Vimos até aqui que só há um evangelho, e que ele deve ser o critério pelo qual todas as opiniões humanas a respeito devem ser julgadas. Mas qual é a origem do evangelho, a ponto de ele ter todo esse poder? Será que Paulo havia plagiado o evangelho dos outros apóstolos em Jerusalém, que os judaizantes defendiam, já que tentavam subordinar a autoridade de Paulo à dos apóstolos?
Nos versículos 11 e 12, Paulo dá a resposta de que o evangelho não foi inventado por ele, nem foi recebido por qualquer tradição humana, nem lhe foi ensinado por mestres humanos. Foi revelação de Jesus Cristo (“Cristo” aqui pode ser tanto o conteúdo – genitivo objetivo (v. 16) – como a pessoa que revela). Paulo já havia escrito que o seu apostolado tinha origem divina (v. 1); agora, ele afirma que o evangelho também tem origem divina. Tudo veio diretamente de Jesus Cristo. Pois esse mesmo evangelho estava sendo colocado em dúvida pelos judaizantes e estava sendo deixado de lado pelos crentes gálatas. Ora, Jesus Cristo tomou o evangelho “sob sua própria e imediata tutela” (John Brown). Por isso, Paulo chamava o evangelho de “meu evangelho” (Rm 16.25), porque o havia recebido de forma especial. Ele afirmava que as suas palavras não eram suas na verdade, mas de Deus! O evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê! (Rm 1.16). Paulo, então, prossegue comprovando historicamente essa revelação direta, através de sua autobiografia, que revela sua espetacular conversão a Cristo.
Nos versículos 13 e 14, Paulo conta a sua história no judaísmo, quando foi um judeu praticante. Aparentemente, todos conheciam a sua situação (“vocês ouviram”), provavelmente porque Paulo já lhes havia falado sobre isso. Paulo destaca duas coisas sobre sua vida ainda não regenerada: sua perseguição à igreja; e seu entusiasmo pelas tradições de seus pais. Em ambos os casos ele se descreve como fanático. Contra a igreja, Paulo era implacável (“violenta” e “destruí-la”, v. 13), conforme At 8.3; 26.10-11. Com relação ao judaísmo, fora criado na seita mais severa (At 26.5). Um ser humano nessa condição mental e emocional não muda de ideia por qualquer coisa. Somente Deus podia convertê-lo.
Nos versículos 15 e 16, podemos ver o contraste com os versículos anteriores, especialmente pela forma dos verbos: Paulo passa de sujeito das ações para quem sofre as ações (“Mas, quando Deus, que me separou... e me chamou..., achou por bem revelar”). Ou seja, de um total fanatismo, Paulo é convertido a Deus, o verdadeiro e poderoso Deus, que executou a sua vontade. Ora, Jacó também foi escolhido antes de nascer (Rm 9.10-13), bem como Jeremias (Jr 1.5). Paulo, antes de nascer, foi separado apóstolo; logo, ele não pode ter tido nenhuma influência sobre seu chamado. Ao mesmo tempo, essa separação levou Paulo a uma vocação histórica, pela graça de Deus, embora ele estivesse lutando contra Deus, contra Cristo e contra a sua igreja. É bom dizer que Paulo nem pediu por essa misericórdia, mas pela graça ele foi chamado mesmo assim. Por fim, Deus quis (“achou por bem”) revelar seu Filho em Paulo, quando Paulo o considerava um impostor. Ou seja, Paulo já sabia algo a respeito de Jesus e seu ministério, mas agora ele teve a chance de conhecê-lo como Salvador do mundo, tendo os olhos abertos por Ele. E essa revelação incluía os “gentios” (v. 16) no plano salvador de Deus (At 9.15). Ora, a missão não era pregar aos gentios a lei de Moisés, como queriam os judaizantes, mas as boas novas de Cristo. Embora a revelação de Cristo tenha sido externa, com Ele ressuscitado (1Co 9.1; 15.8-9), ela também foi interior (2Co 4.6), o que produziu em Paulo essa convicção toda. Portanto, nem a missão apostólica de Paulo, nem a sua mensagem, vinham de seres humanos. Mas teria Paulo, depois, sido instruído por alguém?
Nos versículos 16, 17 e seguintes, Paulo nega essa possibilidade. Aparentemente, Paulo não discutiu o evangelho nem com Ananias. Ele apresenta 3 álibis:
1) Paulo foi à Arábia (v. 17). Após a conversão, Paulo ficou algum tempo pregando em Damasco, o que dá a entender que ele já tinha uma boa noção do evangelho. Depois, ele foi à Arábia. “Um véu muito espesso cobre a visita de Paulo à Arábia” (Lightfoot). Possivelmente, Paulo não foi muito longe de Damasco, porque todo o seu distrito naquele tempo era governado pelo rei Aretas, da Arábia. Crisóstomo: “um povo bárbaro e selvagem” que vivia ali foi evangelizado por Paulo. É mais provável que ele tenha ido à Arábia por quietude e solidão, onde ficou por três anos, aparentemente (v. 18). É possível que por lá o evangelho da graça de Deus lhe tenha sido revelado na plenitude, assim como Jesus passou 3 anos com seus discípulos.
2) Paulo foi a Jerusalém para uma rápida visita (vs. 18-20; At 9.26). Ele não dá muita importância à visita, como estavam sugerindo os falsos mestres. Primeiro, porque ela ocorreu somente três anos após a sua conversão. Segundo, chegando a Jerusalém, ele esteve somente com Tiago e Pedro. Lutero comenta que Paulo foi visitar esses apóstolos “não porque recebeu tal ordem, mas de sua própria vontade; não para aprender alguma coisa com eles, mas apenas para conhecer Pedro”. Paulo também conheceu Tiago, que aparentemente exerceu um trabalho apostólico (v. 19). Talvez os demais pudessem estar com medo (At 9.26). Terceiro, Paulo ficou somente quinza dias em Jerusalém, e grande parte do tempo foi usado para pregações (At 9.28-29). Ou seja, Paulo não recebeu o evangelho dos apóstolos em Jerusalém.
3) Paulo foi para a Síria e a Cilícia (vs. 20-24). Essa visita ao extremo norte corresponde a At 9.30, porque Paulo corria risco de vida e, por isso, foi levado a Cesareia, de onde o enviaram para Tarso, que fica na Cilícia. Parece que ele deve ter visitado também Damasco e Antioquia a caminho de Tarso. De qualquer forma, Paulo estava no extremo norte, e não em Jerusalém. Por isso, ele não era “conhecido pessoalmente pelas igrejas da Judeia” (v. 22), a não ser pelo boato de ter sido convertido (v. 23). Por isso, as pessoas glorificavam a Deus. Paulo havia se tornado um troféu extraordinário da graça de Deus (v. 23).
Somente catorze anos mais tarde (Gl 2.1) Paulo tornou a visitar Jerusalém (a não ser uma rápida visita nesse período), quando teve um contato mais próximo com os apóstolos. Nesse tempo, seu evangelho já estava totalmente desenvolvido. Portanto, o fanatismo da carreira de Paulo antes de sua conversão, a iniciativa divina de sua conversão e seu isolamento dos líderes da igreja, tudo contribuía para provar que a sua mensagem não era humana, mas divina. Paulo chega a escrever: “ora, a respeito do que estou escrevendo a vocês, afirmo diante de Deus que não estou mentindo” (v. 20).
Entretanto, muitos ainda acham que os ensinamentos de Paulo são severos, áridos e complicados, de modo que os rejeitam. Outros dizem que Paulo foi responsável pela corrupção do cristianismo simples de Cristo. Ora, as sementes da teologia de Paulo se encontram nos ensinamentos de Cristo (1Co 11.23). Além disso, Jesus disse aos seus apóstolos que o Espírito guiaria os mesmos a toda verdade (Jo 16.12-14; 14.26). Nesse caso, rejeitar a Paulo pode ser o mesmo que rejeitar o evangelho.
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