— Não pensem que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, mas para cumprir. Porque em verdade lhes digo: até que o céu e a terra passem, nem um i ou um til jamais passará da Lei, até que tudo se cumpra. Aquele, pois, que desrespeitar um destes mandamentos, ainda que dos menores, e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado mínimo no Reino dos Céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no Reino dos Céus. Porque eu afirmo que, se a justiça de vocês não exceder em muito a dos escribas e fariseus, jamais entrarão no Reino dos Céus. — Vocês ouviram o que foi dito aos antigos: “Não mate.” E ainda: “Quem matar estará sujeito a julgamento.” Eu, porém, lhes digo que todo aquele que se irar contra o seu irmão estará sujeito a julgamento; e quem insultar o seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal; e quem o chamar de tolo estará sujeito ao inferno de fogo. Portanto, se você estiver trazendo a sua oferta ao altar e lá se lembrar que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe diante do altar a sua oferta e vá primeiro reconciliar-se com o seu irmão; e então volte e faça a sua oferta. — Entre em acordo sem demora com o seu adversário, enquanto você está com ele a caminho, para que o adversário não entregue você ao juiz, o juiz entregue você ao oficial de justiça, e você seja jogado na prisão. Em verdade lhe digo que você não sairá dali enquanto não pagar o último centavo.
Mateus 5:17-26
Os versículos de Mt 5.17-20 talvez estão entre os mais difíceis da Bíblia. Jesus retoma neles o tema do reino de Deus e o relaciona com a Lei e os Profetas. Os versículos 17 a 20 introduzem, assim, 5 blocos que compõe o restante do capítulo 5 – o primeiro deles nos vv. 21-26, sobre a ira.
Fica claro também aqui que Jesus tem elevada estima pelo Antigo Testamento. Ele não veio abolir esses escritos. Ele reconhece a imutabilidade deles até a menor letra, o “iota”, ou mesmo o menor sinal feito pela pena. Esse menor sinal, o “til” aqui, é o que hoje chamaríamos de serifa, o pequeno prolongamento de algumas letras que distingue os tipos antigos dos mais modernos. Em hebraico, esse diminuto prolongamento é necessário para diferenciar alguns pares de letras. Portanto, Jesus está corroborando a confiabilidade e a veracidade do texto escrito. Não está simplesmente dizendo que o AT contém alguma verdade, muito menos que se torna verdade quando alguém tem um encontro significativo com ele. Em vez disso, como Jesus afirma em outro trecho, a Escritura não pode ser anulada: “a Escritura não pode falhar” (Jo 10.35).
Mas se Jesus não se via abolindo a Lei e os Profetas, mas cumprindo-os, por que, então, há boas provas de que ele aboliu, por exemplo, as leis alimentares (Mc 7.19 – “Jesus considerou puros todos os alimentos”)? Por que os autores do NT, após a morte e ressurreição de Jesus, insistem em que o sistema sacrificial do AT agora é, no mínimo, desnecessário, e em princípio foi abolido (Hb 8.13; 10.1-18)? Por que os cristãos de hoje não procuram seguir ao pé da letra a lei do AT?
Várias respostas foram apresentadas. Pelo menos desde a época de Tomás de Aquino (c. 1225-1274), muitos cristãos dividem a lei em três categorias: moral, civil e cerimonial. Alguns dizem que a lei civil do AT foi abolida porque o povo de Deus já não constitui uma nação. A lei cerimonial caducou porque ela apontava para Jesus, que a “cumpriu” morrendo na cruz, assim tornando obsoletas as cerimônias do AT. Resta-nos a lei moral; e, segundo esse argumento, em Mt 5.17-20 Jesus estaria de fato se referindo apenas à lei mortal, que nunca muda.
O primeiro problema com essa ideia é que a expressão “nem um i (iota) ou um til” (v. 18) parece mais abrangente do que uma referência exclusiva à lei moral permitiria. Além disso, nem o AT nem o NT fazem essa tríplice distinção. É claro que esse fator por si não é conclusivo: muitas distinções legítimas podem ser deduzidas das Escrituras, apesar de não serem explicitamente ensinadas.
O problema dessa divisão em 3 partes é que, como está, não fica claro o que significa “moral”. Se o termo se refere ao que é fundamentalmente certo ou errado, eu argumentaria que o Deus aprova é fundamentalmente certo e o que ele proíbe é fundamentalmente errado. Nesse caso, quando Deus aprovou certos sacrifícios cerimoniais no AT, as pessoas ficavam moralmente obrigadas a praticá-los. Dentro do mesmo raciocínio, se Deus proibiu certas práticas civis no AT, seria imoral continuar praticando-as, exatamente porque foi Deus quem as proibiu. Portanto, essa definição de “moral” é problemática quando se adota a divisão em 3 partes: lei moral, cerimonial e civil. As 3 categorias não se excluem mutuamente. Se, porém, a lei moral se refere ao que Deus sempre aprova, então estamos diante de duas dificuldades: 1) Se Jesus em 5.18 está afirmando que somente a lei moral jamais muda, ele está sendo redundante, isto é: “somente a lei que Deus sempre aprova (e por isso nunca muda) nunca muda”; 2) se Jesus pretende estabelecer essa definição de lei moral, é estranho que ele se expresse com tal enunciado abrangente (5.18). Recorrer à histórica divisão tríplice da lei sem dúvida tem mérito em determinados contextos, mas creio que tal recurso não nos ajuda a explicar o que Jesus quer dizer em Mateus 5.17ss.
Outra hipótese comum dessa passagem é a hipótese de que “cumprir” aqui significa algo como “confirmar; comprovar”. Jesus cumpriu a lei guardando-a perfeitamente e agora ele a cumpre na vida de seus seguidores por meio de seu Espírito: o texto de Romanos 8.4 diz que Deus enviou seu Filho “a fim de que as justas exigências da lei fossem plenamente satisfeitas em nós, que não vivemos segundo nossa natureza pecaminosa, mas segundo o Espírito”. Nesse sentido, alega-se, o que a lei significa realmente é confirmado pela vida de Jesus e a de seus discípulos. Esses pontos são verdadeiros, sem dúvida, mas parece que não são eles que estão sendo ensinados aqui. Os termos empregados no v. 18 parecem mais precisos que isso.
Muitos comentaristas defendem que Cristo cumpre a lei e os profetas de duas maneiras diferentes. Os Profetas são cumpridos por Jesus de forma preditiva: o que eles predizem acontece, e assim, é cumprido. A Lei, no entanto, não é preditiva, isto é, profética, e se cumpre de algum outro modo. Alguns dizem que ela se cumpre no sentido defendido anteriormente – isso é, ela se confirma em seu significado mais profundo. Outros dizem que Jesus cumpriu a Lei morrendo na cruz, assim satisfazendo as exigências da lei sobre todos os que creem nele.
Tenho certeza de que todas essas ideias encontram apoio em alguma parte do NT, mas será que alguma delas é convincente nesse contexto? Será que elas estão de acordo com o modo de Mateus usar as palavras ou com os temas que Mateus enfatiza? Ao longo dos anos, de tempo em tempo, se propõe uma abordagem um pouco diferente, e ela tem muito méritos, penso. Em outro trecho, Mateus registra Jesus dizendo: “Desde os dias de João Batista até agora, o Reino dos Céus sofre violência, e os que usam de força se apoderam dele. Porque todos os Profetas e a Lei profetizaram até João” (Mt 11.12-13). Não são apenas os Profetas que profetizam; a Lei também profetiza. Todo o AT tem função profética, e Jesus veio cumprir o AT.
Contudo, para entender como Jesus o cumpre, precisamos entender como o AT profetiza. Parte dele é profecia no sentido comum de predição; e, pela leitura do NT, fica claro que o foco das profecias do AT é o Messias. Por exemplo, o lugar de seu nascimento é predito (Mq 5.2; Mt 2.5-6). Porém, algumas profecias do AT citadas por Mateus não são nem de longe tão claras. Por exemplo, Oseias 11.1: “...do Egito chamei meu filho”, é um texto usado para indicar a volta de Jesus do Egito para a Palestina depois da morte de Herodes, o Grande (2.15). Originalmente, porém, esse texto se referia ao Êxodo dos israelitas, sob a liderança de Moisés. Parece que, nesse caso, é a história dos judeus que aponta para Cristo, e não em sentido claro de predição.
No Evangelho de Mateus há muitos indícios de que essa forma de “profecia” não é incomum. Desse modo, se em Deuteronômio 8 Moisés lembra aos israelitas que eles vagaram durante 40 anos pelo deserto, onde Deus permitiu que passassem fome para aprenderem que o homem não vive só de pão, Jesus também passou fome por 40 dias no deserto e, quando foi tentado a duvidar da provisão de Deus, respondeu que “nem só de pão o homem viverá, mas de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4.1-4). Essa citação é do Pentateuco (Dt 8.2-3), que os judeus chamavam de Lei no sentido estrito, e que aqui se pressupõe que tenha alguma função profética.
O NT entende que o AT aponta futuramente para Cristo e as bênçãos que ele traz. O sistema sacrificial, por exemplo, apontava para o sacrifício de Jesus (Hb 9.8-9; 10.1-2). De fato, tudo o que estava escrito sobre Cristo na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos (Lc 24.44) tinha de ser “cumprido”. Portanto, o Senhor ressurreto podia explicar a seus discípulos o que foi dito a seu respeito em todas as Escrituras – começando por Moisés e todos os Profetas (Lc 24.27). As Escrituras testificam dele (Jo 5.39).
Logo, em Mateus 5.17-18, temos de nos livrar de concepções estreitas demais do que seja cumprimento. Jesus cumpre todo o AT – a Lei e os Profetas – de muitas maneiras. Uma vez que ambos apontam para ele, certamente ele não veio revogá-los. Ao contrário, ele veio cumpri-los de diversas maneiras, uma rica diversidade que esses parágrafos mal sugerem. Nem um item sequer da Lei ou dos Profetas passará, disse Jesus: até que o céu e a terra passem – antes que tudo se cumpra. A oração adverbial “até que o céu e a terra passem” simplesmente significa “nunca, até o fim dos tempos”, mas é restringida pela oração adverbial seguinte: “até que tudo se cumpra”.
Em outras palavras, Jesus não concebe sua vida e seu ministério como oposição ao AT, mas, sim, como um cumprimento daquilo que o AT prevê. Logo, a Lei e os Profetas, longe de serem abolidos, têm sua continuidade vigente levando em conta o cumprimento de Jesus. Os preceitos detalhados do AT podem ser suplantados, porque tudo o que é profético tem de ser, em algum sentido, provisório. Ao mesmo tempo, porém, tudo o que é profético encontra sua continuidade legítima na feliz chegada do que foi profetizado.
Tudo isso pressupõe que uma nova abordagem do AT está sendo inaugurada por Jesus, concomitantemente com a perspectiva transformada resultante do avanço do reino. De fato, o próprio Jesus mais adiante ensina exatamente isso. Ele diz: “Por isso, todo mestre da lei instruído sobre o reino do céu é semelhante ao dono de uma casa que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas” (Mt 13.52).
Na passagem anteriormente citada de Mt 11.12-13, observamos ainda que a Lei e os Profetas exercem essa função profética até João Batista. De João Batista em diante, o reino do céu avança (Lc 16.16-17). Semelhantemente, nos 2 versículos seguintes de Mateus 5 (19 e 20), Jesus deixa de falar sobre a Lei e os Profetas e passa a falar sobre o reino: “Aquele, pois, que desrespeitar um destes mandamentos, ainda que dos menores, e ensinar os outros a fazer o mesmo, será considerado mínimo no Reino dos Céus; aquele, porém, que os observar e ensinar, esse será considerado grande no Reino dos Céus”. A expressão “mandamentos” aqui, na opinião de Carson, não se referem aos mandamentos da lei do AT, mas, sim, aos mandamentos do reino do céu, reino mencionado 3 vezes nos vv. 19-20. São os mandamentos já preceituados e os que ainda virão no Sermão do Monte.
Alguns acham que os judeus esperavam uma nova lei quando o Messias viesse. Não parece ser assim. O fluxo de argumentação nessa passagem aponta para uma direção ligeiramente diferente. Ela se desenvolve mais ou menos assim: Jesus não veio para abolir o AT, mas para cumpri-lo – cumpri-lo no sentido de que ele mesmo era o alvo para o qual as Escrituras apontavam. Por isso, é o cúmulo da loucura não dar ouvidos aos seus mandamentos, os mandamentos do reino (Hb 2.1-3). O que se exige é “justiça” que exceda a dos fariseus e mestres da lei (5.20), caso contrário não há como entrar no reio do céu. Na verdade, até a posição dentro do reino depende da obediência aos mandamentos de Jesus (5.19); mas isso não é de surpreender, quando lembramos a tremenda ênfase que o Sermão do Monte dá à obediências a Jesus (Mt 7.21-23) ou o refrão que Jesus repete: “mas eu lhes digo ...” (Mt 5.20,22,26,28,32,34,39,44). O AT apontava para o Messias e o reino que ele inauguraria. Jesus, afirmando cumprir essa previsão do AT, apresenta o reino a seus seguidores. Ao fazer isso, ele ressalta a obediência e a justiça excelente, sem as quais ninguém pode entrar no reino. É importante notar que as palavras finais de Jesus no Evangelho de Mateus enfatizam novamente a obediência: os crentes têm de fazer discípulos de todas as nações, batizando-os e ensinando-os a obedecer a tudo o que Jesus ordenou (28.18-20). Os mandamentos de Jesus são destacados também em 5.19.
A esta altura está claro que o Sermão do Monte não é sentimentalismo barato concebido para induzir uma tola e ingênua mentalidade de filantropia. Tampouco esses capítulos sancionam a opinião de que os conceitos de Jesus acerca da justiça eram tão temperados com amor que a justiça cai para um nível inferior ao padrão estabelecido pela lei. Em vez disso, percebemos que a justiça exigida por Jesus ultrapassa qualquer coisa imaginada pelos fariseus, o grupo religioso ortodoxo da época de Jesus. O método de Jesus é mais desafiador e mais exigente – e também mais recompensador – do que qualquer sistema legal jamais poderia ser. Além disso, seu método foi indicado profeticamente antes de chegar de fato. Como diz Paulo: “mas agora, sem lei, a justiça de Deus se manifestou, sendo testemunhada pela Lei e pelos Profetas” (Rm 3.21).
Desse modo, por outra via voltamos à pureza interior definida nas bem-aventuranças. Assim como as bem-aventuranças fazem da pobreza em espírito condição necessária para a entrada no reino, Mt 5.17-20 também acaba exigindo um tipo de justiça que deve ter deixado os ouvintes de Jesus perturbados e conscientes do próprio fracasso espiritual. Com isso, o Sermão do Monte lança o alicerce das doutrinas neotestamentárias da justificação pela graça mediante a fé e da santificação pela obra regeneradora do Espírito Santo. Não é de admirar que Paulo, aquele zeloso e irrepreensível fariseu (Fp 3.4-6), quando entendeu o evangelho de Cristo, tenha considerado todos os seus recursos espirituais nada mais que refugo. Seu novo desejo era ganhar a Cristo, não tendo justiça própria sua provinda da lei, mas a que vem de Deus e pela fé em Cristo (Fp 3.8-9).
vv. 21-26
Agora, Jesus não pode presumir que tudo o que as pessoas ouviram sobre o conteúdo das Escrituras do AT estava de fato no AT. Isso porque os fariseus e doutores da lei consideravam que certas tradições orais tinham a mesma autoridade que a própria Escritura e, assim, contaminaram o ensino da Escritura com algumas interpretações falaciosas, todavia defendidas com unhas e dentes. Parece que Jesus tem aqui 2 interesses: derrubar tradições incorretas e, com sua autoridade, indicar a verdadeira direção para a qual as Escrituras do AT apontam.
“Não mate...Quem matar estará sujeito a julgamento” (v. 21). Essa proibição é o sexto dos 10 mandamentos; a ameaça de julgamento fazia parte da lei mosaica relativa ao homicídio. A pessoa que tivesse matado alguém tinha de ser levada à presença de um tribunal para ser julgada.
Será, porém, que o homicídio é só uma ação, cometida sem relação com o caráter do assassino? Será que não existe algo mais fundamental em jogo, isto é, como ele considera os outros (mesmo sua vítima ou suas vítimas)? Será que o ódio e a ira vingativa do homicida não estão à espreita nas sombras por trás do ato em si? Será que isso não significa que a ira e o furor são em si condenáveis? Por isso, Jesus insiste em que não só o assassino, mas qualquer um que tenha raiva de seu irmão estará sujeito a julgamento.
Em primeiro lugar, alguns manuscritos mais antigos do NT acrescentam as palavras “sem motivo” depois de “se irar contra seu irmão”. É quase certo que essas palavras foram acrescentadas posteriormente. Alguns escribas certamente acreditavam que Jesus não poderia ter sido não rigoroso a ponto de não excluir nenhum tipo de ira, por isso inseriram as palavras para atenuar a declaração.
Em segundo lugar, esse modo categórico e antagônico de falar caracteriza grande parte das pregações de Jesus e reflete uma maneira de pensar semítica e poética. Em Lucas 14.26, por exemplo, Jesus declara: “se alguém vem a mim e não odeia seu pai e sua mãe, mulher e filhos, irmãos e irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo”. O verbo “odiar” nesse versículo não pode ser entendido em sentido estrito. O que Jesus está dizendo é que o amor e a lealdade se devem a ele acima de tudo e de todos; não se deve permitir que nenhum concorrente usurpe o que não lhe é devido. Mas Jesus diz isso desse jeito contrastante (Mt 10.37), apesar de defender em outra passagem a importância de, por exemplo, honrar pai e mãe (Mc 7.10ss.). Na verdade, é importante deixar essa forma antitética e categórica de discurso falar, com toda sua rígida incondicionalidade, antes que tentemos moderá-la com considerações mais gerais. Em Mt 5.21ss., Jesus relaciona a ira ao assassinato: aceite essa relação e não pondere que alguns tipos de ira, mesmo na própria vida de Jesus, não apenas são justificáveis, mas legítimos.
Terceiro, se a ira é proibida, o desprezo também é. Raca é um insulto em aramaico. A palavra significa “vazio” e talvez pudesse ser traduzida por “seu-cabeça-oca!” ou algo semelhante. Isto é, ninguém pode dizer para outra pessoa: “seu idiota!”.
As pessoas que têm ações a atitudes desse tipo são sujeitas a julgamento, ao Sinédrio, à Geena. O Sinédrio era a suprema corte judaica. Geena é a transliteração grega de duas palavras semíticas que significam “vale do Hinom”, uma ravina no sul de Jerusalém onde era jogado e queimado o lixo, e que passou a ser um eufemismo para “o fogo do inferno”.
Alguns tentaram entender nesses 3 passos – ira, Raca (insulto) e “seu idiota!” – uma gradação. Mas é difícil acreditar que Jesus esteja se curvando a esse sofisma. Será que ele recorreria a essas filigranas de distinguir Raca e “seu idiota”? E será que qualquer uma dessas duas poderia ser dita sem ira? Jesus está tão somente dando vários exemplos para se fazer entender. Ele é um pregador que expõe seu argumento e depois faz seus ouvintes sentirem o peso. Ele confronta seus ouvintes: Vocês, que se acham muito diferentes, moralmente falando, dos assassinos – nunca sentiram ódio? Nunca desejaram que alguém morresse? Não se rebaixam frequentemente a ponto de desprezar e até caluniar outros? Toda essa ira difamatória está na raiz do homicídio e faz com que um homem zeloso tome consciência de que moralmente não difere nem um pouco de um assassino de verdade.
Da mesma forma, há dúvida de que os 3 castigos – julgamento, Sinédrio e fogo do inferno – devam ser entendidos como uma gradação. Na teocracia do AT, o próprio Deus respaldava o sistema jurídico do Estado. O julgamento, embora civil, também era divino. Aqui, Jesus percorre o sistema oficial até a punição máxima para deixar claro que o julgamento a ser temido é de fato divino, pois se baseia na avaliação que Deus faz do coração e pode levar ao fogo do inferno.
Esses versículos dizem algo muito importante. Não se deve pensar que a lei do AT que proíbe o homicídio está sendo adequadamente cumprida desde que não haja derramamento de sangue. A lei indica um problema mais fundamental: a ira difamatória do ser humano. Jesus, por sua própria autoridade, insiste em que o julgamento que se pensava estar reservado apenas para alguém que comete um assassinato na realidade paira sobre os irascíveis, os maldosos e os espezinhadores. Existe, porém, alguém que permaneça sem condenação?
Mas o próprio Jesus não ficou bastante irado algumas vezes? Sim, é verdade. Ele ficou contrariado com o comércio nas dependências do templo (Mt 21.12ss.). Também contra aqueles que, por razões legalistas e hipócritas, tentavam encontrar algo errado nas curas que Jesus fez no sábado (Mc 3.1ss.). E em certa ocasião, ao dirigir-se aos escribas e fariseus, Jesus disse: “insensatos e cegos!” (Mt 23.17). Será que Jesus é culpado de grave incoerência?
De fato, há lugar para arder de raiva contra o pecado e a injustiça. Nosso problema é que nós ardemos de indignação e ira não contra o pecado e a injustiça, mas contra o que nos ofende pessoalmente. Em nenhum dos casos em que Jesus se irou vemos seu ego envolvido na questão. Ainda mais revelador é que, quando foi preso injustamente, julgado de forma arbitrária, açoitado sem condenação, insultado com cusparadas, crucificado e escarnecido, quando de fato ele tinha todos os motivos para que seu ego se revoltasse, Pedro diz: “Quando insultado, não revidava, quando sofria, não fazia ameaças” (1Pe 2.23). De seus lábios ressecados saíram, em vez disso, estas palavras bondosas: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem” (Lc 23.34).
Admitamos: em geral somos rápidos para ficar irados quando somos pessoalmente afrontados e ofendidos, mas lentos para sentir ira quando vemos o pecado e a injustiça se multiplicarem em outras áreas. Nesses casos, somos mais inclinados a filosofar. Na verdade, o problema é até mais complicado que isso. Às vezes nos envolvemos numa questão legítima e discernirmos, talvez com precisão, o certo e o errado na situação. Contudo, ao defender o lado certo, nosso ego fica tão preso à questão que, para nós, os oponentes não só estão do lado errado, mas também estão nos atacando. Quando reagimos com ira, podemos nos iludir, pensando que estamos defendendo a verdade e o direito, mas lá no fundo estamos mais preocupados em nos defender.
No Sermão do Monte, apesar do modo incondicional com que proíbe a ira, Jesus não está proibindo todo tipo de ira, mas a que se orienta nas relações pessoais. Isso é óbvio não apenas pelos ensinamentos e conduta de Jesus em outras ocasiões e porque a ira em questão é a que se encontra no coração do assassino, mas também pelos 2 exemplos que Jesus dá para tornar seu argumento ainda mais incisivo (vv. 23-26).
O primeiro (vv. 23-24) fala de uma pessoa que vem cumprir seus deveres religiosos – nesse caso, a oferta de um sacrifício no altar do templo -, mas ofende seu irmão. Jesus insiste que é muito mais importante essa pessoa se reconciliar com seu irmão do que atender ao seu dever religioso, pois este último passa a ser fingimento e enganação se o adorador se comportou tão mal que seu irmão tem algo contra ele. É mais importante ser absolvido da ofensa diante de todos os homens do que chegar no horário certo ao culto de domingo de manhã. Esqueça o culto de adoração e se reconcilie com seu irmão; só depois adore a Deus. Os homens gostam de substituir integridade, pureza e amor por cerimônias, mas Jesus não aceita nada disso.
O segundo exemplo (vv. 25-26) é uma metáfora jurídica novamente. Na época de Jesus, assim como em séculos mais recentes, quem não pagasse suas dívidas podia ir para uma prisão para devedores até pagar a quantia devida. Enquanto estivesse preso, certamente não recebia nenhum dinheiro e, portanto, dificilmente conseguiria quitar a dívida e recuperar a liberdade. Porém, seus amigos e entes queridos, ansiosos por tirá-lo de lá, podiam fazer imenso esforço para conseguir o dinheiro.
Seria levar a metáfora longe demais deduzir que Jesus está ensinando que o tribunal celeste condenará os culpados à “prisão” (inferno?) somente até que tenham quitado suas dívidas. As dívidas em questão são ofensas pessoais. Como, então, serão pagas? E como outras pessoas podem pagar essas dívidas pelo preso? O que Jesus está ressaltando, na verdade, é a urgência da reconciliação pessoal. O juízo está às portas, e a justiça será feita: portanto, afasta-se de toda maldade e ofensa contra os outros, pois até aquele “que se irar contra seu irmão será sujeito a julgamento” (5.22). Desse modo, vemos que, nesses dois casos, é a animosidade pessoal que é condenada.
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