Quando Labão ouviu as novas de Jacó, filho de sua irmã, correu ao encontro dele, abraçou-o, beijou-o e o levou para casa. E Jacó contou a Labão tudo o que havia acontecido.
Então Labão disse: — De fato, você é meu osso e minha carne. Jacó ficou na casa de Labão durante um mês.
Depois, Labão disse a Jacó: — Será que você vai trabalhar de graça, só por ser meu parente? Diga-me qual deve ser o seu salário.
Ora, Labão tinha duas filhas: Lia, a mais velha, e Raquel, a mais nova.
Lia tinha uns olhos sem brilho, porém Raquel era bonita e formosa.
Como Jacó amava Raquel, disse a Labão: — Trabalharei para o senhor durante sete anos para poder casar com Raquel, sua filha mais nova.
Labão respondeu: — É melhor dá-la a você do que a outro homem. Fique aqui comigo.
Assim, por amor a Raquel, Jacó trabalhou durante sete anos. E esses anos lhe pareceram como poucos dias, pelo muito que a amava.
Então ele disse a Labão: — Dê-me a minha mulher, pois já venceu o prazo, para que eu me case com ela.
Assim, Labão reuniu todos os homens do lugar e deu um banquete.
À noite, ele trouxe Lia, sua filha, e a entregou a Jacó. E eles tiveram relações.
(Labão tinha dado sua serva Zilpa para que fosse serva de Lia, sua filha.)
Ao amanhecer, Jacó viu que era Lia. Por isso, disse a Labão: — O que é isso que o senhor fez comigo? Não é verdade que eu trabalhei por amor a Raquel? Por que, então, o senhor me enganou?
Labão respondeu: — Em nossa terra não se costuma dar em casamento a mais nova antes da primogênita.
Complete a semana de festa de casamento da primogênita. Depois, daremos a você também a outra, pelo trabalho de mais sete anos que você ainda me servirá.
Jacó fez o que Labão pediu e completou a semana de festa da primogênita. Depois, Labão lhe deu por mulher a sua filha Raquel.
(Labão tinha dado sua serva Bila para que fosse serva de Raquel, sua filha.)
E Jacó teve relações também com Raquel. Ele amava Raquel mais do que amava Lia. E continuou trabalhando para Labão durante mais sete anos.
Quando o Senhor viu que Lia era desprezada, fez com que ela fosse fecunda, ao passo que Raquel era estéril.
Assim, Lia ficou grávida e deu à luz um filho, a quem deu o nome de Rúben, pois disse: — O Senhor viu a minha aflição. Por isso, agora meu marido vai me amar.
Ela ficou grávida outra vez e deu à luz um filho. E disse: — O Senhor ouviu que eu era desprezada e me deu mais este filho. E deu-lhe o nome de Simeão.
Lia ficou grávida ainda outra vez e deu à luz um filho. E disse: — Agora, desta vez, o meu marido se unirá mais a mim, porque lhe dei à luz três filhos. Por isso lhe deu o nome de Levi.
Mais uma vez ela ficou grávida e deu à luz um filho. Então disse: — Desta vez louvarei o Senhor . E por isso lhe deu o nome de Judá. E depois disso não teve mais filhos.
O anseio humano pelo amor verdadeiro sempre foi celebrado em canções e narrativas, mas em nossa cultura atual ele tem sido ampliado em grau assombroso. Na música, por exemplo, os cantores dependem demais de se sentirem apaixonados. Sem algum tipo de relação romântica, mesmo que da espécie errada, a vida lhes parece não ter sentido.
Quando procuramos nos outros o tipo de afirmação e aceitação profundas que só Deus pode oferecer, acabamos nos tornando escravos do amor. Fazer do amor um ídolo pode significar permitir que o ser amado explore e abuse de você, ou talvez cause uma terrível cegueira para as patologias no relacionamento. Uma ligação idolátrica pode levá-lo a quebrar promessas, a racionalizar indiscrições ou a trair outras alianças a fim de se manter agarrado ao ídolo. Pode motivá-lo a violar todos os limites justos e adequados. Praticar a idolatria é ser um escravo.
Há um relato na Bíblia que ilustra como a busca do amor pode se tornar uma forma de escravidão. Trata-se da história de Jacó e Lia em Gênesis 29. Sempre tem sido possível converter o amor romântico e o casamento em um deus falso, mas a cultura em que vivemos torna ainda mais fácil o erro de transformar o amor em deus ou de sermos arrastados por esse amor e depositar toda nossa esperança de felicidade nele.
Na semana passada, vimos que Deus veio a Abraão e prometeu redimir o mundo por meio de sua família, mediante uma linhagem de descendentes. Portanto, a cada nova geração, um filho seria escolhido como representante da linhagem, para andar com Deus como líder da família e transmitir a fé para a geração seguinte, até que viesse o Messias.
Abraão gerou Isaque. Anos mais tarde, a esposa de Isaque, Rebeca, engravidou de gêmeos, e Deus falou por meio de uma profecia: “...o mais velho servirá o mais novo” (Gn 25.23). Significava que o segundo filho gêmeo havia sido escolhido para levar adiante a linhagem messiânica. Apesar da profecia, o coração de Isaque se inclinava para o filho mais velho, Esaú, preferindo-o ao mais jovem, Jacó. De modo irônico, esse foi o mesmo erro trágico que Deus havia poupado Abraão de cometer quando o chamara para oferecer seu único filho em sacrifício. Por causa do favoritismo de Isaque, Esaú cresceu orgulhoso, mimado, voluntarioso e impulsivo, ao passo que Jacó cresceu cínico e amargurado.
Chegou a hora de Isaque, já idoso, dar a bênção para o chefe do clã, que, em rebeldia à profecia divina, ele pretendia que fosse Esaú. No entanto, Jacó se vestiu como o irmão mais velho, aproximou-se do pai, este quase cego, e recebeu a bênção de Isaque sem levantar suspeitas. Quando Esaú descobriu o que havia acontecido, jurou matar Jacó, que precisou fugir para o deserto a fim de salvar a própria pele. A vida de Jacó estava em frangalhos, Ele havia perdido a família e a herança. Nunca mais veria a mãe e o pai com vida. Jacó se dirigiu, então, ao outro lado do Crescente Fértil, onde muitos parentes de sua mãe e pai ainda viviam. Ali esperava ao menos sobreviver.
Jacó fugiu para junto da família da mãe, que o acolheu. Seu tio Labão o contratou como pastor de alguns de seus rebanhos. Ao perceber que Jacó tinha de fato habilidade como administrador, Labão lhe ofereceu o emprego de administrador. “Será que você vai trabalhar de graça, só por ser meu parente? Diga-me qual deve ser o seu salário” (v. 15), perguntou o tio. A resposta de Jacó foi uma palavra: Raquel. “Ora, Labão tinha duas filhas: Lia, a mais velha, e Raquel, a mais nova. Lia tinha uns olhos sem brilho, porém Raquel era bonita e formosa. Como Jacó amava Raquel, disse a Labão: — Trabalharei para o senhor durante sete anos para poder casar com Raquel, sua filha mais nova. Labão respondeu: — É melhor dá-la a você do que a outro homem. Fique aqui comigo. Assim, por amor a Raquel, Jacó trabalhou durante sete anos. E esses anos lhe pareceram como poucos dias, pelo muito que a amava” (Gn 29.16-20).
O texto hebraico diz, literalmente, que Raquel tinha um corpo magnífico e ainda por cima era lindíssima. Jacó ficou mais do que encantado por ela. Robert Alter, um grande estudioso de literatura hebraica em Berkeley, enfatiza os muitos sinais no texto que demonstram o quanto Jacó ficou perdido de amores e dominado por Raquel. Jacó ofereceu o salário de sete anos por ela, o que, em moeda da época, era preço altíssimo por uma noiva. “E esses anos lhe pareceram como poucos dias, pelo muito que a amava” (v. 20). Então, Jacó disse a Labão: “Dê-me a minha mulher, pois já venceu o prazo, para que eu me case com ela” (v. 21). Alter diz que a frase hebraica é extraordinariamente direta, explícita e sexual para um discurso da antiguidade, geralmente discreto. Imagina dizer a um pai, mesmo hoje: “Mal posso esperara para fazer sexo com sua filha. Passe ela pra mim agora!” O narrador está nos mostrando um homem dominado por um desejo ardente, emocional e sexual, por uma mulher.
Qual era a razão disso? Jacó tinha uma vida vazia. Jamais tivera o amor do pai, havia perdido o amor da mãe querida e, com certeza, não tinha nenhuma ideia do amor e cuidado divinos. De repente, avistou a mais bela mulher em que já pusera os olhos e deve ter pensado: “Se eu a tiver, finalmente alguma coisa dará certo em minha vida miserável. Possuí-la consertaria tudo”. Todos os anseios do seu coração por sentido e afirmação se fixaram em Raquel.
Jacó era incomum para o seu tempo. Historiadores culturais nos contam que, na antiguidade, as pessoas geralmente não se casavam por amor, mas por status. No entanto, Jacó não seria tão fora do comum hoje. Ernest Becker, ganhador do prêmio Pulitzer pelo livro A negação da morte, explicou as diversas maneiras que as pessoas seculares têm lidado com a perda da crença em Deus. Agora que pensamos estar aqui por acidente e não por termos sido criados com um propósito, de que modo conferimos um senso de significado em nossa vida? Um dos modos principais é pelo que Becker chamou de “romance apocalíptico”. Voltamo-nos para o sexo e o romance a fim de que nos deem a transcendência e o significado que costumávamos obter da fé em Deus. Discorrendo sobre o ser humano secular moderno, ele escreveu:
“Ele ainda precisa sentir-se heroico, saber que sua vida tinha importância. [...] Ainda tinha de unir-se a algum sentido superior, que o absorvesse por completo, em confiança e gratidão. [...] Se não tinha mais Deus, como faria isso? Uma das primeiras possibilidades que lhe ocorreu, como observou [Otto] Rank, foi a ‘solução romântica’. [...] A autoglorificação de que necessitava em sua natureza mais íntima, agora buscava no parceiro amoroso. O parceiro amoroso se torna o ideal divino em que preencher a vida. Todas as necessidades espirituais e morais agora passam a se concentrar em um indivíduo. [...] Em poucas palavras, o objeto do amor é Deus. [...] O homem estendeu a mão para alcançar um “Tu” quando a concepção de mundo da grande comunidade religiosa supervisionada por Deus morreu [...] No final das contas, o que desejamos ao elevar o parceiro amoroso à posição de Deus? Redenção – nada menos que isso”.
Foi exatamente o que Jacó fez, e é o que milhões de pessoas estão fazendo em nossa cultura. A música popular e a arte de nossa sociedade nos convidam a continuarmos agindo assim, a satisfazermos todas as necessidades mais profundas de significado e transcendência do nosso coração com o romance e o amor. “Você é ninguém até que alguém o ame”, dizia a canção popular, e somos uma cultura inteira que interpretou essas palavras em seu sentido literal. Cultivamos a fantasia de que se encontrarmos nosso verdadeiro parceiro de alma, tudo o que há de errado conosco será curado. Mas quando nossas expectativas e esperanças atingem essa dimensão, como diz Becker, “o objeto do amor é Deus”. Amante nenhum, ser humano nenhum, está qualificado para o papel. Ninguém pode viver a altura disso. O resultado inevitável é a amargura e a desilusão.
Alguns dizem que a análise cultural de Becker está ultrapassada. Vivemos hoje “a cultura da conexão virtual”, em que os jovens converteram o sexo em algo comum, fortuito e isento de compromisso. Menos homens e mulheres namoram de fato ou têm namorados e namoradas. Atendendo ao interesse da igualdade de gênero, as mulheres começaram a dizer: “Merecemos nos divertir com nossa sexualidade tanto quanto os homens”. Há uma pressão crescente entre colegas para o envolvimento sexual e sem grande compromisso emocional. Então, certamente, nossa cultura está se distanciando de uma esperança no “romance apocalíptico”. No momento em que superarmos nosso puritanismo remanescente, argumenta-se, o sexo não terá grande importância. Não aposte nisso!
Laura Sessions Stepp, no livro Sem amarras, descobriu que os encontros casuais deixavam insatisfeitas a maioria das mulheres jovens, embora elas não estivessem dispostas a reconhecer isso perante suas colegas. E a enorme ênfase que nossa cultura dá à beleza física desmente qualquer noção de que o sexo não tem muita importância. Na década de 1940, C. S. Lewis ouviu de muitos dos seus pares na academia britânica que o sexo não passava de um apetite, como o apetite por comida. A partir do momento que reconhecêssemos esse fato, diziam eles, e começássemos a fazer sexo sempre que nos desse vontade, as pessoas parariam de “ficar enlouquecidas” pelo desejo por amor e sexo. Lewis duvidou disso e propôs um exercício intelectual:
“Imagine que você fosse para um país onde pudesse encher um teatro apenas levando um prato coberto para o palco e então, bem devagar, erguesse a tampa a fim de permitir que todos vissem, antes do apagar das luzes, que ele continha uma costeleta de carneiro ou um pouco de bacon. Você não acharia que alguma coisa deu errado nesse país em relação ao apetite por comida? [...] Um crítico comentou que, se encontrasse um país em que espetáculos de strip-tease desse tipo, envolvendo um prato de comida, fossem populares, concluiriam que seus habitantes estavam morrendo de fome” (Cristianismo Puro e Simples).
No entanto, Lewis continua em sua argumentação, não estamos famintos de sexo; há mais disponível do que nunca antes. Mas a pornografia, o equivalente aos espetáculos de strip-tease, é hoje uma indústria de mais de um trilhão de dólares. Portanto, sexo e amor romântico não são “apenas um apetite” como no caso da comida. São muito mais significativos para nós. Os biólogos evolucionários explicam que isso é inculcado em nosso cérebro. Os cristãos explicam que nossa capacidade para o amor romântico se origina no fato de sermos à imagem de Deus (Gn 1.27-29; Ef 5.25-31). Talvez seja possível dizer que as duas coisas são verdadeiras.
De qualquer forma, o amor romântico é um objeto de enorme poder para o coração e a imaginação humanos, por isso consegue dominar excessivamente nossa vida. Até quem evita por completo o amor romântico, em razão de amargura ou medo, na verdade está sendo controlado por seu poder. Quem não pode ter o amor (com medo de ser manipulado por ele), evitará pessoas que seriam parceiras maravilhosas. Quem precisa ter o amor escolherá parceiros que não são adequados ou são abusivos. Se você tem medo demais ou se enamora demais do amor, ele assumiu um poder comparável ao divino, distorcendo suas percepções e vida.
O vazio interior de Jacó o torna vulnerável à idolatria do amor romântico. Quando ele se ofereceu para trabalhar sete anos por Raquel, quase quatro vezes mais que o preço comum de uma noiva, o inescrupuloso Labão percebeu como o sobrinho estava perdido de amor. Assim, resolveu tirar vantagem da situação. Quando Jacó perguntou se podia casar com Raquel, a resposta de Labão foi vaga. Na verdade, em momento algum ele disse “sim, negócio fechado”, mas sim: “é melhor dá-la a você do que a outro homem” (v. 19). Jacó queria um “sim” como resposta e foi o que ouviu. Mas a resposta não era um “sim”. Labão só estava dizendo: “Acho uma boa ideia você se casar com Raquel”.
Sete anos se passaram e Jacó procurou Labão para cobrar: “Dá-me minha mulher”. Como de costume, houve grande festa de casamento. No meio da celebração, Labão levou a esposa de Jacó até ele, toda coberta de véus. Já inebriado pelas festividades, Jacó se deitou com ela. “Ao amanhecer, Jacó vou que era Lia” (v. 25). À plena luz do dia, Jacó olhou e viu que a mulher com quem consumara o casamento era Lia, a desinteressante irmã mais velha de Raquel. Tremendo de ódio, ele procurou Labão e disse: “O que é isso que o senhor fez comigo?” (v. 25). De modo tranquilo, Labão respondeu que Jacó deveria saber ser o costume daquela terra a filha mais velha casar-se antes da mais nova. Se Jacó se comprometesse em trabalhar mais sete anos, acrescentou, ele ficaria feliz em incluir Raquel como parte do negócio. Sentindo-se trapaceado e preso em uma cilada, Jacó sujeitou-se a mais sete anos a fim de se casar com Raquel, bem como com Lia.
Ora, por que Jacó não se recusou simplesmente a aceitar essa falcatrua descarada? Quando Jacó pergunta: “Por que você me enganou”, o termo hebraico é o mesmo usado no cap. 27 para descrever o que ele havia feito com Isaque. Robert Alter cita então um antigo comentarista rabínico que imagina a conversa no dia seguinte entre Jacó e Lia. Jacó diz pra ela: “Chamei Raquel no escuro e você respondeu. Por que fez isso comigo?” Ao que Lia retruca: “Seu pai chamou Esaú no escuro e você respondeu. Por que fez isso com ele?” A fúria de Jacó morre em seus lábios. Ele percebe, então, como é ser manipulado e enganado, e concorda plenamente com a oferta de Labão.
Talvez nos perguntemos como Jacó pode ser tão crédulo, mas seu comportamento foi o de um viciado. São várias as maneiras em que o amor romântico pode funcionar como uma espécie de droga para ajudar a fugir da realidade da vida. Um exemplo é o homem mais velho que abandona a esposa por uma mulher bem mais nova, no esforço desesperado de esconder a realidade de que está envelhecendo. E existe o rapaz ou a moça que consideram um parceiro desejável apenas para tê-lo em suas mãos, perdendo o interesse em seguida. Para essa pessoa, o parceiro é só uma mercadoria necessária para a ajudar a se sentir desejável e poderosa. Nossos temores e esterilidade interiores fazem do amor uma droga, um modo de nos automedicarmos, e viciados sempre fazem escolhas tolas e destrutivas.
Foi o que ocorreu com Jacó. Raquel não era apenas sua esposa, mas sua “salvadora”. Ele a desejava e precisava dela tão profundamente que só ouvia e via o que queria ouvir e ver. Por isso, tornou-se vulnerável ao engano de Labão. Mais tarde, a idolatria de Jacó por Raquel produziu décadas de sofrimento em sua família. Ele adorava e privilegiava os filhos de Raquel em detrimento dos de Lia, destruindo e afligindo o coração de todos, ao mesmo que envenenava o universo familiar.
Vemos como a idolatria devastou a vida de Jacó, mas talvez o maior desastre de todos seja o que ocorreu com Lia. Ela é a filha mais velha, e o narrador só nos dá um detalhe importante a seu respeito. O texto conta que ela tinha “olhos sem brilho”. Alguns presumem que sua visão era ruim. Mas a passagem não diz “Leia tinha os olhos sem brilho, mas Raquel conseguia enxergar muito bem” (v. 17). Diz que Lia tinha olhos sem brilho, mas Raquel era linda. Assim, é provável que “sem brilho” pudesse significar que ela era vesga ou de má aparência por alguma razão. A ideia é clara. Lia era pouco atraente e precisou passar a vida inteira à sombra da irmã, uma mulher deslumbrante.
Em consequência, seu pai, Labão, sabia que homem nenhum jamais se casaria com ela ou ofereceria dinheiro por ela. Durante anos, ele havia se perguntado como se livraria de Lia para que Raquel, que alcançaria excelente preço, pudesse se casar. Em Jacó, Labão encontrou a solução de seus problemas financeiros. Identificou uma oportunidade e tirou partido dela. Mas veja o que isso significava para Lia – a filha a quem o pai não queria era agora a esposa a quem o marido não desejava. “... Jacó [...] amava [Raquel] muito mais do que a Lia” (v. 30). Ela era a moça que ninguém queria.
Uma vez que a maior parte dos casamentos era arranjada dessa forma, é provável que muitas mulheres se sentissem desprezadas pelo marido, de modo que muitos leitores da antiguidade se identificassem com essa história. Se o leitor moderno achar ofensivo o relato de mulheres sendo compradas e vendidas por homens, seria importante ter em mente que a ênfase geral da narrativa de Gênesis visa destruir a prática descrevendo-a de uma perspectiva bastante negativa. Robert Alter diz que ler o livro de Gênesis e achar que ele faz vista grossa para as questões da primogenitura, da poligamia e da compra de noivas significa que você não o está compreendendo adequadamente. Ao longo do livro, a poligamia sempre produz devastação. Nunca dá certo. Tudo o que você vê é a miséria que as instituições patriarcais causam nas famílias. Alter conclui que todas as narrativas de Gênesis são subversivas em relação às antigas práticas patriarcais.
Lia tinha então um vazio no coração tão grande quanto o existente no coração de Jacó. E agora ela começava a reagir ao problema do mesmo jeito que o marido. Fez com ele o que Jacó fizera com Raquel, e Isaque, com Esaú. Colocou a esperança do seu coração em conquistar o amor de Jacó. Os versículos finais da passagem estão entre os mais tristes da Bíblia: “Quando o Senhor viu que Lia era desprezada, fez com que ela fosse fecunda, ao passo que Raquel era estéril. Assim, Lia ficou grávida e deu à luz um filho, a quem deu o nome de Rúben, pois disse: — O Senhor viu a minha aflição. Por isso, agora meu marido vai me amar. Ela ficou grávida outra vez e deu à luz um filho. E disse: — O Senhor ouviu que eu era desprezada e me deu mais este filho. E deu-lhe o nome de Simeão. Lia ficou grávida ainda outra vez e deu à luz um filho. E disse: — Agora, desta vez, o meu marido se unirá mais a mim, porque lhe dei à luz três filhos. Por isso lhe deu o nome de Levi. Mais uma vez ela ficou grávida e deu à luz um filho. Então disse: — Desta vez louvarei o Senhor. E por isso lhe deu o nome de Judá. E depois disso não teve mais filhos” (vv. 31-35).
O que ela estrava fazendo? Tentando encontrar a felicidade e uma identidade por meio de valores familiares tradicionais. Ter filhos, em especial naquela época, era o melhor meio para isso; mas não estava funcionando. Lia havia apoiado todas as suas esperanças e sonhos no marido. “Se tiver filhos, então meu marido virá a me amar, e enfim minha vida infeliz será transformada”, pensava. Em vez disso, cada nascimento empurrou-a mais para dentro de um inferno de solidão. Dia após dia, Lia estava condenada a ver o homem por quem mais anelava nos braços daquela em cuja sombra vivera toda a vida. Dia após dia, recebia uma nova facada no coração.
Alguém pode se perguntar? Onde estão os heróis espirituais nessa história? A quem devo imitar? Qual é a moral ada história? O motivo de nossa confusão é que geralmente lemos a Bíblia como uma série de relatos desconexos, cada um com sua “moral” explicando como deveríamos viver. Não é assim que acontece. Ao contrário, a Bíblia consiste em uma única história, revelando-nos como a raça humana chegou à condição atual e como Deus, por meio de Cristo, veio e virá para consertar tudo. Ou seja, a Bíblia não nos oferece um deus no topo de uma escala moral dizendo: “se você se esforçar muito para reunir toda sua força e viver corretamente, pode ser que consiga!”. Em vez disso, a Bíblia repetidas vezes nos mostra pessoas fracas que não merecem a graça de Deus, não a buscam nem lhes dão valor mesmo depois de recebê-la. Se assim é a grande sucessão de acontecimentos históricos em que se encaixa cada narrativa bíblica individual, então o que aprendemos com essa história?
Aprendemos que a desilusão cósmica predomina ao longo de toda a vida. Você jamais viverá com sabedoria enquanto não entender esse fato. Jacó declarou: “Basta eu conseguir Raquel e tudo ficará bem”. E vai para a cama com aquela que pena ser Raquel, porém o texto hebraico diz, literalmente: “pela manhã, pasmem! Era Lia” (v. 25). O comentarista Derek Kidner observou acerca do versículo: “Temos aqui nossa desilusão em miniatura, vivenciada desde o Éden”. Qual é o significado disso? Com todo o respeito a essa mulher (de quem temos muito a aprender), significa que não importa em quem ou que depositemos nossas esperanças, pela manhã, é sempre Lia, nunca Raquel. Ninguém jamais declarou isso melhor do que C. S. Lewis (Cristianismo Puro e Simples):
“A maioria das pessoas, se de fato aprendesse a olhar dentro do próprio coração, saberia que deseja muito, e intensamente, algo que não se pode ter neste mundo. Há todo tipo de coisa neste mundo que se oferece para concedê-lo a você, mas nunca cumpre a promessa. Os anseios que surgem em nós quando nos apaixonamos pela primeira vez, ou pensamos em um país estrangeiro pela primeira vez, ou tratamos de um assunto que nos arrebata pela primeira vez, são anseios que nenhum casamento, nenhuma viagem, nenhum aprendizado conseguem satisfazer de verdade. Não estou me referindo agora ao que comumente se chamaria de férias, profissões ou casamentos malsucedidos. Falo dos melhores possíveis. Houve algo a que nos agarramos, no primeiro instante do nosso anseio, que logo se desvanece (desaparece) na realidade. Creio que todos saibam a que me refiro. A esposa pode ser fantástica, e os hotéis e a vista, excelentes, e a química pode render um emprego muito interessante: todavia, alguma coisa nos escapa”.
Caso se case como fez Jacó, ao apoiar o peso de todos os seus anseios e esperanças mais profundos em cima da pessoa com quem está se casando, você a esmagará com suas expectativas. Isso distorcerá sua vida e a ida de seu cônjuge de diversas maneiras. Ninguém, nem mesmo a melhor pessoa do mundo, tem como conceder à sua alma tudo de que ela necessita. Essa decepção, essa desilusão cósmica se faz presente a vida toda, mas nós a sentimos especialmente nas coisas em que mais apoiamos nossas esperanças.
A autora está certa em observar que as mulheres que transformaram em ídolo o romance e o grande casamento com o príncipe encantado acabaram escravizadas aos próprios desejos. Ela as aconselha a abandonarem a idolatria amorosa típica e a adotarem a versão masculina. Mas, como vimos, todas as idolatrias escravizam. As idolatrias amorosas masculinas viciam os homens em ser independentes, de modo que possam namorar à vontade, sem assumir compromissos. As idolatrias amorosas femininas tornam-nas viciadas e dependentes – vulneráveis e fáceis de manipular. O que nos resta fazer?
Nessa história triste, Lia é a única que passa por algum progresso espiritual, embora isso só ocorra no fim. Observe-se, primeiro, o que Deus fez nela. Uma das coisas que os estudiosos de hebraico notam é que, em todas as suas declarações, Lia apela para o Senhor. Ou seja, ela o chama pelo nome de Yahweh. “...O SENHOR [Yahweh] viu a minha aflição”, diz ela no v. 32. Como ela conhecia Yahweh?
Elohim era a palavra hebraica genérica para Deus. Todas as culturas da época tinham alguma ideia geral de Deus ou de deuses, mas Yahweh era o nome do Deus que se revelara a Abraão e mais tarde a Moisés. Ela havia prometido a Abraão abençoar a terra por meio de sua descendência. O único jeito de lia saber sobre Yahweh era se Jacó lhe tivesse contato acerca da promessa dirigida ao avô dele. Portanto, apesar de seus conflitos e confusão, ainda assim ela buscava um Deus pessoal de graça.
Após anos dando à luz filhos, enfim houve um avanço. Quando deu à luz seu quarto filho, Judá, Lia disse: “Desta vez louvarei o Senhor” (v. 35). Havia um tom de desafio nessa afirmação. Ela era diferente das que Lia havia feito depois de outros partos. Não há menção alguma a marido ou filhos. Parece que finalmente ela tinha removido as esperanças mais profundas do seu coração de sobre o marido e os filhos e as colocado no Senhor. Jacó e Labão tinham lhe roubado a vida, mas quando Lia entregou o coração para o Senhor, teve a própria vida de volta.
Não deveríamos olhar apenas para o que Deus fez na vida de Lia. Temos de olhar também para o que Deus fez por ela. Talvez ela tivesse uma ideia de que havia algo de especial naquela criança. Talvez uma intuição de que Deus havia feito algo em seu benefício. E foi isso mesmo. Com certeza o autor de Gênesis sabia disso. A criança em questão era Judá, e em Gn 49 somos informados de que será por meio dele que o Rei verdadeiro, o Messias, um dia virá. Deus havia vindo ao encontro da menina que ninguém queria, a mal-amada, e a tornado mãe ancestral de Jesus. A salvação veio ao mundo não pela bela Raquel, mas pela desprezada, a mal-amada.
Deus gosta de tomar partido dos desfavorecidos? Não, esse presente maravilhoso concedido a Lia significou bem mais que isso. O texto diz que ao ver que ela não era amada, o SENHOR a amou. “Sou eu o noivo verdadeiro. Sou o marido das destituídas de marido. Sou o pai das destituídas de pai”. Esse é o Deus que salva por graça. Os deuses das religiões moralistas favorecem os bem-sucedidos e os que superam expectativas. Aqueles que sobem a escada moral até o céu. Já o Deus da Bíblia é aquele que desce a este mundo para efetuar uma salvação e conceder-nos uma graça que jamais obteríamos por nós mesmos. Ele ama o indesejado, o fraco e o mal-amado. Ele não é apenas um rei, e nós, seus súditos; não é apenas um pastor, e nós, as ovelhas. É um marido, e nós, sua esposa. Sente-se encantado conosco – incluindo aqueles dentre nós que mais ninguém nota.
Eis o poder para vencermos nossas idolatrias. Muita gente no mundo não encontrou um parceiro romântico e precisa ouvir o Senhor dizer: “Sou o noivo verdadeiro. Só existe um par de braços que lhe dará todo o desejo do seu coração e esperará por você no fim dos tempos. Basta você se voltar para mim. E saber que o amo agora”. Todavia, não é somente quem não tem um cônjuge que necessita enxergar em Deus o nosso cônjuge perfeito, mas também quem o tem. Essas pessoas precisam disso a fim de salvar seu casamento do peso esmagador das próprias expectativas divinas. Se você se casar com alguém esperando que ele seja um deus, é inevitável que esse alguém o decepcione. Não que você deva tentar amar menos seu cônjuge; apenas deveria conhecer e amar mais a Deus.
Quando Deus veio à terra em Jesus Cristo, ele era mesmo filho de Lia. Tornou-se o homem que ninguém queria. Nasceu numa manjedoura. Não tinha beleza para que o desejássemos (Is 53.2). Veio para os seus e os seus não o receberam (Jo 1.11). E, no fim, todos o abandonaram. Jesus clamou até para seu Pai: “Por que me desemparaste?” Por que ele se tornou filho de Lia? Por que se tornou o homem que ninguém desejava? Por você e por mim. Ele tomou sobre si nossos pecados e morreu em nosso lugar. Se nos comovemos profundamente com a visão do amor dele por nós, nosso coração se afasta de outros pretensos salvadores. Paramos de tentar nos redimir por meio de atividades e relacionamentos, porque já fomos redimidos. Paramos de tentar transformar pessoas em salvadoras, pois temos um Salvador.
“A única maneira de despojar o coração de uma antiga afeição é mediante o poder expulsivo de uma nova. [...] Assim [...] não basta [...] mostrar ao mundo o espelho de suas imperfeições. Não basta se apresentar com uma demonstração da natureza desvanecedora de seus prazeres [...] para falar à consciência [...] das loucuras que o mundo traz. [...] Em vez disso, busque todo meio legítimo para descobrir o acesso a seu coração pelo amor daquele que é maior que o mundo” (Thomas Chalmers).
“... A vida de vocês está oculta juntamente com Cristo, em Deus. Quando Cristo, que é a vida de vocês, se manifestar, então vocês também serão manifestados com ele, em glória” (Cl 3.3-4). Nada pode ser nossa vida ou identidade. O que importa não é o que pensam sobre nós, mas o que Cristo fez por nós e como nos ama. Amém!
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