top of page
Foto do escritorChristian Lo Iacono

Lidando com o sofrimento

Porque para mim tenho por certo que os sofrimentos do tempo presente não podem ser comparados com a glória a ser revelada em nós.

A ardente expectativa da criação aguarda a revelação dos filhos de Deus.

Pois a criação está sujeita à vaidade, não por sua própria vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será libertada do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus.

Porque sabemos que toda a criação a um só tempo geme e suporta angústias até agora.

E não somente ela, mas também nós, que temos as primícias do Espírito, igualmente gememos em nosso íntimo, aguardando a adoção de filhos, a redenção do nosso corpo.

Porque na esperança fomos salvos. Ora, esperança que se vê não é esperança. Pois quem espera o que está vendo?

Mas, se esperamos o que não vemos, com paciência o aguardamos.



A imagem que a Bíblia traça sobre o sofrimento é a mais diversificada e multidimensional de todas. Ao analisarmos o material bíblico, podemos concluir basicamente duas coisas a respeito do assunto: o sofrimento é tanto justo quanto injusto; Deus é, ao mesmo tempo, soberano e sofredor. O sofrimento como justiça e juízo Os três primeiros capítulos de Gênesis afirmam que o sofrimento é consequência do pecado, particularmente do pecado original da humanidade, de voltar-se contra Deus, o Criador. A descrição do mundo caído é praticamente uma lista de todas as formas de sofrimento, incluindo alienação espiritual, aflição psicológica, conflito e crueldade interpessoal e social, desastres naturais, enfermidade e morte (Gn 3.17ss.). Entende-se que todo esse mal moral e natural é consequência da ruptura fundamental de nosso relacionamento com Deus. Os sofrimentos começam quando Adão e Eva são expulsos do Jardim do Éden (3.23-24). O exílio do casal é a primeira ocasião em que o sofrimento é infligido como castigo. “Pois a criação está sujeita à vaidade, não por sua própria vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria criação será libertada do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus” (Rm 8.21-22). A palavra “vaidade” também pode ser traduzida como “futilidade”. Ser fútil significa não alcançar seu propósito; é se esforçar ao máximo e não obter resultado algum. O mundo agora se encontra numa condição amaldiçoada e muito distante de seu propósito original. Os seres humanos não foram criados para experimentar morte, sofrimento, mágoa, decepção, quebra de relacionamentos, doenças e desastres naturais. O mundo para o qual fomos criados não deveria ser como é hoje. Um mundo inútil é um mundo destroçado, onde as coisas não funcionam como deveriam, e é por essa razão que o mal e o sofrimento existem. Mas Paulo acrescenta que esse juízo não significa que Deus nos abandonou. Ao contrário, Deus tinha um propósito com isso. Mesmo usando o sofrimento para exerceu juízo sobre o mundo, Deus planejava a redenção de todas as coisas. Ele julgou o mundo “na esperança” de uma redenção final do mal, que será gloriosa. Paulo afirma, quando os seres humanos se afastaram de Deus, que restaram apenas duas alternativas: destruição imediata ou um caminho que levasse à redenção por meio da perda, sofrimento e dor imensas, não apenas para os seres humanos, mas para o próprio Deus. Existe aqui uma insinuação de que a glória futura será, de algum modo, ainda maior por causa do sofrimento. No entanto, no presente, nós vivemos nas sombras. A Bíblia é clara quanto à existência do sofrimento no mundo ser de fato uma forma de justiça. Contudo, o sofrimento como juízo não termina com o pecado original e com a expulsão inicial de Adão e Eva do Jardim do Éden. A história mostra que, de modo geral, Deus recompensa e castiga povos e indivíduos com base em seus atos ou simplesmente permite que pessoas colham as consequências naturais do que planejaram. O livro de Provérbios está repleto de exemplos do que chamamos de justiça retributiva. A mesquinharia acaba levando à pobreza, pois o avarento não tem amigos (Pv 11.24-26); o preguiçoso e indisciplinado passa fome (19.15); as más amizades provocam aflições (13.20). Muito da literatura de sabedoria deixa bem claro que, em todos esses casos, o sofrimento acontece porque determinado comportamento foi contra a natureza do universo e infringiu a ordem moral de Deus, tanto quanto saltar de um penhasco na tentativa de voar infringe a lei da gravidade. Sofrimento como injustiça e mistério No entanto, embora a Bíblia ensine que o sofrimento no mundo seja consequência do pecado humano em geral, ela também é enfática no sentido de que circunstâncias individuais de sofrimento nem sempre resultam de um pecado específico. “O sofrimento como fato era considerado resultado do pecado, especialmente do pecado original, mas isso não significa que todo e qualquer sofrimento pudesse ter uma ligação causal com um pecado específico e o respectivo castigo divino” (Rittgers). A história de Jó é o exemplo mais notório. O sofrimento dele é maior que o de seus amigos. Portanto, cheios de si, os amigos concluem que a vida moral de Jó deveria ser inferior a deles. Como o livro mostra claramente, essa era uma crença arrogante, cruel e errada, fortemente condenada por Deus no final do livro. Os amigos de Jó ignoraram verdades complementares a respeito do sofrimento. Embora a humanidade como um todo mereça viver em um mundo caído, o mal não é distribuído de modo proporcional e justo. Pessoas ruins não têm necessariamente vidas piores do que pessoas bondosas. E, claro, pessoas boníssimas muitas vezes sofrem terrivelmente. Jó é um exemplo disso, e Jesus – o “Jó” por excelência, o único sofredor total e verdadeiramente inocente – é outro. O livro de Eclesiastes também apresenta casos de sofrimento injusto, imerecido e aparentemente inexplicável. Seu escritor percebe que: “o sábio tem os seus olhos bem abertos, enquanto o tolo anda em trevas; contudo, entendi que a mesma coisa acontece com ambos” (2.14). O trabalhador dedicado e o homem sábio muitas vezes perdem tudo, enquanto o ímpio prospera. No início do capítulo quatro, o escritor diz que olhou e viu “todas as opressões praticadas debaixo do sol” e: “vi as lágrimas dos que foram oprimidos, sem que ninguém os consolasse; vi a violência na mão dos opressores, sem que ninguém consolasse os oprimidos. Por isso considero mais felizes os que já morreram, mais do que os que ainda vivem. Porém mais feliz do que uns e outros é aquele que ainda não nasceu e não viu as más obras que se fazem debaixo do sol” (4.1-3). Por esse motivo, no capítulo 2 está escrito: “Por isso perdi o gosto pela vida, pois me foi pesado demais o trabalho que se faz debaixo do sol. Sim, tudo é vaidade e correr atrás do vento” (2.17). O termo hebraico para “ilusão” ou “vaidade”, usado aqui, é semelhante à “futilidade”, a que a Terra foi sujeita após o pecado humano. Na Bíblia, Provérbios, Eclesiastes e Jó ficam praticamente lado a lado na seção de “literatura de sabedoria”, e é importante reconhecer suas perspectivas diferentes, embora complementares, em relação ao sofrimento. Enquanto Provérbios enfatiza a justiça do sofrimento e mostra que grande parte dele está diretamente relacionada à transgressão, Jó e Eclesiastes mostram vividamente que grande parte do sofrimento não tem essa relação direta. A história bíblica da Criação era ímpar entre os relatos antigos sobre a origem do mundo. Segundo algumas narrativas, o mundo resultou de uma batalha entre seres divinos ou forças sobrenaturais. Havia vários centros de poder que viviam em constante conflito. Isso significava que o mundo era basicamente um lugar caótico, onde tudo podia acontecer, dependendo do poder que estivesse em vantagem. Esse mesmo ponto de vista reaparece hoje nos textos de materialistas científicos, para os quais o universo é produto de forças violentas e não controladas. Nesse tipo de mundo, as qualidades mais importantes são a força e o poder. No entanto, Gerhard von Rad, estudioso do AT, destaca a singularidade das Escrituras Hebraicas, que afirmam que a Criação foi obra de um Deus onipotente e sem igual, que fez o mundo não como um guerreiro vence uma batalha, e sim como um artífice esculpe algo fascinante e belo. Como artista, ele cria pelo puro prazer de criar: “Eu estava lá quando ele preparava os céus, quando traçava o horizonte sobre a face do abismo. Estava lá quando ele firmava as nuvens de cima, quando estabelecia as fontes do abismo, quando fixava ao mar os seus limites, para que as águas não transgredissem a sua ordem. Quando ele compunha os fundamentos da terra, eu estava com ele e era o seu arquiteto. Dia após dia eu era a sua alegria, divertindo-me em todo o tempo na sua presença, divertindo-me no seu mundo habitável e achando alegria junto aos filhos dos homens” (Pv 8.27-31). Portanto, o mundo segue um padrão, uma trama. Essa trama é uma ordem ou estrutura projetada, inerente e complexa. De acordo com von Rad, a sabedoria bíblica é “tornar-se competente quanto às realidades da vida” (Wisdom in Israel). Como o mundo foi criado por um Deus bom e justo, sua trama tem uma ordem moral. Essa ordem não se baseia no poder, mas na justiça. O poder e o egoísmo podem parecer bons a curto prazo, porém acabam não “funcionando” num mundo criado por um Deus bom e justo. Então, além de ser pecado, o poder cruel e egoísta também é tolo. Ele produz solidão, vazio e destruição. A fidelidade, a integridade, o serviço abnegado e o amor, além de serem características corretas, revelam sabedoria, pois se encaixam na trama da realidade. Exceção: embora Provérbios afirme que, em geral, o trabalho esforçado leva à prosperidade e a preguiça resulta em privações, nem sempre isso acontece. Jó e Eclesiastes complementam a interpretação que Provérbios faz do mundo. Nosso mundo foi criado por Deus e tem uma ordem moral fundamental. No entanto, há algo errado com essa ordem agora. Ela está parcialmente danificada, porém não por completo. Goldsworthy afirma que, enquanto Provérbios nos mostra a realidade da ordem de Deus, Jó enfatiza seu lado “oculto” e Eclesiastes, sua “complexidade”. No final do livro de Jó, Deus aparece e afirma claramente que a ordem moral do universo continua intacta, mas está, em grande parte, oculta aos olhos humanos. Sendo assim, embora haja até certo ponto uma “justiça poética”, na qual os malfeitores caem nas armadilhas que preparam para os outros, grande parte do sofrimento humano é desproporcional e distribuído de maneira injusta. Os bons podem morrer jovens, e morrem. O NT tem a mesma visão. Em João 9, Jesus cura um cego e deixa claro aos discípulos que o homem não ficou cego por seu pecado ou de seus pais, mas para cumprir os planos inescrutáveis de Deus. Logo, as pessoas que estão sofrendo não deveriam ser automaticamente culpadas por essa situação. O conceito bíblico a respeito do sofrimento não só é contrário aos ensinos do carma, mas vai contra o bom senso. O psicólogo Mal Lerner demonstrou que a maioria dos seres humanos deseja profundamente acreditar que “as pessoas recebem o que merecem e merecem o que recebem”. Elas costumam culpar as vítimas de uma tragédia especialmente quando não é possível castigar o transgressor. Isso é gerado pelo impulso humano normal de dar sentido às coisas, mas é provável também que brote de nossa imensa necessidade de crer que controlamos nossa vida. As pessoas desejam acreditar que “isso jamais aconteceria comigo, porque sou mais sábio, sou melhor e sei bem o que estou fazendo”. A avaliação da Bíblia é menos favorável aos que não sofrem e mais gentil com os que estão sofrendo.  Muito do sofrimento é enigmático e injusto. Sofrimento como inimigo de Deus O mal é um intruso na criação perfeita de Deus. Muitas vezes, o mal e o sofrimento ocorrem sem respeitar a relativa decência moral do indivíduo ou seu merecimento. Embora a Bíblia insista em afirmar que o sofrimento não foge ao controle de Deus,é crucial entender o mal como inimigo de Deus. David Bentley Hart, depois dos tsunamis que mataram milhares de pessoas em 2004, escreveu num ensaio: “uma criança morrendo lenta e dolorosamente de difteria, uma jovem mãe consumida pelo câncer, dezenas de milhares de asiáticos engolidos num segundo pelo mar, milhões de pessoas assassinadas em campos de concentração nazistas e russos, e as que morreram de inanição [...] Temos fé num Deus que veio resgatar sua criação do absurdo do pecado e do vazio da morte, e assim temos licença para odiar essas coisas com ódio absurdo [...] Quando buscamos consolo, não imagino felicidade maior do que saber que, quando testemunho a morte de uma criança, não vejo a face de Deus, mas a de seu inimigo. Essa [...] fé [...] nos libertou do otimismo e em seu lugar nos ensinou a esperança”. Talvez Hart tenha ido longe demais ao desprezar a soberania de Deus sobre os sofrimentos e seus propósitos, simpatizando com Ivan Karamazov, personagem de Dostoiévski que rejeita um Deus que use qualquer sofrimento para realizar um “bem maior”. Karamazov exibe a justiça própria do habitante moderno adepto do “referencial imanente”, o qual tem certeza de que, no Dia do Juízo, Deus não revelará nenhuma consideração ou sabedoria sobre as quais Karamazov já não tivesse pensado. Assim, é importante manter essa verdade de que Deus odeia o sofrimento junto com o ensino de que Ele tem poder sobre o sofrimento. Se nos recusamos a acreditar que o sofrimento de Deus e o mal fazem parte, sim, do plano de Deus, não só desprezamos muito do ensino bíblico, mas também ficamos sem a consolação de saber que Deus, de alguma forma, está trabalhando por meio de reais experiências e incidentes que envolvem o mal. Temos um exemplo dessa verdade em João 11, quando Jesus visita a família de seu amigo Lázaro, que havia morrido recentemente. No versículo 38, a maioria das traduções mostra Jesus, ao se aproximar do túmulo, “agitando-se novamente em si mesmo”. Timothy Keller escreve que a oração grega usada por João significa “urrar de raiva”. Na mesma direção, o teólogo B. B. Warlfield escreveu: “Jesus se aproximou do túmulo de Lázaro não em estado de sofrimento incontrolável, mas de raiva irreprimível”. Se Jesus sabe que logo irá transformar toda aquela tristeza e luto em gritos de alegria, com a ressurreição de Lázaro, por que essa indignação toda? Warfield, apoiado em Calvino, escreveu: “porque deixou-o agudamente consciente da perversidade, anormalidade e ‘tirania violenta’ da morte, como Calvino expressa. No sofrimento de Maria, Jesus ‘contempla’ – ainda usando as palavras de Calvino – ‘a desgraça geral de toda a humanidade’ e inflama-se de raiva contra o opressor dos homens [...] A morte é o objeto de sua raiva e, por trás dela, aquele que tem o poder da morte, a quem Jesus veio destruir. Lágrimas de solidariedade talvez encham seus olhos, mas isso é secundário. Sua alma está dominada pela raiva: e ele avança para o túmulo, mais uma vez nas palavras de Calvino, ‘como um campeão se prepara para o conflito’. [...] Nessa afirmação em particular, João nos revela o coração de Jesus, enquanto ele nos conquista a salvação. Jesus ataca em nosso favor, não de forma fria e despreocupada, mas fulminando de raiva contra o inimigo. Ele não apenas nos salva dos males que nos oprimem; ele sofre por nós e conosco em nossa opressão, e, sob o impulso desses sentimentos, ele conquistou nossa redenção” (The emotional life of our Lord). Portanto, Jesus fica furioso com o mal, a morte e o sofrimento, e, mesmo sendo Deus, ele não fica zangado consigo mesmo. Isso significa que o mal é inimigo da boa criação de Deus, e do próprio Deus. A missão inteira de Jesus era enfrentar o mal e acabar com ele. Porém, o mal está enraizado de tal forma no coração humano que, se Cristo viesse com poder para destruí-lo onde quer que o encontrasse, teria de nos destruir também. Em vez de vir ao mundo como um general à frente de um exército, ele veio com fraqueza e caminhou em direção à cruz, para pagar por nossos pecados. Por isso, um dia ele retornará para destruir o pecado de uma vez por todas, sem precisar nos julgar também. Ele poderá nos receber para si porque sofreu no Calvário o julgamento merecido por nós.

43 visualizações0 comentário

Comments


bottom of page