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Foto do escritorChristian Lo Iacono

O Poder da língua

Meus irmãos, não sejam, muitos de vocês, mestres, sabendo que seremos julgados com mais rigor. Porque todos tropeçamos em muitas coisas. Se alguém não tropeça no falar, é um indivíduo perfeito, capaz de refrear também todo o corpo. Ora, se colocamos um freio na boca dos cavalos, para que nos obedeçam, também lhes dirigimos o corpo inteiro. Observem, igualmente, os navios que, sendo tão grandes e impelidos por fortes ventos, são dirigidos por um pequeníssimo leme, e levados para onde o piloto quer. Assim, também a língua, pequeno órgão, se gaba de grandes coisas. Vejam como uma fagulha incendeia uma grande floresta! Ora, a língua é um fogo; é um mundo de maldade. A língua está situada entre os membros do nosso corpo e contamina o corpo inteiro, e não só põe em chamas toda a carreira da existência humana, como também ela mesma é posta em chamas pelo inferno. Pois toda espécie de animais, de aves, de répteis e de seres marinhos se doma e tem sido domada pelo gênero humano, mas a língua ninguém é capaz de domar; é mal incontido, cheio de veneno mortal. Com ela, bendizemos o Senhor e Pai; também, com ela, amaldiçoamos as pessoas, criadas à semelhança de Deus. De uma só boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, isso não deveria ser assim. Por acaso pode a fonte jorrar do mesmo lugar água doce e água amarga? Meus irmãos, será que a figueira pode produzir azeitonas ou a videira, figos? Assim, também, uma fonte de água salgada não pode dar água doce. Tiago 3:1-12


A preocupação com as palavras nesse parágrafo está conectada com a preocupação a respeito das obras em Tg 2.14-26 – a fé sem obras é morta! –, já que “as palavras também são obras” (Tasker). E são obras muito relevantes, a ponto de Jesus ter declarado que as nossas palavras serão a base para o julgamento escatológico de Deus: “porque, pelas suas palavras, você será justificado e, pelas suas palavras, você será condenado” (Mt 12.37). Além disso, para Tiago o controle da língua é um indicativo da religião verdadeira: “Cada um esteja pronto para ouvir, mas seja tardio para falar e tardio para ficar irado. Porque a ira humana não produz a justiça de Deus... Se alguém supõe ser religioso, mas não refreia a sua língua, está enganando a si mesmo; a sua religião é vã” (Tg 1.19-20, 26).


Mas por que Tiago escolhe o “mestre” na abertura de sua exortação? Duas respostas são dadas no geral. A maioria dos comentaristas não acham que Tiago está preocupado apenas, ou até mesmo de forma especial, com os mestres. Eles sugerem que Tiago seleciona os mestres como início porque fornecem um ponto de partida conveniente para a advertência geral sobre a língua. Outros, porém, acham que a referência aos mestres estabelece a direção para a passagem como um todo, argumentando que o parágrafo seria dirigido ao problema dos líderes cristãos que usam a língua de forma indevida. “Bendizemos” e “amaldiçoamos” (v. 9) teriam um cenário de adoração em vista, e as “pequenas coisas” que controlam as “grandes” (vv. 3-5) fariam pelo menos uma referência parcial aos líderes que dirigem a igreja (Martin).


Contudo, é difícil entender que essa longa passagem tenha aplicação somente aos líderes, e o versículo 1 parece se dirigir a qualquer cristão que queira se tornar um mestre. O tratamento geral aos leitores em Tg 4.1 e 4.11 demonstra que o problema da fala pecaminosa e crítica envolvia mais que os líderes. Além disso, os versículos 2 a 12 de Tg 3 não parecem ter uma referência especial aos líderes. Portanto, parece que a preocupação a respeito de pessoas com vontade de ensinar é que leva Tiago a fazer uma advertência geral à igreja a respeito da língua. Assim, nos versículos 1-2, Tiago introduz a questão advertindo as pessoas que querem ser mestres sobre a dificuldade peculiar de se controlar a língua. Já o poder incrível da língua é o tema dos vv. 3-6: “pequeno órgão, se gaba de grandes coisas” (v. 5). Nos vv. 7-8, Tiago discorre sobre a dificuldade de se controlar o poder da língua, e nos vv. 9-12: “a língua revela a sua natureza maligna ao manifestar essa duplicidade tão típica do pecado” (Frankemolle).


Ora, o problema da fala descontrolada é um tema frequente entre os moralistas seculares e também na literatura de sabedoria judaica. Provérbios distingue constantemente os hábitos de fala como identificadores essenciais de devoção: “a boca do justo é manancial de vida, mas na boca dos ímpios mora a violência” (10.11, 8, 21; 11.9; 12.18, 25; 13.3; 16.27; 17.14; 18.7, 21; 26.22). As ilustrações usadas por Tiago nessa seção refletem essas fontes. Elas não significam que Tiago tem de estar profundamente imerso na filosofia greco-romana, pois todas elas são do tipo que seriam amplamente conhecidas entre aqueles até mesmo com um conhecimento mínimo da cultura helenista. A imagem de Tiago que emerge é de um judeu razoavelmente bem-educado que conhece do começo ao fim seu Antigo Testamento e que está bem familiarizado com a cultura, linguagem e literatura helênica-judaica.


Versículo 1. Tiago começa desencorajando seus líderes a se tornarem “mestres”. Os didaskaloi eram proeminentes na vida da igreja primitiva desde o início. O ofício de mestre era o equivalente ao de um rabi na comunidade judaica (Mt 23.8; Jo 1.38). Paulo colocou o dom de ensinar em uma posição muito alta na lista dos dons concedidos pelo Espírito à igreja (1Co 12.28; At 13.1; Rm 12.7; Ef 4.11). O mestre – ao contrário do profeta, que transmitia para a comunidade as revelações recebidas do Senhor (1Co 14.30) – tinha a tarefa de expor a verdade do evangelho com base na crescente tradição cristã (2Tm 2.2). O equivalente aproximado ao rabi significaria que um mestre na igreja judaico-cristã primitiva teria considerável prestígio, especialmente em uma sociedade em que poucas pessoas sabiam ler e em que as classes mais baixas tinham menores oportunidades de avanço social. Parece que muitos indivíduos estavam buscando, com certa ansiedade, a posição de mestres sem terem as qualificações morais (e talvez intelectuais) necessárias. Talvez mestres inadequados (Tg 3.13) eram uma causa importante do espírito sectário ácido (3.13-18), da discórdia (4.1) e da fala crítica e condenatória (4.11) que pareciam caracterizar a comunidade. Por isso, Tiago começa falando sobre a língua com uma ilustração prática do problema que a fala descontrolada pode criar.


Os cristãos não devem ficar ansiosos em se tornar mestres, porque “seremos julgados com mais rigor” (v. 1b). Aqui, Tiago revela que se considera um mestre também, identificando-se com aqueles a quem adverte, a quem chama de “meus irmãos”, um tratamento afetuoso. O que Tiago parece ter tido em vista aqui é que os mestres, pelo fato de seu ministério envolver a fala, a parte mais difícil do corpo de ser controlada, expõem-se a maior risco de julgamento. O uso constante da língua por eles significa que podem pecar com mais facilidade, além de poderem levar outros a se corromperem. Os mestres, por terem tanta responsabilidade quanto ao bem-estar espiritual daqueles para quem ministram, serão examinados pelo Senhor com mais cuidado que os outros. Jesus advertiu: “Àquele a quem muito foi dado, muito lhe será exigido; e àquele a quem muito se confia, muito mais lhe pedirão” (Lc 12.48).


Deus concedeu um grande dom aos mestres e confiou a eles o depósito da fé (2Tm 1.14). Seria esperado do mestre uma prestação de contas cuidadosa de sua administração. Paulo reflete exatamente esse sentido de responsabilidade quando se dirige aos presbíteros da igreja em Éfeso. Ele enfatiza que é fiel a sua tarefa como propagador do evangelho: “Estou limpo do sangue de todos, pois jamais deixei de lhes anunciar todo o plano de Deus” (At 20.26-27). Se Paulo serve como um exemplo positivo, muitos dos mestres judeus da época de Jesus exibiam o outro lado da moeda: por causa da falta de sinceridade deles e desejo de ganho, Jesus anunciou que receberão condenação mais severa (Mc 12.40). Aqueles de nós que ensinam a palavra de Deus de forma regular precisam seguir o exemplo de Tiago e aplicar a advertência desse versículo a nós mesmos. Quando empreendemos a tarefa de guiar os outros na fé, temos que ser especialmente cuidadosos para exibir o fruto dessa fé por meio da maneira como vivemos. Nosso maior conhecimento traz consigo uma maior responsabilidade de vivermos de acordo com esse conhecimento. É claro que Tiago não tenta afastar pessoas que têm o chamado apropriado e o dom para se tornarem mestres. Mas ele quer nos conscientizar da seriedade desse chamado e nos advertir sobre entrar no ministério com motivações não sinceras ou altivas.


O versículo 2 explica o v. 1: a fala, que é algo regular na vida de um mestre, é um lugar difícil de se guardar do pecado. “Todos tropeçamos em muitas coisas”. A palavra “tropeçamos” é ptaio (também aparece em 2.10; Rm 11.11; 2Pe 1.10), que significa “cometer um erro”, “pecar”. “Se alguém não tropeça no falar, é um indivíduo perfeito, capaz de refrear também todo o corpo” (v. 2). As palavras têm uma forma de escapar da nossa boca antes de serem consideradas de forma cuidadosa, muitas vezes com resultados infelizes. “Os lábios do tolo entram na discussão, e a sua boca clama por açoites. A boca do tolo é a sua própria destruição, e os seus lábios são uma armadilha para a sua alma” (Pv 18.6-7). Fílon escreveu: “Mas se acontecesse de um homem, como se dedilhasse a lira, fizesse com que todas as notas do que é bom estivessem no tom, fazendo a fala harmonizar com a intenção; e a intenção, com a obra: tal homem seria considerado perfeito e de caráter verdadeiramente harmonioso” (Johnson). Na verdade, a facilidade com que a pessoa peca na fala e os resultados terríveis desse pecado são temas importantes tanto na literatura de sabedoria judaica como nas exortações morais helenistas. Tiago, portanto, dificilmente está dizendo algo novo ao afirmar que a pessoa que não comete pecado na fala seria perfeita. Na verdade, essa pessoa seria com certeza capaz também de controlar o corpo todo. A língua é tão difícil de controlar, tão dada a proferir a palavra falsa, sarcástica e caluniosa, tão propensa a ficar aberta quando seria mais lucrativo ficar fechada, que a pessoa que tem controle sobre ela com certeza tem a habilidade para “dominar” outros membros do corpo menos incontroláveis. A palavra “dominar” significa “freio” e remete a Tg 1.26 (“supõe ser religioso, mas não refreia a sua língua”), além de antecipar a metáfora do versículo 3.


Versículo 3. Nossas palavras têm um enorme impacto sobre nossa vida espiritual. Mas será que Tiago não exagerou aqui? Parece que não, tanto que ele usa várias ilustrações nessa direção. Ele quer mostrar que a língua, comparativamente pequena, tem uma influência além de seu tamanho. Tiago compara a língua aos freios que controlam o cavalo (v. 3), ao leme que guia o navio (v. 4) e à fagulha que faz uma floresta incendiar (v. 5). Ele se revela mais uma vez como um pastor preocupado em se fazer claro para seus leitores usando imagens de seu mundo e a literatura da época. A peça de Sófocles, do século V a.C., tem um de seus personagens que diz: “Sei que cavalos fogosos são subjugados pelo uso de um pequeno freio” (Antígona 477). O fato de colocar freios na boca dos cavalos faz com que “nos obedeçam” (lit. “convence-os em nosso benefício”). O resultado disso é que “lhes dirigimos o corpo inteiro” (v. 3b). É provável que não seja tanto o “controlar” que Tiago pretenda ilustrar, mas a “direção”: como o freio determina a direção do cavalo, também a língua pode determinar o destino do indivíduo. Os cristãos que exercem controle cuidadoso da língua são capazes também de dirigir toda a sua vida em seu curso apropriado e divinamente orientada. Mas quando essa língua não é controlada, por menor que seja, o resto do corpo provavelmente também ficará descontrolado e indisciplinado.


Versículo 4. Aqui, Tiago contrasta de forma mais explícita os navios, “tão grandes”, com o leme, “pequeníssimo”. Além disso, Tiago aponta que o leme controla o navio imenso em meio a “fortes ventos”. “Fortes” (skleros) indica “difícil”, “severo”, “cruel”, e aplicada a ventos (Pv 27.16; Is 27.8) significa “violento”, “duro”. Outra diferença da primeira imagem – a do cavalo e o freio – é a referência explícita à “vontade” ou “impulso” que controla o leme e, por conseguinte, o navio: o piloto. Assim, o desejo orientador (o piloto), o meio de controlar (o leme) e o que é controlado (o navio) correspondem respectivamente ao desejo humano, à língua e ao corpo (Johnson). A imagem do pequeno leme que guia um navio imenso era difundida no mundo antigo. Aristóteles contrastou o pequeno tamanho do leme, pilotado por um homem, com a massa imensa do navio que controla (Quaestiones Mechanica 5).


Mas o que é interessante é o fato de alguns escritores usarem a mesma combinação de ilustrações. O melhor exemplo talvez seja uma passagem de Fílon, em que ele fala do poder da mente para dirigir os sentidos: “A mente é superior para o senso de percepção. Quando o cocheiro está no comando e guia os cavalos com as rédeas, a charrete segue o caminho que ele quer. [...] Um navio, mais uma vez, mantém seu curso direto quando o timoneiro segura o timão em conformidade com o curso. [...] Assim quando a mente, o timoneiro e cocheiro da alma, governa o todo do ser vivo como um governador o faz com a cidade, a vida mantém seu curso direto. [...] Mas quando o senso irracional consegue o lugar principal [...], a mente é incitada ao fogo e fica incandescente, e esse fogo é acendido pelos objetos do sentido supridos pela percepção do sentido” (Allegorical Interpretation, 3.224). O motivo para citar esses paralelos é o fato de que as imagens (cavalo, navio e fogo) eram tão comuns que Tiago podia usá-las como fontes naturais para ilustrações.


Versículo 5. “Assim, também a língua, pequeno órgão, se gaba de grandes coisas”. Embora a palavra grega para “vanglória” aucheo seja encontrada apenas aqui no NT, a ideia de “vanglória” é com frequência negativa, porque envolve atrevimento arrogante diante de Deus (Tg 4.16-17). No entanto, aqui o uso é mais neutro: a língua pode legitimamente fazer a reivindicação de ter considerável poder. “A língua humana é fisicamente pequena, mas de que tremente efeito pode ser vangloriar!” (Philips). A imagem da fagulha e da floresta incendiada fornece mais uma ilustração da “vanglória de grandes coisas” que as pequenas coisas podem fazer. Agora, porém, é acrescentada a nuança da destrutibilidade. O que Tiago quer que “vejamos” (v. 5b) é “como uma fagulha incendeia uma grande floresta (ou bosque)!” Tiago pode estar se referindo não tanto a uma “floresta” (característica rara na topografia do Oriente Próximo na época de Tiago), mas a um mato que cobre muitas colinas em Israel e que, no clima mediterrâneo seco, poderia facilmente crepitar em chamas (L. E. Elliot-Binns).


Um incêndio enorme e incontrolável é uma forma natural para ilustrar consequências desastrosas. No mundo da Antiguidade, a propagação rápida e devastadora do fogo era usada com frequência para transmitir uma advertência sobre o efeito das paixões desenfreadas. O AT compara a fala de um homem sem caráter com o “fogo devorador” (Pv 16.27), e um escritor judeu do período intertestamentário afirma que a língua “não terá ação sobre os homens piedosos, que não serão queimados em suas chamas” (Sir 28.22). Ou seja, não só a pequena língua – como a rédea e o leme – possui um poder fora de proporção em relação ao seu tamanho; mas também tem o potencial para trazer desastre – como a fagulha em uma floresta seca.


Versículo 6. Tiago agora abandona a comparação com o freio, o leme e a fagulha em favor da metáfora “um fogo”. O sentido mais comum de “mundo” no NT é “o sistema mundial caído e pecaminoso” (Tg 1.27; 4.4). A palavra “maldade” é acrescentada para deixar claro esse aspecto negativo da palavra “mundo”. “A língua é um fogo” quer dizer que ela “é apontada entre nossos membros como o mundo de maldade, maculando o corpo todo, pondo fogo no curso da existência” (Douglas Moo). A língua, embora seja um membro pequeno do corpo, aponta a si mesma como o “mundo de maldade”; ou seja, a língua, em virtude de ser a parte mais difícil de todas as partes do corpo de se controlar, passa a ser o condutor por meio do qual toda a maldade do mundo ao nosso redor vem à expressão em nós. Calvino: “uma pequena porção de carne contém o mundo todo de iniquidade”. Jesus fez declarações semelhantes sobre a língua. Ele ensinou que “o que sai da boca” é o que torna os seres humanos impuros, porque a boca expressa o que está no coração, onde estão alojados os maus pensamentos, os homicídios, os adultérios, as imoralidades sexuais, os roubos, os falsos testemunhos e as calúnias (Mt 15.11, 18-19). Nenhum outro “membro” do corpo, talvez, provoque tanta devastação na vida devotada. A língua, ao “contaminar” toda a pessoa, destrói a religião verdadeira, que, conforme Tiago nos informa, nos impele a que nos guardemos de ser contaminados pelo mundo. “Corpo inteiro” (soma) aqui não se refere apenas à parte física do corpo, mas à pessoa por inteiro.


“Põe em chamas toda a carreira da existência humana”: a língua não só contamina a pessoa toda, mas também “põe em chamas”, causa estragos em toda a vida da pessoa. Mas de onde vem esse enorme potencial destrutivo? Do “inferno”, diz Tiago. “Inferno” traduz a palavra gehenna, que é uma transliteração de duas palavras hebraicas que significam “Vale de Hinom”. Esse vale, logo do lado de fora de Jerusalém, ganhou uma reputação ruim no AT e no período intertestamentário. O sacrifício de crianças, uma prática pagã, era realizado ali (Jr 32.35), e o lixo era com frequência queimado no local. Jesus usou a palavra (11 vezes) para se referir ao lugar da condenação derradeira. O poder do próprio Satanás, o principal cidadão do inferno, dá à língua seu grande potencial destrutivo. Tiago não elabora as maneiras em que o poder destrutivo da língua se faz presente. Mas, sem dúvida, ele teria pensado naqueles pecados da fala enumerados em Provérbios: a precipitação no falar (10.8; 12.18; 29.20), a mentira (12.19), a vanglória vaidosa (18.12), a calúnia (10.18). Pense no dano imenso, às vezes irreversível, que pode ser causado às pessoas pelos rumores infundados e, muitas vezes, falsos. Isso pode ser mais difícil de se parar que qualquer incêndio no bosque (v. 5).


Versículo 7. Tiago volta a lembrar que a língua é extremamente difícil de ser mantida sob controle. Ele já tocou nesse ponto no v. 2, em que atribuiu a perfeição a qualquer pessoa capaz de evitar o pecado na fala. Os versículos 7 e 8 são introduzidos (“pois”) como evidência de que a língua é de fato “posta em chamas pelo inferno” (v. 6). De que outra forma, conforme parece seguir a lógica de Tiago, podemos explicar a incapacidade humana de treinar a língua? Ele começa dizendo que os seres humanos são capazes de treinar os “animais” (qualquer tipo; At 28.4-5). A alusão à criação, nos mesmos termos de Gn 1.26, mostra que Tiago faz uma asserção teológica geral sobre a natureza do mundo. A capacidade humana para “domar” o mundo animal é inerente à imagem de Deus e à ordem divina para dominar o mundo. “O gênero humano”, segundo Tiago, domina “toda espécie de animais”. Além disso, Tiago usa o verbo “domar” duas vezes: uma no tempo presente para enfatizar o processo contínuo pelo qual os seres humanos dominam as criaturas; e mais uma vez no tempo perfeito – “tem sido domada” – para mostrar que esse processo está enraizado na condição dos assuntos criados pela ordem divina. Salientar a natureza intratável da língua por meio da referência contrastante do domínio humano sobre a natureza faz sentido em si mesmo e por si mesmo. Mas Tiago usa mais uma vez a imagem da tradição judaica, que ilustraria o controle humano sobre o mundo ao comparar o ser humano com o condutor de uma carruagem (v. 3) ou o piloto de um navio (v. 4).


Versículo 8. Os seres humanos podem subjugar os animais, mas a língua ninguém consegue domar. Agostinho achava que Tiago não está “dizendo que ninguém pode domar a língua, mas nenhum homem, de modo que, quando ela é domada, confessamos que isso é realizado pela misericórdia, ajuda e graça de Deus”. Se essa é a intenção de Tiago, ele estaria nos oferecendo esperança para que, por meio da obra poderosa do Espírito, tragamos nossa fala à conformidade perfeita com a vontade de Deus. Esse indivíduo, indica Tiago, seria, então, “perfeito” (v. 2). Mas não parece ser possível essa perfeição no NT. Tiago sugere que a doma derradeira da língua é impossível. Isso nos deveria levar a abandonar todo esforço para controlar a nossa fala? É claro que não! A compreensão de que a perfeição em algo é impossível não deveria arrefecer em nada nosso entusiasmo para nos tornar tão bons nisso quanto possível. Talvez nunca alcancemos o ponto em que a língua é perfeitamente controlada; mas podemos com certeza avançar bastante no caminho para usar nossa fala para glorificar a Deus.


No fim do versículo 8, Tiago acrescenta mais duas caracterizações da língua para mostrar a dificuldade de sua submissão: “é mal incontido, cheio de veneno mortífero”. A palavra “incontido” é a mesma usada em Tg 1.8 para descrever o homem de “mente dividida e instável em tudo o que faz”. A LXX usa a mesma palavra com referência a pecados da fala em Pv 26.28: “A língua falsa odeia aqueles a quem engana, e a boca lisonjeira é causa de ruína”. Hermas, um documento cristão primitivo, registra: “A calúnia é má; é um demônio incontrolável (akatastaton), nunca fica em paz” (Tg 4.1). A natureza desse “mal incontido” não fica tão clara. Tiago, de um lado, talvez esteja reiterando como é difícil controlar a língua: é como Philips parafraseia: “sempre propensa a irromper”. De outro lado, Tiago talvez esteja pensando na “instabilidade e falta de sinceridade” que caracterizam a língua (Davids). A primeira ideia se ajusta bem à ênfase sobre a dificuldade de se domar a língua nos vv. 7-8, mas a segunda antecipa o argumento dos vv. 9-12 e é compatível com a outra ocorrência da palavra em Tiago. Tiago conclui o versículo com uma descrição da língua tirada do AT: “cheio de veneno mortífero”. Salmos 140-3: “Aguçam a língua como a serpente; sob os lábios têm veneno de víbora” (Rm 3.13).


Versículo 9. Tiago conclui sua crítica à língua atribuindo a ela a duplicidade que deplora com tanta frequência em sua epístola. O ser humano “indeciso e inconstante” (1.8; 4.8), inconsistente em sua fé, tenta agradar a Deus e ao mundo ao mesmo tempo, resume Tiago. Com a língua, ele bendiz a Deus e, ao mesmo tempo, amaldiçoa as pessoas criadas à sua semelhança (ex. “lixo humano”). Esse assunto da duplicidade da língua é o tema dos vv. 9-12. Embora eles não estejam ligados explicitamente aos versículos anteriores (por conjunção ou partícula), parece claro que “a inconsistência da língua é uma indicação muito clara do ‘mal incontido’ (v. 8) que ela é” (Douglas Moo). Tiago não poderia escolher nenhum contraste mais forte para ilustrar a dualidade da língua que seu uso no bendizer a Deus e no amaldiçoar os seres humanos. O bendizer era uma parte básica da devoção judaica. “Bendito seja o Santo” é uma das designações mais comuns para Deus na literatura rabínica, e as “dezoito bênçãos”, uma forma litúrgica citada diariamente, concluíam cada uma de suas seções com uma bendição a Deus. Os cristãos primitivos, é claro, estavam igualmente preocupados em bendizer a Deus na oração e no louvor (2Co 1.3; Ef 1.13; 1Pe 1.3). Bendizer, ou louvar, a Deus é uma das formas mais importantes e positivas da fala humana. Tiago talvez pense na adoração da comunidade, em que os cristãos unem sua voz na entonação de cânticos e afirmando o louvor de Deus. Mas se louvar a Deus é uma das mais elevadas formas de fala, amaldiçoar as pessoas é uma das mais baixas. No exemplo bíblico mais famoso, Deus coloca reiteradamente diante de Israel as duas alternativas como o resultado da reação deles à sua lei (Dt 30.19: “lhes propus a vida e a morte, e bênção e a maldição; escolham, pois, a vida, para que vivam, vocês e os seus descendentes). A maldição na Antiguidade era muito mais que linguagem abusiva; ela clamava a Deus, com efeito, para cortar a pessoa de qualquer possível bênção e destinava essa pessoa ao inferno. Jesus proibiu seus discípulos de amaldiçoar os outros; na verdade, eles tinham que abençoar os que os amaldiçoassem (Lc 6.28; Rm 12.14). Como Tiago enfatiza, o que torna a maldição especialmente maligna é que aquele a quem amaldiçoamos é feito à semelhança de Deus. Tiago já aludiu nesse contexto à fala criadora de Deus quando designou os vários tipos de criaturas sobre as quais Deus deu o domínio ao homem (v. 7; Gn 1.26). Aqui ele alude mais uma vez à mesma passagem (Gn 1.27) para nos lembrar da semelhança especial que os seres humanos têm com o próprio Deus. Tiago está provavelmente aqui refletindo mais uma vez a tradição judaica comum; os rabis ensinavam que não se deve dizer: “Que o meu próximo seja envergonhado” – pois, assim, o indivíduo estaria envergonhando aquele que é a imagem de Deus” (Genesis Rabbah 24[sobre Gn 5.1]).


Versículo 10. Tiago traz agora a moral do v. 9: “de uma só boca procede bênção e maldição. Meus irmãos, isso não deveria ser assim” (v. 10). Até aqui Tiago vinha se referindo à língua; agora ele muda para “boca”, o que reflete sua dependência do ensino de Jesus sobre aquilo que, de fato, polui a pessoa: “o que contamina a pessoa não é o que entra pela boca, mas o que sai da boca; isto, sim, contamina a pessoa [...] Não compreendem que tudo o que entra pela boca desce para o estômago e depois é eliminado? Mas o que sai da boca vem do coração, e é isso que contamina a pessoa. Porque do coração procedem maus pensamentos, homicídios, adultérios, imoralidade sexual, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias. São estas as coisas que contaminam a pessoa; mas o comer sem lavar as mãos não a contamina” (Mt 15.11, 17-20). Jesus também aponta para a seriedade do que procede da boca ao torná-la um padrão de julgamento: “pois por suas palavras vocês serão absolvidos, e por suas palavras serão condenados” (Mt 12.37). Tiago também vê o que procede da boca como um barômetro da espiritualidade. A língua, embora seja um membro pequeno, “se vangloria de grandes coisas”(v. 5) e representa em nosso corpo um “mundo de maldade” (v. 6). E em nenhum outro lugar a língua revela seu poder maligno mais que em sua duplicidade. Os cristãos que foram transformados pelo Espírito de Deus deveriam manifestar a integridade e a pureza de coração na consistência e pureza da fala.


Versículo 11. Tiago enfatiza o ponto de que um coração puro e uma fala impura e com duplicidade são incompatíveis com as três ilustrações (vv. 11-12). A ideia é que é absurdo produzir algo de um tipo completamente diferente. Muitas cidades deviam sua origem à descoberta de uma “fonte” e dependiam da produção confiável dela, de água potável, para a continuação de sua existência. É claro que é vital que uma fonte continue a produzir água doce (ou “fresca” [gr. glykos]; cf. Ap 10.9,10). Algumas fontes e correntes de água produziam uma mistura de água doce e salobra, ou amarga, que era inutilizável. Mas a fonte não jorra água doce um dia e água salobra no seguinte. Isso simplesmente não acontece. E por isso, Tiago explica, também é inconcebível achar em uma língua expressão de louvor a Deus em um momento e maldição contra os irmãos seres humanos no seguinte. Tiago, ao comparar a língua com uma fonte que produz água amarga, reforça sua advertência de que a língua na verdade é “cheia de veneno mortífero” (v. 8).


Versículo 12. “Pode alguém colher uvas de um espinheiro ou figos de ervas daninhas?”, perguntou Jesus (Mt 7.16). Assim, o coração puro não pode produzir fala falsa, amarga e prejudicial. Ou seja, coisas ruins não produzem coisas boas. Mas a comparação com a árvore boa e seus frutos deve ser cuidadosa. Essa imagem, se considerada de forma estrita, poderia sugerir que a pessoa, uma vez que é tornada boa por Deus por meio de Cristo e do Espírito, viveria o tipo certo de vida em todos os aspectos. Como disse Berkhof, “um homem, afinal, não é uma árvore”. Os processos naturais automáticos da vida da planta não podem ser exatamente comparados com os processos voluntários e decisivos da vida humana. Mas a imagem, sejam quais forem seus limites, transmite uma importante advertência: só um coração perdoado e renovado pode produzir uma fala pura; e a fala pura de forma consistente (embora não perfeita) tem de ser o produto do coração renovado.

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