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Foto do escritorCarolina Lo Iacono

O Cristão em Defesa da Vida

Quando falamos da vida humana, estamos falando de uma semelhança com Deus sem comparação em toda a criação

O cristão mantém dupla cidadania, ao mesmo tempo em que vive no mundo espiritual, vive no mundo terreno. E é nessa vivência em sociedade, em seu casamento e família, trabalho, na vida pública e da igreja, que a fé cristã aparece de forma prática. A fé que se apegou a Jesus Cristo e sua obra graciosa na cruz para salvação torna-se atuante nas estruturas normais e ordinárias dessa vida. No entanto, ao viver dessa forma no dia a dia, é inevitável se deparar com a complexidade deste mundo terreno de pecado e os seus desdobramentos éticos. No campo da vida prática é que a ética cristã é confrontada, na medida em que este mundo impõe viver em conformidade com um sistema em muito contrário a fé cristã. Um exemplo bem claro é a questão do aborto. Este é um dos temas atuais mais polêmicos, no entanto também é uma das práticas cirúrgicas mais realizadas. Assim, nos deparamos não só com a sua defesa, mas também com  as consequências da sua prática.


O aborto é um fenômeno antigo, considerado por povos como os sumérios, babilônicos, assírios e hititas como um crime sério. É desde o Mundo Antigo que vem o “juramento de Hipócrates”, utilizado até recentemente: “não darei a nenhuma mulher um pessário para provocar um aborto”. Já na cultura grega, a prática era tolerada e até mesmo defendida, como no caso de Platão, que alegava que a mulher grávida de embrião defeituoso não deveria dar à luz, e de Aristóteles, que achava que as crianças nascidas com algum defeito deveriam ser deixadas para morrer. No entanto, entre o povo judeu o aborto era enfaticamente rejeitado. Flávio Josefo  (fim do século 1 d. C) registrou a proibição a essa prática e a condenação de assassina para a mulher que a realizasse. Também na Didaquê encontramos proibição ao aborto, o que era acolhido por parte dos primeiros pais da igreja, como Clemente de Alexandria. Foi por volta da década de 1820 que a descoberta do embrião humano influenciou a elaboração de leis modernas contrárias à interrupção da vida gestacional.


Nos Estados Unidos, isso começou a ser flexibilizado a partir de 1967 por parte de vários estados americanos. Essas questões pegaram a comunidade evangélica de surpresa, pois sendo  raro entre elas haver ensino bíblico sobre o assunto, a tomada de consciência das implicações desses acontecimentos se deu aos poucos. Na sociedade moderna, novos conceitos foram sendo incorporados, como a ideia de pessoalidade, qualidade de vida, direito à privacidade. A causa feminista abraçou intensamente a defesa da interrupção da gravidez, “um direito de escolha” da mulher: meu corpo, minhas regras. Ainda existe a questão da permissividade da lei em caso de estupro da mãe e de bebês-anencéfalos. Mesmo entre igrejas ditas evangélicas não existe consenso sobre essa temática nem sobre qual deve ser a atitude do cristão frente a ela.  Essas diferentes opiniões envolvem cosmovisão: “Quem defende a interrupção voluntária da gravidez traz consigo um conjunto de opiniões específico a respeito da vida, da liberdade da mulher (...) Certo ou errado, o custo moral a ser pago para rever opiniões relacionadas à morte da vida por nascer será sempre alto, e é difícil dizer com precisão quantas pessoas conseguem superar os traumas psicológicos e existenciais gerados por esses erros”1. Muitas dessas opiniões decorrem de pressupostos alheios a fé e secularizados, que acarretam em interpretações hermenêuticas falhas e enganosas, que por sua vez levam a práticas teológicas equivocadas. Como exemplo pode ser citado o Método Histórico-Crítico, que reverberado por teólogos liberais, criou uma geração  que desqualifica a Bíblia como livro normativo da fé cristã. 


Nesse contexto, percebemos uma necessidade urgente de uma ética bíblica saudável. A Palavra de Deus é a norma que  instrui o cristão na tomada de cada decisão e ação, é a luz que ilumina o caminho (Sl 119.105), acompanhando os passos em sua jornada. As Escrituras Sagradas “ensinam, repreendem, corrigem e educam para a justiça” ( 2Tm 3.17-17) a fim de que o crente seja bem preparado para, em conformidade com a nova vida em Cristo, viver em meio à sociedade de seu tempo. Nesse sentido, todo o conhecimento para avaliação das questões éticas dessa vida provém das Escrituras em primeiro lugar, e da sua correta interpretação. Quando falamos da vida humana, estamos falando de uma semelhança com Deus sem comparação em toda a criação (Sl 8.5; Hb 2.7-9). Ele determina todos os dias do ser humano (Sl 139), e nenhum deles, seja anterior ou posterior ao nascimento, é irrelevante para ele. Com um propósito a ser cumprido, cada nova vida concedida por ele é uma dádiva (Sl 127.3), e não está na mãos de outro homem decidir pelo seu fim (Ex 20.13). “Para Deus, o embrião não é ‘somente um punhado de tecido’ sem vida; ao contrário, Deus já sentia amor e afeto por nós quando estávamos sendo tecidos no útero de nossa mãe”2. 


Conhecer as Escrituras Sagradas corretamente aproxima do conhecimento da vontade de Deus para o ser humano, e também ajuda a reforçar uma maneira de pensar que esteja de acordo com ela. Ao lidarmos com a temática do aborto, precisamos ter a correta compreensão sobre Lei e Evangelho. Sem o entendimento da pecaminosidade humana e de seus desdobramentos, poderemos agir com demasiada dureza para com aqueles que sofrem as consequências dessa prática, ou com complacência e tolerância dependendo dos motivos alegados para  sua defesa. A igreja não está neutra nessa questão, como sal da Terra e luz do mundo (Mt 5.13-16), precisa falar em defesa da vida, daqueles que não podem se defender (Pv 31.8). Ela pode falar sobre o tema do valor da vida humana à luz da Palavra de Deus trabalhando de maneira preventiva em várias instâncias, como legislativa e manifestações públicas.


Mas certamente existe um número considerável de mulheres que lidam com a questão do aborto diretamente que estão sentadas nos bancos das mais diversas congregações cristãs. Seja pela pressão do momento ou pela falta de informação adequada, elas decidiram ou estão por decidir abortar, e passarão a lidar com sentimentos de culpa e vergonha. Muitos cristãos ao defenderem a vida acabam por atacar implacavelmente quem praticou o aborto, impossibilitando o encontro de um ambiente propício e acolhedor para confissão de pecados e angústias, mas aplicando a Palavra de Deus como pedra que esmaga. 


A ética cristã que é bíblica, vai nortear o cristão para que saiba quando aplicar a lei, condenando o que é contrário à valorização da vida como Deus intencionou, e quando aplicar o remédio do Evangelho, a fim de salvar o coração despedaçado que precisa de perdão e esperança.

  1. Razzo, Francisco, Contra o Aborto, p. 232. 

  2. W. C. Kaiser Jr., O Cristão e as Questões Éticas da Atualidade, p. 146

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