Paulo estava enfrentando desafios com os falsos mestres, que acompanhavam seus passos. Onde ele pregava o evangelho, esses impostores tentavam perturbar a igreja ao perverterem seus ensinamentos, especialmente ao questionarem sua autoridade apostólica. Isso também acontece nos dias de hoje, quando alguns questionam a posição e os ensinos de Paulo em relação a Jesus, bem como suas reivindicações apostólicas feitas aqui na Carta aos Gálatas.
Basicamente, o argumento usado era que Paulo ensinava um evangelho diferente daquele que Pedro e os demais apóstolos ensinavam. A consequência, alegavam, era que dois evangelhos estavam dividindo a igreja, e que ambos apóstolos estavam reivindicando uma origem divina para o seu evangelho. Os judaizantes diziam que Paulo, sendo a minoria, não podia ser seguido, e que, portanto, havia contradição no círculo apostólico.
Portanto, no capítulo 2, Paulo vai mostrar que o evangelho dele não é diferente, mas é o mesmo dos apóstolos. Para revelar que o seu evangelho era independente do evangelho dos outros apóstolos, Paulo já destacara ter feito, em catorze anos, apenas uma visita de quinze dias a Jerusalém. Agora, para mostrar que o evangelho é o mesmo, ele vai dizer que o seu evangelho foi endossado pelos apóstolos.
No versículo 1, Paulo mostra que essa foi a sua segunda visita (“fui outra vez”), e que ela ocorreu “catorze anos depois” (provavelmente a partir de sua conversão). Seus companheiros eram Barnabé – judeu, mas associado a Paulo em sua missão aos gentios em Antioquia – e Tito – grego, gentio não circuncidado, que era fruto daquela mesma missão gentia que os judaizantes estavam questionando.
No versículo 2, Paulo alega que o evangelho que ele pregava aos gentios foi apresentado aos apóstolos “em obediência a uma revelação”, ou seja, porque Deus orientou a Paulo nesse sentido. A “revelação” pode até ser uma referência à profecia que Ágabo deu sobre uma fome geral (At 11.27-30), que fez com que Paulo e Barnabé acabassem levando mantimentos à Judeia. Também deve ser destacado que o encontro de Paulo e os demais apóstolos foi algo rápido e “particular”; ou seja, não foi algo oficial ou uma espécie de concílio.
Embora possivelmente não tenha sido o propósito de sua visita, o encontro de Paulo com os demais apóstolos aconteceu. Nela, Paulo “apresentou” o que vinha pregando, “para não correr ou ter corrido em vão”. Ou seja, Paulo não tinha dúvida do evangelho que ele já havia pregado durante tantos anos, mas ele queria apenas que os judaizantes não estragassem o seu trabalho no passado e no futuro. Paulo levou a Jerusalém um evangelho gentio e um companheiro gentio, o que gerou muita tensão, com enormes influências para o futuro da igreja cristã. Será que Tito seria bem recebido? Será que a liberdade com a qual Cristo estava libertando os gentios seria mantida? Teriam os judaizantes sucesso em sua empreitada?
Paulo, então, conta o que houve naquela reunião. Tito não foi obrigado a circuncidar-se (vs. 3-5), nem “o evangelho gentio” foi contrariado ou sequer modificado (vs. 6-10). Ao contrário, uma grande vitória foi ganha para a verdade do evangelho!
Nos versículos 3 a 5, fica evidente a coragem de Paulo ao levar consigo a Tito para Jerusalém. Provocação? Ora, Paulo queria mostrar que tanto judeus e como gentios são aceitos por Deus nos mesmos termos, a saber, pela fé em Cristo, e que nenhuma discriminação era aceitável. Havia forte pressão por parte de “falsos irmãos” para que Paulo circuncidasse a Tito. “Essas pessoas eram irmãos, isto é, cristãos nominais; mas eram falsos irmãos, judeus na realidade” (John Brown). Quase com toda certeza eram judaizantes, e Paulo tem palavras duras dirigidas a eles: “falsos irmãos” e “intrusos” (não estavam na comunhão da igreja ou eram penetras na conversa particular dos apóstolos). Ora, o slogan dos judaizantes era conhecido (At 15.1): ninguém podia ser salvo sem a circuncisão!
Mas o tema ultrapassava a questão étnica ou costumes. Estava em jogo a liberdade cristã versus a escravidão. O cristão foi libertado da lei no sentido de que a sua aceitação diante de Deus dependia inteiramente da graça de Deus revelada na morte de Cristo e aceita pela fé. Retroceder para a escravidão era impensável, e aqui Tito, que era um “gentio incircunciso”, foi um teste, porque ele havia sido convertido a Deus por meio de Cristo, e isso era suficiente, como depois decidiu o Concílio de Jerusalém (At 15). Paulo resistiu à pressão, para que a “verdade do evangelho permanecesse entre vocês” (v. 5)! Alguns até entendem que Tito foi circuncidado, mas “voluntariamente”. Mas Lightfoot contesta: “as pessoas às quais Paulo fazia concessões eram irmãos fracos, não falsos”!
Nos versículos 6 a 9, vemos que Paulo teve sua conversa com Tiago, irmão do Senhor, Pedro e João. Ele usa expressões como “os que pareciam de maior influência” (vs. 2 e 6) ou “que eram reputados colunas” (v. 9). Em cada caso, Paulo faz alusão à reputação deles, sem nenhuma depreciação, até porque já os havia reconhecido anteriormente (Gl 1.17), e os mesmos estenderam a Paulo “a mão direita da comunhão” (v. 9). Por que, então, o uso de uma linguagem indireta? Talvez porque os judaizantes exageravam o status apostólico em Jerusalém à custa do apostolado de Paulo, que “não estava depreciando realmente os doze, mas sim as reivindicações extravagantes e exclusivas estabelecidas para eles pelos judaizantes” (Lightfoot).
Talvez os judaizantes estivessem destacando que Tiago era irmão do Senhor e que os irmãos Tiago e João eram do círculo íntimo de Jesus. Além disso, esses três haviam conhecido Jesus nos dias de sua carne, o que não deve ter ocorrido com Paulo. Daí a razão de Paulo escrever “o que eles foram, no passado, não me interessa; Deus não aceita a aparência do homem” (v. 6).
Nos versículos 9 e 10, Paulo informa o resultado da reunião. Primeiro, os apóstolos “nada me acrescentaram” (v. 6). Ou seja, eles não acharam que o evangelho de Paulo era deficiente. Não tentaram melhorá-lo ou embelezá-lo de alguma forma. Nada foi mudado. Ora, Paulo lhes apresentou, na ocasião, o evangelho que ele agora continuava pregando “entre os gentios” (v. 2), e que também já tinha sido pregado aos gálatas, que o haviam acolhido, e que continuava sendo reafirmado aos mesmos, de modo que nada foi modificado. Os gálatas eram os que estavam abandonando o evangelho.
O resultado positivo da reunião foi que estenderam a Paulo e a Barnabé “a mão direita da comunhão” (v. 9), ou seja, concluiu-se que todos os apóstolos haviam recebido a responsabilidade de pregar o mesmo evangelho. A única diferença estava nas esferas de atuação. Portanto, não há dois evangelhos, como parece indicar o versículo 7. A “comunhão” oferecida significa que os apóstolos aceitaram a Paulo e a Barnabé como “sócios” (houve um aperto de mãos), de modo uns fossem para os gentios e outros para os judeus (v. 9).
Os apóstolos recomendaram a Paulo e Barnabé apenas que os pobres não fossem esquecidos (v. 10). Ora, Paulo organizou algumas coletas para ajudar os crentes pobres da Judeia junto às igrejas gentias mais ricas da Acaia e da Macedônia (Rm 15.25-27). Paulo, assim, demonstrava a sua solidariedade para com os judeus crentes na comunhão da igreja cristã.
Será que esse texto de Gálatas tem algo a ver conosco hoje? Sim!
1) Só existe um evangelho, que está revelado no NT. É comum, porém, ainda ouvirmos que há um evangelho paulino, outro petrino, outro joanino, bem como há quem contraponha Paulo e Tiago, e assim por diante. Ora, o evangelho veio de Deus. Até pode haver diferenças de estilo e de ênfase, mas o evangelho é o mesmo. Paulo escreveu contra os legalistas, e Tiago escreveu contra os antinomistas, mas ambos se complementam ao lidar com os extremos. Em Gálatas, Paulo se esforça para mostrar que o seu evangelho está de acordo com o evangelho dos apóstolos, sendo que tudo está preservado no NT. O mesmo ele fez em 1Co 15.11: “seja eu ou sejam eles, assim pregamos e assim vocês creram”. Hoje, também há um único evangelho para a igreja, seja para crianças, jovens ou velhos; ricos e pobres; mais cultos ou menos cultos; cientistas ou leigos; igrejas históricas ou mais carismáticas. Paulo e Pedro tiveram diferentes comissionamentos, mas uma mensagem comum.
2) A verdade do evangelho deve ser mantida. Era preciso resistir aos judaizantes. Paulo estava disposto inclusive a se opor a Pedro (vs. 11-14) quando o evangelho pudesse estar em risco. Ele era muito brando com os irmãos “fracos”, cuja consciência era hesitante, a ponto de ter circuncidado a Timóteo mais tarde. Mas quanto a questões de princípios, quando a verdade do evangelho estava em jogo, Paulo estava disposto a permanecer firme, sem arredar o pé. Vejamos o que Lutero disse a esse respeito:
“Que esta seja então a conclusão de tudo: que nós podemos sofrer a perda de nossos bens, nossa reputação, nossa vida e tudo o que temos; mas o evangelho, a nossa fé e Jesus Cristo, jamais permitiremos que nos sejam arrebatados. E maldita seja aquela humildade que avilta e se submete nessas questões. E que todo cristão seja orgulhoso, não condescendendo quando se tratar de negar a Cristo. Portanto, se Deus me ajudar, a minha cabeça será mais dura que a cabeça de todos os outros homens. Neste ponto eu assumo o título, segundo o provérbio: cedo nulli, não cedo a ninguém. Sim, eu me alegro, de todo o meu coração, em me mostrar neste ponto rebelde e obstinado. E aqui eu confesso que serei sempre intrépido e inflexível, a ninguém cederei sequer uma polegada. O amor cede, pois ele ‘tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta’ (1Co 13.7), mas a fé não cede... Agora, no que se refere à fé devemos ser invencíveis, e, se possível, mais duros do que o diamante; mas no tocante ao amor, devemos ser meigos e mais flexíveis do que a cana ou a folha que é sacudida pelo vento, prontos a nos submeter a tudo” (Comentário à Epístola aos Gálatas, OS 10, p. 112).
Que Deus nos dê sempre graça, fé, coragem e força nessa caminhada! Amém!
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