A igreja cristã foi criada para ser cheia do Espírito Santo e com disposição para o aprendizado da doutrina cristã, a comunhão, o culto e o testemunho.
Texto: At 2.41-47
Diante da grande diversidade de igrejas cristãs em nossos dias – realidade um pouco diferente do contexto da igreja primitiva em seu início –, como saber se suas diferentes características são apenas o resultado de compreensões diversas em temas de importância secundária? Ou será que essas diferenças decorrem simplesmente de vocações ou dons complementares? Ou é possível que essa diversidade possa estar comprometendo a própria identidade da igreja de Cristo?
A pregação de Pedro
Num belo e contundente sermão pregado após o derramamento do Espírito Santo, pregação essa marcada pela centralidade de Cristo do começo ao fim, Lucas, o autor de Atos dos Apóstolos, escreve que Pedro, ao final, ainda testemunhou, e, por fim, exortou: “salvem-se desta geração perversa” (v. 40). Ele enquadrou o pecado e suas consequências de maneira dramática, convocando o povo para uma mudança de comunidade (não era um convite a conversões particulares): era preciso ser salvo!
A aceitação dessa pregação, a palavra do evangelho de Cristo, o mesmo de quem, por meio de quem e para quem tudo veio a existir, o Verbo (o Logos), multiplicou a comunidade dos crentes 26 vezes (120 pessoas X 26 = 3.120 pessoas aproximadamente). Aparentemente, nenhum sinal “milagroso” foi visto. Mas aquelas pessoas nasciam de novo do Espírito! Elas todas haviam recebido o Espírito Santo, conforme a profecia de Joel.
Mas o que havia nessa mensagem cristocêntrica de Pedro? Em síntese, Pedro anunciou: 1) a humanidade e a divindade de Jesus – percebida pelos seus milagres. Deus reverteu o veredito humano e tirou Jesus do lugar de maldição para exaltá-lo ao lugar de honra; 2) a morte de Jesus executada pelos iníquos, mas conforme o desígnio de Deus; 3) a ressurreição de Cristo, conforme anunciada pelos profetas e testemunhada de forma ocular; 4) a ascensão de Cristo até a destra do Pai, para derramar o Espírito Santo; 5) a dádiva do perdão e do Espírito aos arrependidos, que creram e foram batizados, vindo a encontrar a verdadeira liberdade; 6) o ingresso dos crentes na nova comunidade, chamada igreja.
Qual o desafio da pregação do evangelho hoje?
Como o evangelho tem sido pregado hoje? No que ele foi transformado? Já na sua época, Paulo escreveu que os gálatas haviam recebido um “outro evangelho” (1.6). O que, afinal, significa dizer que uma pregação é bíblica em nossos dias? É quando ela cita um texto e decora o seu lugar na Bíblia, como é comum se fazer em escolas bíblicas? É certo que isso tem a sua importância. Mas mais importante ainda é encontrar o lugar do evangelho, das dádivas de Deus em Cristo, e o lugar da lei, ou seja, tudo aquilo que Deus demanda de nós, na longa história de salvação registrada nas Escrituras, de modo de que as pessoas possam, de fato, após conhecer o seu pecado, ser agraciadas com o evangelho da graça de Deus, para que desfrutem, então, de vida, e vida com abundância, por meio de Jesus.
Por vezes, se ouve a crítica, por parte de alguns crentes que se acham mais “práticos” ou mais “espirituais”, de que alguns cristãos “só se preocupam com a palavra!” Ora, na sequência da história da igreja em Atos, vê-se que “crescia a palavra de Deus, e, em Jerusalém, se multiplicava o número de discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé” (At 6.7). Ou seja, uma coisa leva à outra: a palavra cresce, e os discípulos se multiplicam! Já nos demos conta de quantas vezes “a palavra” é sujeito de uma ação só no livro de Atos? Antes da morte do rei Herodes, ele estava assentado no trono, vestido em trajes reais, e falava ao povo, que, então, clamava: “é a voz de um deus. No mesmo instante, um anjo do Senhor o feriu, por ele não haver dado glória a Deus; e, comido de vermes, expirou. Entretanto a palavra do Senhor crescia e se multiplicava” (At 12.21-24).
A Igreja do Caminho
De certa forma, portanto, a crítica é verdadeira. Nós, da Igreja do Caminho, nos entendemos como seguindo a tradição dos nossos pais apostólicos, e nos enxergamos como subalternos na ação de Deus no mundo, de modo que confiamos, sim, na Palavra de Deus. Não somos os protagonistas nesse processo todo. O protagonismo é de Deus e de sua Palavra, que vai abrindo todos os caminhos e trabalha para a glória de si mesmo. Deus é quem vela pela sua Palavra para cumpri-la. Nisto reside a nossa verdadeira alegria: nos gloriamos na glória de Deus. A autoglorificação é escravizante! Ela nunca sacia. Quando fazemos ídolos de nós mesmos, cada vez ficamos mais presos em nosso pecado, e a sensação de vazio só aumenta. Daí a célebre frase de Jesus: “conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8.32).
O nome “Igreja do Caminho” veio de uma leitura do capítulo 9 de Atos. Ali, os seguidores de Jesus são acusados de pertencerem a um grupo denominado “do Caminho”. No mesmo trecho, Lucas está descrevendo “o caminho” de Saulo até Damasco, quando, de repente, ele é visitado pelo Senhor! Sim, Deus também cruzou o nosso caminho, e decidimos deixar Deus ser Deus em nossas vidas. Então, percebemos que o caminho, na verdade, não era nosso, mas Dele. Não nos contentaremos com nada menos do que tudo aquilo que o evangelho de Cristo nos compartilha. Vejamos que a pergunta de Jesus a Saulo nessa estrada: “por que me persegues?” (At 9.4) A fidelidade de Deus ao seu projeto, sua igreja, é tão grande, que aqueles que se opõem a essa igreja são vistos como perseguindo o próprio Cristo. Ora, não foi isso que Ele mesmo ensinou aos seus discípulos: “se me perseguiram a mim, também perseguirão a vós outros”? Tudo é uma questão de identidade. Por outro lado, Jesus também disse: “se guardaram a minha palavra, também guardarão a vossa” (Jo 15.21). Ora, como é bom servir a Jesus, para a glória dele, sabendo que tudo é dele, e que estamos inteiramente em suas mãos!
Uma igreja cheia do Espírito
Mas, afinal, quais são as características de uma igreja cheia do Espírito? Ora, essas informações estão bem diante de nós, nesse texto de Atos, que registra um resumo da saúde da igreja após ter sido visitada e cheia do Espírito. É bom dizer, porém, que a igreja não começou no Pentecostes. No mínimo, o “povo de Deus” (ekklesia, “assembleia”) tem 4 mil anos de história, desde os dias de Abraão, que recebeu de Deus uma promessa. Isso quer dizer que o Espírito de Deus não começou a agir na vida do seu povo a partir do século XX, como pensam alguns, com o surgimento do movimento pentecostal. Mas no evento Pentecostes, o povo de Deus tornou-se casa dele; virou corpo de Cristo. E as evidências da presença do Espírito e do seu poder na vida do povo de Deus são descritas nos versículos 42 a 47 de At 2.
Disposição para o aprendizado
Uma igreja cheia do Espírito está disposta ao aprendizado da doutrina dos apóstolos e persevera nela (At 2.42). A palavra “discípulo” aparece quase 300 vezes nos Evangelhos e em Atos, e parece caracterizar muito bem o processo no qual todos nos encontramos em nossa caminhada com Jesus. Aliás, essas foram as últimas palavras de Jesus antes de ser assunto ao céu: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra. Portanto, vão e façam discípulos de todas as nações, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a guardar todas as coisas que tenho ordenado a vocês. E eis que estou com vocês todos os dias até o fim dos tempos” (Mt 28.18-20). Pode-se dizer que o Espírito Santo abriu uma escola em Jerusalém naqueles dias, com mais de 3000 alunos! Os professores eram os apóstolos que Jesus escolhera, porque conviveram com Ele e guardaram as suas tradições. Até imagino que, numa cultura de consumo, a palavra “discípulo” possa não fazer muito sentido. Porque ela pressupõe alguém de coração “ensinável”, disposto a obedecer a Jesus, e que não combina muito bem com a ideia de consumo, de “ser servido”, tão comum inclusive em nossas igrejas hoje, que muito se assemelham a centros de entretenimento e serviços.
Além disso, é bom dizer que o anti-intelectualismo e a plenitude do Espírito são incompatíveis. Ora, o Espírito Santo é chamado por Jesus de “Espírito da Verdade” (Jo 14.17; 15.26; 16.13; 17.17). Esses discípulos, portanto, não pensaram que seu único professor agora era o Espírito Santo, e que eles poderiam dispensar os mestres humanos! Ao contrário, eles se assentavam aos pés dos apóstolos, ansiosos por receber instruções, e nisso perseveravam! A autoridade didática dos apóstolos também era reforçada pelos sinais que se seguiam (2.43)! Como o ensino dos apóstolos chegou a nós em sua forma definitiva pelo Novo Testamento, a devoção contemporânea ao ensino apostólico significará submissão à autoridade do Novo Testamento. Assim, uma igreja cheia do Espírito é uma igreja neotestamentária, no sentido de que ela estuda o Novo Testamento e se submete ao seu conteúdo. O Espírito de Deus leva o seu povo a se submeter à Palavra de Deus. Nessa igreja, portanto, os pastores expõem as Escrituras; os pais ensinam as Escrituras às crianças; e os membros leem e praticam as Escrituras (2Tm 3.15-17).
Comunhão, culto e testemunho
Uma igreja cheia do Espírito também persevera na comunhão (koinonia, de koinos, “comum”; At 2.42, 44-46); ou seja, ela exerce cuidado com empenho e dedicação. A palavra koinonia testemunha a vida comunitária da igreja: 1) expressando o que compartilhamos, inclusive o Pai, o Filho e o Espírito Santo, com quem temos comunhão (1Jo 1.3; 2Co 13.13); 2) e expressando o que partilhamos uns com os outros. Koinonia é a palavra que Paulo usou para a “oferta” que recolheu entre as igrejas gregas (2Co 8.4; 9.13; koinonikos é a palavra para “generoso”). Outro uso da palavra está em Hb 12.15: “Cuidem para que ninguém fique afastado da graça de Deus, que nenhuma raiz de amargura, brotando, cause perturbação e, por meio dela, muitos sejam contaminados”. Portanto, o cuidado de uns para com os outros em amor é uma das características indispensáveis e mais necessárias hoje para uma igreja que se pretende cristã.
Uma igreja cheia do Espírito celebra a Ceia do Senhor e adora a Deus diariamente, em espírito de unanimidade no templo e também de casa em casa (At 2.42, 46). Tudo aquilo que ela faz é em louvor da glória de Deus, porque ela sabe que existe exatamente para a adoração: “porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele seja a glória para sempre. Amém!” (Rm 11.36). A igreja, assim, expressa tanto alegria quanto reverência nessa adoração: “Os discípulos, porém, estavam cheios de alegria e do Espírito Santo” (At 13.52). E os filhos de Deus sabem que não são o centro das atenções de Deus. Por isso, eles são gratos a Ele em Cristo por tê-los libertado de si mesmos e de seus ídolos, para que adorem a Deus, em quem, de fato, eles encontram verdadeira satisfação e felicidade. “Singeleza” no versículo 46 pode significar generosidade, franqueza, humildade, e expressa esse contentamento que só Deus pode dar ao ser humano.
Uma igreja cheia do Espírito também evangeliza, e faz isso de forma natural, em razão de sua nova vida (At 2.47). Ela não pode deixar de falar de tudo aquilo que experimenta em Cristo. Ora, ela é testemunha de Jesus (At 1.8). Assim, enquanto essa igreja vive a sua fé, Deus acrescenta os salvos, ainda que Ele tenha escolhido fazer isso por meio dos discípulos, seus vasos de barro (v. 47). Tal fato mostra que os discípulos eram vistos e ouvidos pela comunidade ao redor. Ou seja, a igreja de Cristo era uma igreja “para fora”, e muito estimada, tendo sido concebida para ser sal da terra e luz do mundo, e não para ficar entretida em eventos eclesiásticos internos, sem relevância testemunhal. Motivo? Porque esse testemunho implica na salvação dos pecadores.
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