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Foto do escritorChristian Lo Iacono

Guardar a lei não é o mesmo que seguir a Cristo

Atualizado: 7 de fev.

¹⁷ Pondo-se Jesus a caminho, um homem correu ao seu encontro e, ajoelhando-se diante dele, perguntou-lhe:

— Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?

¹⁸ Jesus respondeu:

— Por que você me chama de bom? Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus.

¹⁹ Você conhece os mandamentos: "Não mate,não cometa adultério,não furte,não dê falso testemunho,não defraude ninguém, honre o seu pai e a sua mãe."

²⁰ Então o homem respondeu:

— Mestre, tudo isso tenho observado desde a minha juventude.

²¹ E Jesus, olhando para ele com amor, disse:

— Só uma coisa falta a você: vá, venda tudo o que tem, dê o dinheiro aos pobres e você terá um tesouro no céu; depois, venha e siga-me.

²² Ele, porém, contrariado com esta palavra, retirou-se triste, porque era dono de muitas propriedades.

²³ Então Jesus, olhando ao redor, disse aos seus discípulos:

— Como é difícil para os que têm riquezas entrar no Reino de Deus!

²⁴ Os discípulos estranharam estas palavras, mas Jesus insistiu em dizer-lhes:

— Filhos, como é difícil entrar no Reino de Deus!

²⁵ É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus.

²⁶ Eles ficaram muito admirados, dizendo entre si:

— Sendo assim, quem pode ser salvo?

²⁷ Jesus, olhando para eles, disse:

— Para os seres humanos é impossível; contudo, não para Deus, porque para Deus tudo é possível.

²⁸ Então Pedro começou a dizer-lhe:

— Eis que nós deixamos tudo e seguimos o senhor.

²⁹ Jesus respondeu:

— Em verdade lhes digo que não há ninguém que tenha deixado casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou campos por minha causa e por causa do evangelho,

³⁰ que não receba, já no presente, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e campos, com perseguições; e, no mundo por vir, receberá a vida eterna.

³¹ Porém muitos primeiros serão últimos, e os últimos serão primeiros.


Marcos 10:17-31




O chamado ao discipulado envolve um custo. Os pescadores têm de abandonar os barcos e redes (1.16-20); o publicano, a mesa na coletoria (2.14); e Pedro, sua falsa concepção do Messias (8.33). Outro discípulo, Simão Cireneu, terá de deixar sua segurança de espectador e tomar literalmente a cruz de Jesus (15.21). O chamado para seguir Jesus não é uma obrigação adicional na vida; antes, julga, substitui e subordina todas as obrigações àquele que nos diz: "Siga-me". Tudo que impeça seguir esse chamado, incluindo a obrigação para com os pais (Mt 8.21), é um perigo. Billy Graham disse o seguinte sobre essa história: "O jovem veio com a pergunta correta para o homem certo e recebeu a resposta correta, mas tomou a decisão errada."

O homem rico na presente história, com suas posses e posição social, representa um contraste marcante com as crianças simples da história anterior (vv. 13-16). O homem recebe uma imagem mais clara do reino que qualquer outra pessoa até agora no Evangelho de Marcos, demonstrando grande desejo de aceitá-lo. No entanto, seus muitos bens provam ser uma desvantagem maior na herança da vida eterna que os déficits e escassez das criancinhas na história anterior.

17 Jesus ainda está na Judeia, continuando "no caminho" para Jerusalém. Mateus identifica o homem que se aproximou de Jesus como jovem (19.20), e Lucas o chama de "homem de destaque" (18.18); daí o nome comum dessa história ser "o jovem governante rico". Marcos, no entanto, o chama em um grego simples de "um homem" ou "uma certa pessoa". As designações não especificadas como esta são típicas de Marcos, e, na presente instância, "um homem" acentua a aplicabilidade da história para todos os leitores. O homem "correu em sua direção e se pôs de joelhos diante dele" [Jesus]. Sua pressa e submissão sugerem seu desejo de se tornar um discípulo: "Bom Mestre", perguntou ele, "que farei para herdar a vida eterna?" Ninguém que tenha ouvido Jesus ensinar na Galileia fez uma pergunta de tal magnitude, nem mesmo os próprios discípulos de Jesus. Finalmente, é feita a Jesus a pergunta essencial, capaz de divulgar o sentido de seu ministério.

18,19 Ironicamente, Jesus retém a resposta esperada pelo jovem rico. Talvez ele sinta que a pergunta proferida pelos lábios desse homem não é a pergunta de seu coração. "Por que você me chama de bom?", retrucou Jesus. "Ninguém é bom, a não ser um, que é Deus". Essa resposta é uma fonte frequente de perplexidade, mas considerando-se a postura de servo de Jesus e o fato de que ele buscava guardar sua identidade messiânica, talvez não seja tão surpreendente quanto se supõe. É como Ele se expressa em João 5.19: "o Filho não pode fazer nada por si mesmo, senão somente aquilo que o Pai fazer". "O Pai era tudo para o Filho, e o Filho não pensou mais sobre sua própria bondade que um homem honesto pensa sobre sua honestidade. Quando o homem bom vê a bondade, ele pensa sobre seu próprio mal: Jesus não tinha nada de mal para pensar, mas também não pensa sobre sua bondade; ele se deleita em seu Pai” (C. S. Lewis, George MacDonald: An Anthology [New York: Macmillan, 1978], p. 25).

Os rabinos acolhiam bem uma série de títulos (12.38), mas apenas raramente um rabino era tratado por "bom mestre", por medo de blasfêmia contra Deus, o único que é bom. De forma similar, a resposta de Jesus no versículo 18 direciona o homem de forma inequívoca a Deus. O pronunciamento de que "ninguém é bom, a não ser um, que é Deus" pode ser lido "exceto o único Deus", direcionando de forma expressa o homem para o único Deus verdadeiro de Israel (Dt 6.4).

Além disso, no versículo 19, Jesus apresenta a esse homem um resumo dos mandamentos éticos no Decálogo (Êx 20.12-16; Dt 5.16-20). Às proibições contra o assassinato, adultério, roubo, falso testemunho e desonrar os pais, Jesus acrescenta a ordem para que ele não defraude ninguém. Esse mandamento não se encontra nos Dez Mandamentos, mas pode ter sido acrescentado por causa de sua relevância para o homem rico, uma vez que a riqueza é com frequência adquirida às custas do pobre. A ênfase expressa tanto na bondade de Deus quanto em seus mandamentos na resposta de Jesus para o homem sugere que, apesar de seu zelo moral (ou talvez por causa dele) algo esteja faltando em seu relacionamento com Deus.

Se "ninguém é bom, a não ser um, que é Deus", então o homem, diante de Deus, ainda não tem algo, mesmo se guardasse todos os mandamentos. A pergunta inesperada de Jesus em sua resposta tem a intenção de fazer com que o homem passe da confiança em sua retidão moral para o propósito derradeiro de sua vida — conhecer a Deus.

20 O homem pergunta o que ele deveria fazer a fim de herdar a vida eterna (v. 17), o que sugere que ele compreende o comportamento como a exigência derradeira da religião. Jesus, do mesmo modo, direciona-o para a lei moral conforme afirmado na segunda metade do Decálogo (v. 19). Os mandamentos de Deus estão na raiz do comportamento correto e direcionam a pessoa para Deus. "Mestre", disse ele, "tudo isso tenho observado desde a minha juventude". O homem, pela segunda vez, dirige-se a Jesus como "Mestre": o leitor ouve a mesma garantia do registro moral notável do homem.

Os leitores cristãos podem estar inclinados a duvidar da sinceridade do que esse homem diz. Os Dez Mandamentos, com a única exceção do mandamento final contra a cobiça, falam só de atos, e estes poderiam ser guardados de fato — mesmo se a intenção da pessoa fosse outra. Paulo, em seus dias antes de se tornar cristão, também pôde anunciar que era, "quanto ao zelo, perseguidor da igreja; quanto à justiça que há na Lei, irrepreensível" (Fp 3.6). Strack e Billerbeck afirmam sobre o judaísmo: "O fato de que uma pessoa tinha a habilidade sem exceção de cumprir os mandamentos de Deus estava tão firmemente enraizada no ensino rabínico que, com toda seriedade, falavam de pessoas que guardavam toda a Torá de A a Z".

21 Os leitores cristãos pressupõem com frequência que esse homem era hipócrita porque apresentou seu relato moral a Jesus. No entanto, esse não parece ser o caso, pois Marcos diz que "Jesus olhou para ele com amor". Jesus não costumava olhar para a hipocrisia com amor. Caso se considere que o versículo 20 revela arrogância, e não hipocrisia, isso também pode ser um julgamento equivocado. Considerando-se a afeição de Jesus por esse homem, parece mais razoável pressupor que a apresentação de sua bondade foi um tanto similar a de uma criança, talvez sem qualquer reflexão, mas não arrogante.

A palavra grega traduzida por "olhou" (gr. emblepein) é um termo composto da palavra para "olhar" com ênfase, cujo sentido é "olhar com intenção", "examinar" ou "escrutinar". Jesus não se deixa enganar pelo jovem rico. Ele viu o íntimo desse jovem e "o amou". A palavra grega traduzida por "am[ar]" (gr. agapan) é a forma mais sublime de amor no Novo Testamento, cujo sentido é o amor que caracteriza Deus e do qual Deus é digno. Devia haver algo raro e admirável nesse homem, pois no Evangelho de Marcos não se afirma “Jesus olhou com amor" em relação a ninguém mais.

Pressupunha-se ainda que se alguém seguisse a lei perfeitamente, receberia a vida eterna. Nessa passagem, Jesus ensina algo bem diferente. Podemos assumir seguramente que o homem guardava a lei, pois Jesus não desafia a afirmação dele em relação a esse aspecto no versículo 20. Contudo, mesmo se a lei fosse guardada, o aspecto mais essencial ainda não estava presente! “‘Falta uma coisa para você, disse [...] [Jesus]. ‘Vá, venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro no céu. Depois, venha e siga-me’" (Lc 12.33,34).

Como o Reino de Deus é profundamente irônico. Afirma-se na história anterior que não faltava nada para as crianças que não tinham nada, mas que o Reino de Deus era delas; contudo, falta algo para esse homem que possui tudo! Só quando ele vender tudo que tem — só quando ele se tornar vulnerável como uma criança — é que terá tudo. Jesus, para a pergunta sobre o que ele precisa para herdar a vida no futuro (v. 17), direciona-o para o presente. Ele precisa fazer algo agora. Sua plena aderência à lei moral, por melhor e necessário que isso seja, não é um substituto para seguir Jesus.

“Embora Jesus não se oponha à lei, ele indica que o mais importante era aceitá-lo e segui-lo. Isso por fim poderia resultar na percepção de que a lei não é necessária, mas parece que o próprio Jesus não chega a essa conclusão, nem, tampouco, parece que essa era a acusação contra o jovem rico. [...] [Ele] considerava sua própria missão como aquilo que realmente contava para alcançar a vida eterna. Se a coisa mais importante que as pessoas podiam fazer era aceitá-lo, a importância de outras demandas ficava reduzida, apesar de Jesus não dizer que essas demandas eram inválidas” (E. P. Sanders, The Historical Figure of Jesus [London: Penguin Press, 1993], p. 236-37).

A pergunta sobre a lei, em outras palavras, é respondida com referência ao relacionamento com Jesus! A verdadeira obediência à lei só podia ser alcançada ao se tornar discípulo de Jesus, e a obediência à lei, a menos que leve ao discipulado com Jesus, é incompleta e fútil. O homem, ao seguir Jesus, "terá um tesouro no céu" (v. 21). Jesus se oferece como um substituto para as posses do homem.

22 “Diante disso ele ficou abatido e afastou-se triste, porque tinha muitas riquezas." Que contraste com sua confiança anterior (vv. 17,20)! O homem, enquanto se sustentava em seus próprios méritos, sentia-se seguro de si, mas a palavra de Jesus o chama para sair de seu porto seguro, como fizera anteriormente quando chamou os discípulos para içar a âncora e se lançar em mar aberto onde não há segurança, exceto Jesus. Marcos descreve sua reação com uma palavra particularmente descritiva em grego, stygnazein, com o sentido de "chocado", "alarmado" ou "nublado como o céu". O "engano das riquezas [...] sufocam a palavra", Jesus havia ensinado (4.19). Uma pessoa que leva uma vida exemplar — que até mesmo se torna benquisto para o Filho de Deus — ainda assim pode ser idólatra.

A partir desse relato, o que devemos deduzir sobre a riqueza e a pobreza? Duas coisas podem ser ditas sobre a atitude da Escritura em relação às posses. Por um lado, a riqueza era comumente considerada um sinal da bênção de Deus (Jó 1.10; 42.10; Sl 128.1,2; Is 3.10). A tradição rabínica tardia, considerando a pobreza como a aflição mais severa no mundo, concordava que essa condição superava todas as outras adversidades juntas. Por outro lado, no entanto, o Antigo Testamento batalha pela causa dos viajantes, das viúvas, dos órfãos e dos pobres. Jesus, em especial, apoia essa tradição. Ele demonstrou solidariedade incomum com o pobre, o necessitado e o destituído, porque Deus, por compaixão, exalta o pobre acima do rico e poderoso (oração de Ana – 1Sm 2.1-10; Maria – Lc 1.46-55). Jesus não ensina nem considera a pobreza como um ideal, mas, como aqui, considera realmente a consciência da necessidade que resulta da pobreza como uma bênção. Os maiores inimigos da fé e da obediência são a satisfação consigo mesmo e o orgulho, e a pobreza “pode” ter uma grande eficácia em remover esses obstáculos.

23-25 A última notícia que temos do jovem rico é que "afastou-se triste" (v. 22). Marcos, sem dizer nada mais, disse tudo, pois deixar Jesus é abandonar o Reino de Deus e a possibilidade de vida. Marcos agora passa do jovem rico para os discípulos, o que indica que a riqueza e as posses que impediam um homem de seguir Jesus também são assuntos de preocupação para aqueles que seguem Jesus. A relevância da lição sobre as posses para os discípulos está implícita pela introdução do versículo: "Jesus, olhando ao redor”. O termo grego periblepesthai é uma palavra-chave para Marcos, com seis ocorrências em seu Evangelho e apenas uma em Lucas (6.10). Isso significa um escrutínio controlador da situação, como se Jesus estivesse olhando para ver se os discípulos seguiriam o exemplo do homem rico (3.5,34; 5.32; 10.23; 11.11).

Jesus alerta duas vezes: "Como é difícil aos ricos entrar no Reino de Deus!" (10.23,24). No versículo 22, a palavra grega para a "riqueza" do homem é ktemata, com o sentido de "posses" ou "bens imóveis", ou seja, propriedade rural. No versículo 23, Jesus usa um termo mais geral para "rico" (gr. chremata), que rima com o primeiro termo, mas em geral significa "riqueza monetária". A mudança nas palavras deixa implícito que a riqueza em suas múltiplas e mais líquidas formas é tão perigosa para a fé quanto a riqueza óbvia dos grandes proprietários de terra. "É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus". O senso de humor dessa fala é claro, mas não diminui sua contundência. O "fundo de uma agulha" não é uma pequena porta da cidade através da qual os camelos conseguiam entrar em Jerusalém quando se ajoelhavam — como se o homem rico só pudesse entrar no Reino de Deus se humilhasse a si mesmo. Não há evidência para essa lendária porta até o século IX d.C.

Com certeza, a riqueza é um perigo potencial para a fé. A riqueza, no entanto, não é categoricamente condenada por Jesus. Nem a mulher de quem não sabemos o nome de 14.3-9 (vaso de alabastro com nardo puro) nem José de Arimateia (15.43; Mt 27.57) são questionados ou condenados em Marcos, embora ambos sejam ricos. Mas para esse homem a riqueza representa um perigo real, como o é de fato para a maioria dos discípulos, pois ela o impediu de fazer a única coisa necessária para a salvação. A riqueza pode existir e com frequência existe em outras formas que não a material. Qualquer coisa que leve os discípulos a esquecer a pobreza e a atitude semelhante a das crianças diante de Deus e que os impeça de seguir Jesus Cristo — isso, também, é um camelo diante do fundo de uma agulha.

26,27 A reação dos discípulos faz paralelo com a do jovem rico. Eles também ficaram "admirados" (gr. thambein, v. 24) e "perplexos" (gr. perissos ekplessesthai, v. 26). "Neste caso, quem pode ser salvo?”, responderam eles. A palavra de Jesus veio a eles, como ao jovem rico, não como um conforto, mas como uma ofensa. Ela suplanta a possibilidade humana. Leva-os para o íntimo, onde descobrem só fraquezas e inadequações. A ordem de Jesus faz com que tomem consciência do que não têm, como aconteceu com a palavra de Jesus para o jovem rico no versículo 21. É a mesma escassez ou déficit com que Jesus enviou os discípulos em missão sem provisões, para que aprendessem a confiar em Deus (6.7-13). O senso de inadequação dos discípulos diante da ordem de Jesus é de fato "[um]a bondade e [um]a severidade" (Rm 11.22), uma deficiência benéfica que tem a intenção de afastar a confiança nas próprias habilidades para que confiem naquele que é o Senhor salvador deles.

Jesus olha para eles de forma intencional e com conhecimento, da mesma forma como fez com o homem rico. A palavra grega emblepo em 10.21 e 27 significa perceber a intenção de algo ou alguém. Ele vê o que eles não veem. A resposta "Sendo assim, quem pode ser salvo?" (v. 26), que para os discípulos parece significar futilidade, é, sem que se deem conta, uma porta para a esperança. Essa, por fim, é a pergunta certa, e isso esclarece o fato de Jesus responder a essa pergunta deles sobre o discipulado, ao passo que evitou a pergunta do jovem rico sobre a salvação nos versículos 17,18. A pergunta revela a total futilidade dos esforços humanos diante de Deus. A possibilidade de eles verdadeiramente seguirem Jesus é tão impossível quanto do pai curar seu filho epilético em 9.22,23. Jesus, de fato, responde aos discípulos como respondeu ao pai: "Para o homem é impossível, mas para Deus não; todas as coisas são possíveis pata Deus". Nem o pai do menino epilético nem os discípulos têm em si mesmos o poder para fazer o que Jesus pede. Jesus mesmo será lançado na toda-suficiência de Deus no Getsêmani, quando, diante da iminência e terror da cruz, ele confessará: "Aba, Pai, tudo te é possível" (14.36).

A palavra de Jesus deixa evidente no íntimo dos discípulos o que deveria ter ficado evidente no íntimo do homem rico — a deficiência deles. Contudo, a deficiência que aparece como inabilidade, até mesmo futilidade, aparece para Jesus como abertura para o potencial de Deus. Não são eles que farão algo por Deus ou realizarão a palavra dele, mas Deus que realizará sua palavra no íntimo deles. O que Deus ordena, ele também provê. Há nessa troca entre Jesus e os discípulos o inconfundível cerne da doutrina da graça, conforme exposta mais tarde pelo apóstolo Paulo.

28-30 "Então Pedro começou a dizer-lhe: ‘Nós deixamos tudo para seguir-te'." Se "para o homem é impossível", qual o valor dos sacrifícios humanos que, embora estejam longe do ideal de Deus, ainda são genuínos e custosos da perspectiva humana? Será que os sacrifícios de Pedro de ter deixado tudo para seguir Jesus não valem nada? A afirmação lastimosa de Pedro no versículo 28 é essencialmente um pedido por afirmação em face de um padrão que ameaça reduzir à insignificância não só Pedro, mas também todos os discípulos.

Jesus responde nos vv. 29,30 que os sacrifícios de Pedro e de todos os discípulos em nome de Cristo serão recompensados cem vezes tanto neste mundo quanto na vida eterna no mundo por vir. O fato notável sobre a lista do v. 29 é que nossa rede natural mais essencial de relacionamentos e de alianças — casas, famílias e campos — tem de ser abandonada, pois o chamado escandaloso de Cristo assume prioridade sobre todos eles e exige o rompimento de antigas alianças. Não é possível seguir Jesus com a bagagem antiga: um precisa abrir mão de suas redes; outro, da riqueza. Ironicamente, no entanto, a pessoa receberá cem vezes mais que aquilo que abandonou em favor de Cristo (v. 30).

A menção de "perseguições" no versículo 30 é digna de nota, pois esse é o único termo negativo em uma lista de bênçãos. Sua presença na lista lembra os discípulos de que a existência cristã não é uma utopia, e a fé cristã não é uma apólice de seguro contra a adversidade e a tribulação. Não só isso, em geral, é verdadeiro em relação ao discipulado, mas também a presença de "perseguição" tinha provavelmente um significado especial para a congregação de Marcos em Roma que sofreu tão profundamente sob as perseguições de Nero. O sofrimento deles — e todo sofrimento que resulta da fidelidade ao evangelho — não são um sinal do abandono ou desfavor divino, mas uma manifestação inevitável da fé. Jesus não aceita alianças divididas; ele nos quer por inteiro ou não nos aceitará de forma alguma — pois seu amor é zeloso.

Todavia, conceber o discipulado apenas em termos de seus custos e sacrifícios é concebê-lo de forma equivocada – como se o noivo, ao se casar com uma bela noiva, só pensasse em tudo de que teria de abrir mão. Jesus, em resposta à afirmação lastimosa de Pedro de ter deixado "tudo para segui-[lo]", promete "cem vezes mais". Os sacrifícios que eles fizeram ao deixar "casa, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos, ou campos" para seguir Jesus (v. 29) não são nada comparados com o retorno que receberão na comunidade de fé agora e no céu na vida por vir (Rm 8.18). Atos autênticos de obediência e discipulado são como os cinco pães e dois peixes (6.38) que Jesus recebe e multiplica para alimentar os cinco mil. Atos de discipulado custosos, embora simples e humildes, são como as sementes desesperadoras que contra todas as chances produzem uma colheita cem vezes maior (4.8,20). O indivíduo, da perspectiva de uma colheita abundante, olha em retrospectiva para o trabalho e risco de plantar em uma luz muitíssimo diferente. O milagre e a abundância da colheita ratificam a justiça inerente do ato custoso de plantar; da mesma forma, as recompensas da vida eterna fazem com que os sacrifícios do discipulado pareçam insignificantes em comparação com a bênção abundante de Deus.

31 "Contudo, muitos primeiros serão últimos, e os últimos serão primeiros." Esse quiasmo é preservado em várias camadas da tradição da igreja primitiva. Sua simplicidade capta uma profunda ironia do discipulado. O Reino de Deus derruba nossas amadas prioridades e exige que os discípulos tenham novas prioridades. Tira daqueles que seguem Jesus coisas que guardariam e lhes dá coisas que não poderiam imaginar. Aqueles que confiam em suas riquezas — quaisquer que sejam elas — não terão mais nada com que contar. Aqueles que abrem mão de tudo — não só das posses, mas até mesmo das pessoas e lugares, na verdade, da própria vida (8.35) — para seguir Jesus não só serão compensados por seus sacrifícios, mas também se fartarão cem vezes mais com ele e herdarão o mundo por vir e a vida eterna.



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