar, que estava vivo e que a chamada o vivificou.


Quando perguntaram a Calvino: “Como podemos estar certos de que [o evangelho] veio de Deus, se não recorrermos aos decretos da igreja?”, ele respondeu com admiração: “Isto é como se alguém perguntasse: Como aprendemos a distinguir a luz das trevas, o branco do preto, o doce do amargo? De fato, as Escrituras exibem uma evidência tão clara a respeito de sua própria verdade como as coisas brancas ou pretas a exibem de suas próprias cores, ou as coisas amargas e doces o fazem de seu próprio sabor”. Portanto, o testemunho interno do Espírito, que nos persuade de que o evangelho é verdade, não acrescenta qualquer informação nova ao que já está no evangelho. O que ocorre é o que Paulo escreveu: “Porque Deus, que disse: ‘Das trevas resplandeça a luz’, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo” (2Co 4.6). Pelo Espírito, somos capacitados a ver o que realmente existe no evangelho. Packer diz:


“Calvino afirma que as Escrituras autenticam a si mesmas por meio do testemunho interno do Espírito Santo. O que é esse testemunho interno? Não é uma qualidade especial de experiência, nem uma revelação nova e particular, nem uma ‘decisão’ existencial, e sim uma obra de iluminação pela qual, mediante o instrumento de testemunho verbal, os olhos cegos do espírito são abertos, e as realidades divinas são reconhecidas e recebidas pelo que elas realmente são. Calvino diz que este reconhecimento é tão imediato e não-analisável como o perceber uma cor ou um sabor por meio de um senso físico – é um evento a respeito do qual podemos dizer apenas que, quando os estímulos apropriados estavam presentes, o evento aconteceu; e, quando ele aconteceu, sabemos que ele aconteceu” (Calvin the Theologian).


Assim, a doutrina do testemunho interno do Espírito Santo é válida porque o evangelho é uma revelação da glória de Cristo, que é a imagem de Deus. Se minimizamos a majestade de Deus como o maior bem nas boas-novas, despimos o evangelho do fundamento plenamente importante da fé salvadora. Isso se torna ainda mais claro quando consideramos a maneira de Jonathan Edwards enfrentar a questão de como as pessoas – especialmente as pessoas comuns, iletradas, como os índios na fronteira da Nova Inglaterra – podiam ter fé inabalável que sofreriam até o martírio. Porém, Edwards enfatiza que a convicção de verdade do evangelho tem de ser tanto racional quanto espiritual. Embora uma pessoa tenha afeições religiosas fortes, que procedem de uma persuasão da verdade do evangelho, essas afeições são inúteis “se a persuasão dessas pessoas não for uma persuasão ou convicção racional” (Afeições Religiosas). Ele prossegue:


“Ao usar as palavras ‘convicção racional’, estou falando sobre uma convicção fundamentada na evidência genuína, ou sobre aquilo que é uma boa razão, ou uma base justa de convicção. Os homens podem estar fortemente persuadidos de que a religião cristã é verdadeira, quando a persuasão deles não está edificada sobre a evidência, mas está totalmente edificada sobre a educação e a opinião de outras pessoas; assim como muitos dos muçulmanos são fortemente persuadidos da verdade da religião islâmica, porque seus pais, vizinhos e a nação creem no islamismo. Esse tipo de crença na veracidade da religião cristã não é diferente da crença dos muçulmanos, pois ambas são edificadas sobre a mesma base. E, ainda que os elementos da crença sejam melhores, isso não torna melhor a própria crença, pois embora a coisa crida seja verdadeira, esse tipo de crença não se deve à sua verdade, e sim à educação. Portanto, assim como a convicção cristã não é melhor do que a convicção dos muçulmanos, assim também as afeições que fluem dessa convicção não são melhores em si mesmas do que as afeições religiosas dos muçulmanos”.


Ou seja, muitas pessoas confessam ter uma fé em Cristo dessa maneira. Não é uma fé alicerçada na glória de Cristo mesmo, e sim na tradição, na educação ou na opinião de outras pessoas. A fé salvadora em Cristo está edificada sobre “evidência genuína, ou sobre aquilo que é uma boa razão, ou uma justa base de convicção”. Mas qual é essa evidência genuína? Para Edwards, para que a fé e seus frutos sejam verdadeiramente graciosos, ou seja, salvíficos, “é necessário não somente que a crença seja uma crença ou convicção racional, mas também que ela seja espiritual”. Ele diz isso porque a “boa razão” e a “base justa” de convicção têm de surgir de uma contemplação espiritual – ou seja, capacitada pelo Espírito – da glória de Deus, no evangelho:


“Uma convicção espiritual da verdade sobre as grandes coisas do evangelho é uma convicção verdadeira quando resulta de possuirmos, na mente, uma visão ou apreensão espiritual dessas coisas. Isso também é evidente das Escrituras, que frequentemente nos mostram que uma crença salvadora na realidade e na divindade das coisas propostas e reveladas para nós no evangelho resulta da obra do Espírito de Deus iluminando nossa mente”. Comentando o texto de Paulo em 2Co 4.6 (“‘Das trevas resplandeça a luz’, ele mesmo resplandeceu em nosso coração, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Jesus Cristo”, Edwards diz: “nada pode ser mais evidente que o fato de que uma crença salvadora no evangelho é mencionada nesse versículo, pelo apóstolo, como algo que surge da mente sendo iluminada para contemplar a glória divina das coisas que o evangelho exibe”.


Tanto Calvino quanto Jonathan Edwards enfatizaram que a fé salvadora no evangelho deve ser fundamentada no ato de o Espírito capacitar-nos a ver a glória de Deus na face de Cristo. Assim, a glória de Deus na face de Cristo – ou seja, a glória de Cristo, que é a imagem de Deus – é essencial ao evangelho, e nada secundário. Paulo chama o evangelho de “o evangelho da glória de Cristo”. Essa glória é o que os acontecimentos do evangelho têm o propósito de revelar. Se uma pessoa vem ao evangelho e vê os acontecimentos da Sexta-Feira da Paixão e da Páscoa e crê que eles aconteceram e podem trazer paz à mente, mas não vê e experimenta essa glória divina, essa pessoa pode não ter a fé salvadora.


Ver a glória de Deus em Cristo, no evangelho, é essencial à conversão. Edwards expressou isso como toda a sua capacidade, enquanto lutava contra a dolorosa realidade pastoral das falsas conversões. Um crente professo pode ter muitas palavras corretas e não ter qualquer fruto espiritual. O que está errado? A mudança sobrenatural, das trevas para a luz, não aconteceu. Os efeitos do pecado e Satanás, que cegam o espírito humano, não foram removidos. Os olhos do coração ainda são incapazes de ver e experimentar a glória de Cristo, que é a imagem de Deus. Edwards afirma:


“Quando as pessoas são convertidas, elas são chamadas de uma região para outra, de uma região de trevas para a terra da luz... Na conversão, elas podem ver as coisas espirituais. Os convertidos são trazidos a uma nova visão das coisas sobre as quais antes eles apenas ouviam falar: uma visão de Deus, uma visão de Cristo, uma visão do pecado e da santidade, uma visão do caminho para a salvação, uma visão do mundo invisível e espiritual, uma visão da felicidade do gozo da parte de Deus e de seu favor... Eles são convencidos do ser de Deus, de um modo que nunca experimentaram antes... Essas coisas não lhes são confirmadas somente por meio do raciocínio; eles são convencidos de que elas realmente existem porque veem que elas existem” (Christians a Chosen Generation).


Toda a Escritura tem a marca da glória de Deus, mas os acontecimentos da crucificação e ressurreição de Cristo, apresentados no evangelho, refletem a glória de Deus com maior esplendor. Deus designou o evangelho como o principal lugar em que sua glória seria revelada após muitos séculos. A importância de ver essa glória se torna ainda mais clara e urgente quando consideramos como essa verdade afeta a obra de evangelização, missões e os multiformes ministérios da igreja de Cristo na tarefa de transformar a vida das pessoas.

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