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Foto do escritorChristian Lo Iacono

Ira boa e ira má

Atualizado: 20 de fev.

O povo viu que Moisés demorava para descer do monte. Então reuniu-se em volta de Arão e lhe disse:

— Levante-se, faça para nós deuses que vão adiante de nós; pois, quanto a este Moisés, o homem que nos tirou do Egito, não sabemos o que lhe aconteceu.

² Arão respondeu:

— Tirem as argolas de ouro das orelhas de suas mulheres, de seus filhos e de suas filhas e tragam para mim.

³ Então todo o povo tirou das orelhas as argolas e as trouxe a Arão.

⁴ Este, recebendo-as das mãos deles, trabalhou o ouro com buril e fez dele um bezerro de metal fundido. Então disseram:

— São estes, ó Israel, os seus deuses, que tiraram você da terra do Egito.

⁵ Arão, vendo isso, edificou um altar diante do bezerro e fez a seguinte proclamação:

— Amanhã haverá festa ao Senhor.

⁶ No dia seguinte, madrugaram, ofereceram holocaustos e trouxeram ofertas pacíficas. E o povo sentou-se para comer e beber e levantou-se para se divertir.

⁷ Então o Senhor disse a Moisés:

— Vá, desça; porque o seu povo, o povo que você tirou do Egito, se corrompeu

⁸ e depressa se desviou do caminho que eu lhe havia ordenado; fez para si um bezerro de metal fundido, o adorou e lhe ofereceu sacrifícios, dizendo: "São estes, ó Israel, os seus deuses, que tiraram você da terra do Egito."

⁹ O Senhor disse ainda a Moisés:

— Tenho visto este povo, e eis que é povo teimoso.

¹⁰ Agora, pois, deixe-me, para que se acenda contra eles o meu furor, e eu os consuma; e de você farei uma grande nação.

# Moisés intercede pelo povo

¹¹ Porém Moisés suplicou ao Senhor, seu Deus, dizendo:

— Ó Senhor, por que se acende a tua ira contra o teu povo, que tiraste da terra do Egito com grande poder e forte mão?

¹² Por que deixar que os egípcios digam: "Ele os tirou de lá com más intenções, para matá-los nos montes e para eliminá-los da face da terra"? Deixa de lado o furor da tua ira e muda de ideia quanto a este mal contra o teu povo.

¹³ Lembra-te de Abraão, de Isaque e de Israel, teus servos, aos quais por ti mesmo juraste, dizendo: "Multiplicarei a descendência de vocês como as estrelas do céu, e toda esta terra de que tenho falado, eu a darei à sua descendência, para que a possuam por herança eternamente."

¹⁴ Então o Senhor mudou de ideia quanto ao mal que ele tinha dito que traria sobre o povo.


Êxodo 32:1-14


Todos nós conhecemos o “tipo errado de ira”. Nós já fizemos críticas. Nós já as recebemos. Vimos e ouvimos outros ficando irados uns contra os outros. É possível que, todos os dias, em algum momento, você seja afetado por alguma forma do “tipo errado de ira” – seja ela proveniente de si mesmo ou de outra pessoa.


Muitas vezes, essa ira é branda: frustração, reclamação, irritação. Outras vezes, ela é velada: pensamento crítico, agressão passiva. Muitas vezes, ela é entranhada, oculta da consciência: aparece disfarçada de brincadeira, anestesiada por distrações ou ocupações. Por vezes, ela é intensa: amargura, hostilidade, violência. Não surpreende que, quando o apóstolo Paulo lista os pecados mais comuns, metade da lista diz respeito à família da ira (Gl 5.19-21).


No entanto, o “tipo certo de ira” é um grande bem. Esse tipo diz: "Isso é errado" e age de modo a proteger os inocentes e indefesos. Ele diz: "Isso é errado" e nos estimula a lidar com problemas reais. Deus, que é bom e faz o bem, expressa a “boa ira” por uma boa causa. Jesus é bom e fica irado – a serviço da misericórdia e da paz. Ele pode e quer nos perdoar pelo nosso tipo errado de ira. Ele pode e quer nos ensinar a sentir o tipo certo de ira. A menos que, de alguma maneira, você tenha se anestesiado quanto à condição humana, cada um de nós luta contra a ira.


Mas podemos “resolver” o problema da ira? Ora, a palavra “resolver” pode sugerir que podemos alcançar um resultado definitivo; isto é, que algumas mudanças de comportamento bastam para acabar com o problema. “Resolver” pode sugerir que o tipo ruim de ira é simplesmente um mau hábito. Porém, a ira não é um problema a ser

“resolvido” desse jeito. Ela é uma capacidade humana, como o sexo, a felicidade e a tristeza. É uma reação humana complexa a um mundo complexo. E, como todas as capacidades e respostas humanas, às vezes ela funciona bem; porém, muitas vezes é expressa da maneira errada.


Pessoas iradas


Pessoas intensas, pessoas que reagem de maneira exagerada, pessoas que perdem o controle. A ira é a reação que destrói casamentos e desintegra famílias. Ela estimula a fofoca e atira nos colegas de classe. Ela divide igrejas, transforma amizades em inimizades e explode em violência no trânsito. Ela é a substância de todos os tipos de ressentimento e amargura. O fato de alguns reagirem de maneira menos acalorada não significa que não ficam irados. Afinal, a ira também está no DNA da reclamação, do ressentimento, da irritabilidade e do bate-boca. Esse problema é como um par de chinelos: um mesmo tamanho serve em todos os pés. As questões cruciais da ira se aplicam a cada um de nós.


Se você sempre foi teimoso, briguento e instável; se uma vida repleta de decepções e desilusões o transformou numa pessoa amargurada, mesmo se tiver uma personalidade mais tranquila; saiba que você tem o problema da ira. Ao expressar a ira, alguns explodem, alguns incubam, alguns aparentam letargia – mas todos a sentimos. E, se não sentimos, é porque nos anestesiamos ou nos desligamos da realidade.


Pessoas como eu e você


A ira se sobressai quando usa uma roupagem ofensiva e dramática – quando se apresenta violenta, persistentemente amargurada, gélida ou debatendo-se em dor e confusão. Contudo, a diferença entre as iras é apenas de grau, não de tipo. Todos temos mais semelhanças do que diferenças. Assim, posso me irritar quando alguém perturba a paz de meu conforto e conveniência pessoal. Posso me irritar com um atendente incompetente. Posso me irritar quando alguém não se dá ao trabalho de me entender direito e decide, em vez disso, fazer caricaturas das minhas crenças e atitudes e desprezar-me com base naquilo que imaginou ser minha realidade.


Por outro lado, a ira é, por vezes, justificada. Outras pessoas fazem coisas erradas. Vivemos num mundo que nos apresenta provocações significativas. Há males em relação aos quais realmente devemos ficar perturbados. E talvez também tenha havido ocasiões em que você lidou com a provocação da maneira certa. A ira justa produz uma determinação legítima, construtiva e enérgica para a resolução de problemas. A ira deve estar sempre entrelaçada com intenções misericordiosas e amorosas. Alguma vez você já testemunhou alguém – pai, mãe, colega de trabalho, professor, pastor, cônjuge, amigo – ficando irado de modo a produzir o bem? Isso acontece, às vezes.


Em muitos momentos, porém, sua ira não é justificada ou explode de modo que é fora de proporção. Já ficou implicante ou sentiu pena de si mesmo? Talvez você leve para o lado pessoal coisas que não têm a ver com você (já reclamou sobre o tempo ou xingou num engarrafamento no trânsito?). Talvez você interprete mal ou exagere aquilo que alguém diz ou faz. Pode ser difícil perceber e admitir essas coisas porque nossos pensamentos soam muito plausíveis. Você é regido pela sua agenda, pelas suas expectativas, pela sua comodidade, pelo seu prazer e pelos seus temores. E, apesar de não perceber na hora, você perde a cabeça quando alguém se coloca no seu caminho.

Há ocasiões em que você de fato teve razão para irritar-se, mas a raiva saiu do controle.


As coisas que você pensou, disse e fez foram hostis – até mesmo más. Você se apegou a uma postura crítica. Em resumo, pagou mal com mal, como se dois males fossem capazes de produzir o bem. Você se tornou essencialmente destrutivo, não construtivo. Sua ira gerou mais destruição, mais mágoa e mais distanciamento em vez de soluções positivas.


Houve também situações em que o sentimento perdurou muito mais do que deveria. Uma traição o deixou amargurado, e você não consegue perdoar. Você remói o acontecido, reproduzindo-o na mente repetidas vezes.


A ira não é necessariamente uma reação de causa e efeito a um acontecimento específico. Muitas vezes, há um efeito cumulativo às desilusões e frustrações da vida. Os desiludidos não alimentam as chamas das explosões de ira. Eles não apontam para um único ressentimento específico responsável pela sua amargura. Porém, o cinismo é da família do tipo mau de ira.


Há vezes em que você tem o problema oposto: deveria ficar irado, mas não fica. Algo realmente errado acontece – não necessariamente com sua própria pessoa –, mas você não se importa. Não dá atenção nem reage. Você ignora ou minimiza coisas que estão erradas e que deveriam ser abordadas. Talvez nem sequer as perceba. Por mais estranho que pareça, a ausência de indignação correta também é um problema de ira. Não é um problema para o qual as pessoas procuram ajuda, mas deveria ser. Quando o impulso de irar-se é transformado em algo bom e construtivo, o resultado inclui a capacidade de ser estimulado de modo legítimo contra os verdadeiros males.


Cada um de nós tem muita dificuldade de mudar. Uma vez que a ira se apodera de nós, ela simplesmente nos domina. Os antigos romanos tinham o seguinte ditado: "A ira é uma breve loucura". A ira nos deixa loucos, cegos e confusos. Lampejos de sanidade são raros. Por acaso alguma vez você já se lembrou de um acesso de irracionalidade que teve e ficou assustado como agiu na ocasião? O que se apossou de mim? Como eu pude ter pensado aquilo, dito aquilo, feito aquilo? Às vezes, a insanidade não é tão breve. Ela se instala e permanece um tempo. Às vezes, o hábito se perpetua a vida toda.


O que é a ira?


Em tese, a ira pode ser pura e construtiva. Porém, na maioria dos casos esse sentimento surge de maneira torpe e destrutiva em reclamações, acessos de raiva, frieza, retaliações e autocomiseração. Essas são as maneiras típicas pelas quais todos nós retribuímos "mal por mal" — sem dúvida uma reação natural, mas que Deus considera completamente errada (Rm 12.17-21):


“Não paguem a ninguém mal por mal; procurem fazer o bem diante de todos. Se possível, no que depender de vocês, vivam em paz com todas as pessoas. Meus amados, não façam justiça com as próprias mãos, mas deem lugar à ira de Deus, pois está escrito: ‘A mim pertence a vingança; eu é que retribuirei, diz o Senhor.’ Façam o contrário: ‘Se o seu inimigo tiver fome, dê-lhe de comer; se tiver sede, dê-lhe de beber; porque, fazendo isto, você amontoará brasas vivas sobre a cabeça dele.’ Não se deixe vencer pelo mal, mas vença o mal com o bem.”


A questão também é complexa porque cada um de nós traz consigo um conjunto de associações nos momentos de ira. Memórias pessoais, experiências boas e más, pessoas que nos feriram ou influenciaram – esse tornado de emoções cria um contexto muito mais convincente do que qualquer definição de ira encontrada na literatura. Nossa definição instintiva e personalizada pode, ou não, ser útil para o entendimento do que é esse sentimento.


Em sua essência, a ira é muito simples. O que ela expressa é: "Sou contra". É uma postura ativa que assumimos para nos opor a algo que julgamos ser importante e, ao mesmo tempo, errado. Observamos algo, fazemos uma avaliação e declaramos: "Isso tem importância... e não está certo". É quando nos deparamos com algo no nosso mundo que passa dos limites. A ira expressa a energia da nossa reação a algo que consideramos ofensivo e que desejamos eliminar.


O DNA da ira não é a expressão exaltada de emoções. Não é uma explosão de adrenalina. Não é uma maneira específica de expressar ira. Não é o acontecimento ou a pessoa que nos irrita. Não é o ato de discutir. A essência subjacente a tudo isso é a avaliação negativa: é um descontentamento ativo com relação a algo que tem importância suficiente para receber atenção.


Os seres humanos nascem dotados da capacidade de reagir com desgosto a males reais e agir com determinação para consertá-los. Em outras palavras, somos seres morais. Fomos criados à imagem de Deus. Assim sendo, fomos feitos para seguir a lógica da ira. Algo tem importância e está errado; logo, isso me desagrada, e sou contra; portanto, devo mudá-lo, removê-lo, destruí-lo. A essência da ira consiste em sermos impelidos a agir quando algo importante não se encontra como deveria.


A ira tem a ver com descontentamento. Quando estamos contentes com algo, é impossível sentir ira. Nós o aprovamos, então não nos sentimos afrontados. Da mesma maneira, quando algo não importa muito ou quando nós não o percebemos, não há ira nem ofensa. Contudo, em cada variante da ira, nós avaliamos algo que acontece. Nós nos importamos e desempenhamos o papel de crítico, juiz, ativista, inimigo e denunciador. Eu desaprovo. Isso é errado. Eu me sinto ofendido. Quero consertar essa situação ou livrar-me dela.


Essa essência avaliatória está por trás das associações pessoais que fazemos com a ira. Todos os incidentes têm três coisas em comum:


Eu identifico um mal visível;

Eu assumo uma postura de desaprovação e sinto descontentamento;

De alguma maneira, sou impelido a agir – a dizer ou fazer algo a esse respeito. (No mínimo, há a implicação da possibilidade de ação.)

Considere o amplo leque de emoções possíveis. Numa extremidade, estão os tipos de ira que expressam meros indícios de irritação ou queixas leves. Na outra extremidade, a ira pode estar associada à fúria descontrolada ou à busca desenfreada por vingança. No entanto, quer o tremor seja brando ou violento nos sentimentos, o denominador comum está operando do lado de dentro. O grau de importância que algo tem para nós, o grau em que algo nos afeta, inflama ou atenua as chamas das emoções. Todavia, sejam reclamações momentâneas, discussões, ressentimentos e até mesmo o furor homicida, tudo compartilha o mesmo DNA da ira.


De modo semelhante, as ações podem variar muito. Dependendo da situação, a pessoa pode literalmente cometer assassinato em primeiro grau – ou um crime de terceiro grau, um crime passional. Em outros casos, ela pode mover um processo, organizar um protesto ou sair em defesa de uma vítima. É sempre possível envolver-se numa discussão. A pessoa também pode tentar fugir – evitar quem a irrita, fingir que a situação não a incomoda. Ou, então, pode simplesmente não fazer nada. A reação pode ser justa ou injusta, benigna ou cruel, construtiva ou destrutiva. Não obstante, o fio que perpassa todas as ações é o mesmo: "Isso é errado". Aquilo que você faz ou deixa de fazer a esse respeito é variável.


Os objetos que desencadeiam o descontentamento também variam bastante, embora a essência comum – "Sou contra!" – esteja presente em todos os casos. Podemos nos opor a praticamente qualquer coisa. Podemos ficar com raiva de pessoas, animais, ideias, máquinas, do tempo, de Deus. Podemos nos opor ao que é mau e ficar bravos com coisas que realmente abusam das pessoas e as exploram. Também podemos ficar irados com coisas bobas que simplesmente vão de encontro ao que queremos. Podemos ficar irados com pessoas que nos prejudicaram de verdade e também com pessoas que deveríamos amar.


A duração da reação pode variar. O negativismo pode ser um capricho passageiro, uma frustração no trânsito esquecida três segundos depois. Ou a ira pode definir a causa moral e assumir uma hostilidade que dominará e direcionará o restante da sua vida. Seja curta ou longa, ela continua a arder, declarando: "Estou descontente".


Juízos de valor


Tudo isso foi para dizer que a ira sempre faz um juízo de valor. A ira é sempre uma questão moral. Ela já foi chamada, com razão, de "sentimento moral", pois tem algo a dizer sobre as coisas que importam. Os seres humanos fazem juízos morais; portanto, sentem ira.


Você gostaria de viver num mundo sem juízos de valor? De modo algum. Quando o padrão de juízo é íntegro, e quando a maneira de reagir é construtiva, uma desaprovação clara e cordial é uma das melhores coisas que podem acontecer. Se fôssemos indiferentes com relação a pedófilos, terroristas ou vigaristas, ou se os apoiássemos, seríamos moralmente falhos. A sensatez moral deve reprovar o mal, e essa reprovação é a essência da ira.


Toda vez que você fica irado, está evidenciando seus valores e pontos de vista. No entanto, a ira não é a única reação que exprime o que você valoriza. Sempre que abre a boca (ou que não abre), você está declarando seus valores aos outros. É isso o que Jesus tinha em mente, por exemplo, quando disse que "toda palavra frívola" será avaliada e que a boca fala daquilo que está cheio o coração (Mt 12.36; Lc 6.45). Toda palavra que você profere – incluindo conversas vãs – diz algo importante a seu respeito. Aquilo sobre o que escolhe falar (ou que nunca pensa em dizer) declara o que lhe importa. Suas reações emotivas e suas escolhas sempre expressam seus valores. Basta acrescentar um pouco de sentimento – porque você se importa, porque algo importante vai mal – para que a reação que chamamos de ira venha à tona. Sempre que sente ira (ou não a sente), você está declarando o que lhe importa.


Nós avaliamos tudo: nós mesmos, os outros, o clima, os animais, as ideias, o jantar, Deus, os preços, os acontecimentos atuais, tudo. Polegar para cima ou polegar para baixo. Você não pode deixar de agir como um ser humano. O que a ira faz é simplesmente expressar nossas avaliações negativas com força e emoção específicas. De onde vem a carga emocional? Quanto mais relevância tem algo, mais você se importa; quanto mais importante é a questão – isto é, quanto mais você valoriza alguma coisa –, com mais força flui seu descontentamento.


O que é ira? É a maneira como reagimos quando algo que consideramos importante não está como deveria. Veremos diversos exemplos da Bíblia que ilustram como a ira é suscitada e como as emoções nos estimulam à ação: Et 1.10-12, 19; Jó 32.2-3, 17-18; 1Sm 18.7-9; Êx 32.1-10; Mc 3.1-6).


Todo o seu ser fica irado


Quando algo passa dos limites e você fica irado, quanto de "você" está envolvido? Todo o seu ser. A ira é algo que você produz. Isso parece óbvio. Por que é tão importante? Porque é uma verdade quase nunca dita. As pessoas iradas, bem como aquelas que as aconselham, costumam colocar o foco apenas numa parte de tudo o que acontece com a ira. E a parte em que elas colocam o foco não é “você”. A ira é tratada como algo que acontece a você ou em você. Você lida com "ela", ou "a" domina, ou "a" libera", ou "a" controla ou se livra "dela". Mas não é intrinsecamente responsável por "ela". "Ela" acontece dentro de você, mas você não a está causando.


Uma maneira de compreender a ira é entender que, quando você está irado, você está fazendo algo. A ira não é uma "coisa". A ira não é apenas uma parte do seu ser. A ira não simplesmente "acontece" com você. Você causa a ira.


A ira é um sistema complexo único. É algo que você faz de todo o coração, alma, mente e corpo. Você avalia algo num piscar de olhos e declara: "Não gosto disso!" Com a liberação da adrenalina, seu corpo é estimulado, a temperatura sobe e seus músculos se contraem. Você sente emoções intensas, as quais são expressas no tom e no volume da sua voz, na linguagem corporal e na expressão facial. O raciocínio acelera, e sua mente reproduz o que aconteceu, imaginando cenários, avaliando, planejando e fazendo escolhas. Então, você entra em ação, decidindo o que fazer e dizer (ou o que não fazer e dizer). Seus desejos e expectativas estão ativos. Você quer justiça, quer provar que está certo, quer ser tratado com amor, quer chegar a tempo para o compromisso, quer proteger alguém ou apenas fazer as coisas do seu jeito.


A ira acontece não apenas no corpo, nas emoções, nos pensamentos e nas ações. Ela é proveniente de motivações profundas. Desejos e crenças subjacentes estão em ação – sempre. As motivações são muito mais profundas do que os pensamentos conscientes. Com frequência, sentimos, pensamos, agimos e reagimos sem consciência das nossas motivações. No entanto, tudo isso compõe o centro organizador de quem somos e daquilo para o que vivemos. A menor ocorrência de irritação ou a mais leve amargura duradoura revela imensas verdades a nosso respeito – se tão somente estivermos dispostos a ver.


Para trazer à tona as motivações que estão por trás da ira, pergunte-se: "Quais são minhas expectativas?" Essa simples pergunta nos ajuda a parar e pensar. E a resposta costuma vir por partes, não de uma vez. O autoconhecimento é, ao mesmo tempo, um simples dom e uma conquista difícil. Podemos ter consciência das nossas expectativas até certo ponto e, aos poucos, passar a compreender níveis mais profundos. É difícil enxergá-las. É mais difícil ainda reconhecer a verdadeira natureza delas. Parte do problema advém do fato de a ira dar a impressão de ser muito "justa" e de o tipo ruim de ira ser muito moralista. "Eu estou muito certo porque você está muito errado." Esse desejo intenso de pensar bem a nosso próprio respeito, de valorizar-nos e defender-nos continuamente, atrapalha o processo de identificação e o enfrentamento das nossas motivações.


Porém, olhar para si com sinceridade esclarecerá as razões da sua ira. A seguir, estão algumas perguntas que o ajudarão a descobrir quais expectativas e motivações estão por trás desse sentimento:

1. Quando fica irado, o que você quer? O que esse desejo significa para você? Por que isso importa tanto?

2. Quando explode em ira, o que você acredita a respeito do significado do que acabou de acontecer com você?

3. Do que você tem medo? (Medo é desejo ao contrário: "Eu não quero que isso aconteça".) O que você acha que pode acontecer de terrível?

4. Quais intenções o guiaram durante essa interação? O que você procura? Quando fica amargurado e não consegue se livrar desse sentimento, qual é sua esperança e o seu desejo? Pelo quê você vive – agora, não em teoria?


Essas perguntas o levam às fontes mais profundas da ira. Elas revelam seu coração –o que você mais deseja, aquilo em que confia, o que odeia, o que ama. Quando a ira perde o caminho, isso diz algo sobre como estamos nos desviando por dentro, sobre quem está no centro do universo. Quando a ira perde a linha e se transforma em mau humor, queixas ou amargura, você não precisa de uma técnica para se acalmar. Não precisa que as circunstâncias mudem. Não precisa que as outras pessoas mudem. O que precisa mudar são suas motivações interiores. O deus que você idolatra (seja feita a minha vontade, venha o meu reino... ou então) deve ser deposto.


Depor um falso deus exige uma atitude muito mais profunda do que simplesmente adquirir habilidades para resolução de conflitos, por mais valiosas que elas sejam. Exige mais do que mudar a maneira como você fala consigo mesmo, ainda que isso também irá mudar. Exige mais do que encontrar uma técnica, um divertimento ou um medicamento que o acalme. Sim, respirar fundo e contar até dez é bom. Porém, as motivações são os objetivos em torno dos quais a vida se organiza.


As motivações são seus valores e comprometimentos essenciais, aquilo em que você baseia sua identidade. Elas moldam e estimulam seus sentimentos, pensamentos e ações. Elas determinam a maneira como você trata as pessoas. Elas determinam a maneira como você reage à dor, à perda ou à ameaça (às provocações para irar-se). Elas determinam como e por que você fica irado – e se a sua ira é perfeitamente saudável ou um tanto doentia.


Paula e Lucas são um bom exemplo. Eles são namorados e, quase sempre, discutem por causa dos planos para uma saída à noite. Em uma das vezes, Lucas chegou atrasado para um jantar que haviam marcado, e os dois começaram a brigar. Se assistíssemos a um vídeo da discussão, veríamos o momento, o local, quem disse o quê e quando, os planos e quais circunstâncias atenuantes favoreceram quem. Ele também mostraria as caras feias, as expressões de espanto, as sobrancelhas franzidas, os olhos revirando, a aspereza na voz e o aumento (ou a diminuição) do seu volume, demonstrando a hostilidade da situação. À medida que o bate-boca se intensifica, as palavras deixam de focar nos acontecimentos e transformam-se em acusações e reprovações pessoais. As de Paula são: "Você sempre faz isso. Você é impossível. Você é egoísta e desatencioso. Você nunca presta atenção".

E, como em qualquer guerra, a ofensa encontra defesa. Após ouvir a salva inicial, Lucas responde: "Eu não faço isso sempre. Hoje de manhã eu sugeri sushi, mas concordei na hora quando você pediu comida italiana. Estou aqui agora. Qual é o problema? Só porque me atrasei dez minutos?" Logo em seguida (em parte, porque ele está, na verdade, mais para vinte minutos atrasado do que dez), ele lança um contra-ataque: "Você nunca me dá um desconto. E sempre tão crítica e controladora".

Tudo vai mal até aí. É uma discussão típica de casal. Agora, vamos procurar as motivações. O que essas duas pessoas ressentidas realmente querem? Será que a briga aconteceu só por causa da diferença entre sete horas e sete horas e dezoito minutos? Será que aconteceu só porque as justificativas dele para não ter avisado sobre o atraso não são válidas? Só porque um dos dois não prestou atenção? Só por causa de linguagem corporal, emoções acaloradas, pensamentos intransigentes e, como consequência, os insultos e as palavras defensivas que eles dispararam um contra o outro? Mesmo se acrescentarmos o elemento passado ("sempre" e "nunca" referem-se a algo específico que aconteceu antes), ainda não chegamos à raiz do problema. Por baixo de tudo isso é que encontramos os motivos, as outras histórias que não foram mencionadas em voz alta.


As pessoas raramente compartilham essas coisas quando estão sendo atacadas ou contra-atacando. Os combatentes não costumam estar sequer cientes das suas motivações. O ruído da hostilidade e da mágoa abafa a percepção consciente.

O que se passava no interior de Paula era: Quero que você me ame. Se você se importasse comigo, chegaria na hora, me avisaria ou, pelo menos, pediria desculpas. Em vez disso, você está obcecado em provar que está certo e que eu estou errada. Seu atraso e sua postura defensiva significam que você não me ama e que não se importa com meus sentimentos.


O que se passava no interior de Lucas era: Sua raiva significa que você não me ama. Quero que você me trate com respeito. Tenho medo da sua ira. Se me respeitasse, você se daria ao trabalho de perguntar o que aconteceu e no que eu estava pensando. Então, descobriria que eu estava pensando em você e que me senti mal por estar atrasado. Você acreditaria em mim e não simplesmente ficaria irritada. Você não se importou comigo como pessoa.


Podemos entender ambas as partes, e até mesmo concordar com elas quando ficamos sabendo qual é o desejo de cada uma. Elas soam muito plausíveis. Nossas motivações são algo curioso. De um lado, são como porcelana: delicadas e vulneráveis. A ira faz com que nos sintamos fortes (ou, pelo menos, que pareçamos fortes, encobrindo nossas vulnerabilidades). Admitir as verdadeiras motivações numa briga de casal expõe-nos e passa a imagem de que somos fracos. O casal poderia conversar sobre seus verdadeiros motivos de uma maneira que expressasse o simples fato de que estavam feridos ou perplexos, sem hostilidade, ressentimento e desdém. Uma conversa nesse tom poderia até mesmo ajudá-los a entender um ao outro melhor e a aprender a amar um ao outro de maneiras mais atenciosas.


Então, por que as coisas vão tão mal? Por que os dois jovens não conseguem conversar sobre as frustrações e os problemas de comunicação de maneira construtiva? Por que eles não expressam seus desejos e mágoas sem acrescentar grandes doses de hostilidade e moralismo? Por que eles não se esforçam para ter uma compreensão mútua e uma vida melhor juntos?


Por outro lado, as motivações não são apenas as frágeis porcelanas dos desejos plausíveis e das mágoas sinceras. Elas também são o aço e os explosivos da obstinação ferrenha. A ira do tipo ruim acontece quando as motivações são como as de um deus. "Eu quero as coisas do meu jeito. Exijo que você me ame de acordo com minhas próprias regras. Provarei que estou certo, custe o que custar. Provar que seu erro é indesculpável e ultrajante é um modo de provar que eu estou certo e que sou vítima da sua iniquidade grotesca. Quero estar no controle. Você deve me obedecer, me ouvir e satisfazer todas as minhas vontades. Como você se atreve a ir contra meu desejo todo-poderoso?"


Como poderíamos explicar esse modus operandi básico que acontece no tipo ruim de ira? Ele é como o sistema operacional MS-DOS, oculto por trás da interface do Microsoft Windows. A fachada de qualquer discussão se assemelha aos documentos, às pastas, aos ícones e às janelas. Porém, por trás de tudo isso estão os códigos que fazem tudo funcionar. Vamos examinar esses códigos de três ângulos complementares.


Em primeiro lugar, tanto Paula quanto Lucas estão dizendo: "QUERO AS COISAS DO MEU JEITO". A ira é mal direcionada por causa de uma exigência. O simples desejo (e a simples dor que sentimos quando não recebemos o que queremos) transforma-se em algo que eu preciso ter. Geralmente o que está errado nos meus desejos não é o que eu quero, mas o fato de que eu o quero demais. Meus desejos se transformam em necessidades. Eu devo ser amado. Eu exijo seu respeito. Eu preciso que você me trate como eu quero. Eu ordeno que não seja tão duro comigo. Eu insisto que você seja compreensivo. Eu exijo que você seja carinhoso. "O que eu quero está certo; portanto, tenho direito de ficar irado com você." Mesmo se seu desejo for algo bom (por exemplo, que seu namorado chegue na hora e tenha a consideração de telefonar caso se atrase), ele é tão intenso, que o acaba consumindo. Desejos simples viram exigências que precisam ser satisfeitas, ou então...


Em segundo lugar, tanto Paula quanto Lucas estão dizendo: "SOU A VÍTIMA PREJUDICADA". Em minha ira, eu julgo você por crimes cometidos contra a humanidade e o condeno como um criminoso. Eu sou a vítima das suas crueldades (reais ou imaginárias). A vitimização passa a ser minha identidade e a me consumir. A autocomiseração e o moralismo são narcóticos fortes. É bom que eu me sinta tão mal, pois isso prova que você é mau e eu sou bom.


Em terceiro lugar, tanto Paula quanto Lucas estão dizendo: "EU SOU DEUS". Há um traço de presunção na ira quando ela é reduzida a seus elementos básicos. A ira do tipo ruim acontece quando você se coloca como um deus. Seus desejos passam a ser leis divinas. Basta analisar cada ocorrência desse tipo de ira para identificar o fenômeno. Quer esteja aborrecido de verdade, quer esteja só um pouco irritado ou quer se sinta profundamente amargurado, tudo gira em torno do onipotente eu. A ira é exigente e acredita ser merecedora: É isso o que eu quero. Seja feita a minha vontade. Ela é superior: O mundo e tudo o que nele há estão sujeitos a mim. Todas as pessoas, todos os objetos e todos os acontecimentos estão sujeitos à minha opinião e avaliação. Ela é acusatória: você violou minha vontade e merece castigo.


Quando o tipo bom de ira acontece, sempre há algo superior – algum propósito mais elevado ou alguma pessoa – que controla a ira, que impõe limites à amargura, que apresenta razões para não lamentar ou reclamar. O Deus altíssimo, sua lei superior, suas misericórdias ternas e seus propósitos elevados transformam a ira. Algo milagroso acontece quando eu deixo de dizer: "Venha o meu reino, seja feita a minha vontade na terra". Minhas motivações não mais operam em modo de usurpação divina. A misericórdia que nos humilha começa a nos dominar, e meu universo volta à realidade.


É somente então que nos livramos da arrogância, do interesse pessoal, da inveja e da hostilidade que Assuero, Saul e os fariseus expressaram. É somente então que Paula e Lucas podem se tornar sensatos, humilhados pelas misericórdias de que necessitam, gratos pelas misericórdias que Deus concede. A qualidade da ira definitivamente muda para melhor. Isso não significa que nunca mais ficaremos irados. Vemos bons exemplos disso na ira de Eliú, do Senhor Deus e de Jesus. O que acontece é que a lógica interna e essencial da ira muda.


Qual é a diferença? Em cada um dos casos, propósitos maiores controlavam a situação. Eliú ficou irado com razão quando testemunhou o embate entre a justiça própria de Jó e o conselho acusatório dos amigos dele. Ele se lançou em defesa de Deus. Embora não tivesse capacidade para falar tão bem quanto Deus, as palavras de Eliú expressaram o amor penetrante da ira divina ao desafiar Jó e seus três amigos. O resultado final? Misericórdia e humildade triunfaram sobre discussões vãs e acusações mútuas.


De modo semelhante, o Senhor Deus se irou justamente com a celebração idólatra de seu povo. Qual foi a consequência? Sua ira justificada fez com que a fé de Moisés o levasse a agir como uma figura de Cristo para o povo, ora intercedendo por misericórdia, ora expressando a justa ira divina. O resultado final? Na cena seguinte, vemos uma revelação do DNA básico de toda a Bíblia. Depois do ocorrido, testemunhamos, sobre o monte Sinai, a dupla hélice da bondade espetacular de Deus para com um povo desviado:

“SENHOR, SENHOR Deus compassivo, clemente e longânimo e grande em misericórdia e fidelidade; que guarda a misericórdia em mil gerações, que perdoa a iniquidade, a transgressão e o pecado, ainda que não inocenta o culpado” (Ex 34.6-7).


Deus é bom – ele justamente fica irado com todo aquele que se volta contra ele e contra os outros. Deus é bom – incalculavelmente misericordioso para com todo aquele que reconhece a própria necessidade.


Da mesma maneira, Jesus se irou com razão por causa do coração de pedra dos homens que o odiavam e eram indiferentes ao sofrimento dos demais. No entanto, o que eles intentaram para o mal foi transformado por Deus num bem incalculável para nós. Jesus curou um aleijado no sábado e, por tal "transgressão", enfrentou a morte nas mãos de assassinos. O resultado final? Ele mesmo levou sobre si os pecados dos homens e mulheres com coração de pedra. O DNA básico de toda a Bíblia ganhou vida, o Filho do Homem, que caminhou entre nós e morreu por nós. Ele vive agora e ainda nos perdoa e nos renova à imagem da sua justa ira e misericórdia abundante.


Quando os propósitos maiores de Deus estão no controle, o mal pernicioso da ira é neutralizado. A ira se torna uma serva da bondade. Ela se torna justa, e os propósitos se tornam misericordiosos para todos aqueles que se voltam para ele, confiam nele e são conformados à sua imagem. Deus muda nossas motivações.



Assista o Sermão completo no Youtube:




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