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Foto do escritorChristian Lo Iacono

Preservando o Evangelho - Série Gálatas (Parte V)


Esse é um dos relatos mais tensos do NT, envolvendo dois grandes apóstolos, num encontro conflituoso, face a face. O cenário em Gálatas passou de Jerusalém, capital do judaísmo, para Antioquia, a principal cidade da Síria, e até mesmo da Ásia, onde a missão gentia começou e onde os discípulos foram chamados “cristãos” pela primeira vez. Pedro havia estendido a comunhão a Paulo em Jerusalém. Mas agora Paulo opõe-se a Pedro.


Tanto Paulo quanto Pedro eram homens de Deus e sabiam o que era ser perdoado por Jesus Cristo, e ambos eram respeitados pela comunidade cristã. O livro de Atos, pode-se dizer, primeiro conta a história de Pedro, e, depois, a de Paulo. Mas aqui Paulo repreende a Pedro, condenando-o por ter-se afastado dos crentes gentios. Não que Pedro negasse o evangelho em sua doutrina, pois Paulo se esmerou em mostrar que eles tinham concordado quanto ao evangelho, e ele repete esse fato aqui (2.15-16). A ofensa de Pedro contra o evangelho foi na sua conduta. “Sua conduta estava em contradição com a verdade do evangelho” (J. B. Phillips).


Nos versículos 11 a 13, vemos que Pedro tinha o costume (verbo no tempo imperfeito) de comer com os crentes gentios em Antioquia, deixando para trás sua cultura judaica. Ele não se considerava “contaminado” por fazer isso, como já acontecera antigamente, e muito provavelmente participava da Ceia do Senhor com os irmãos da região. Mas um grupo de crentes judeus veio de Jerusalém “da parte de Tiago” com uma postura “farisaica” (At 15.5). Não significa que tinham respaldo do líder Tiago, até porque mais tarde ele negou isso (At 15.24), mas aparentemente eles se apresentaram como delegados apostólicos.


Esses crentes judeus começaram a pregar a necessidade da circuncisão (At 15.1) e devem ter insinuado que era impróprio que crentes circuncisos comessem à mesa com crentes gentios, ainda que estes cressem em Jesus e fossem batizados. Esses mestres judaizantes ganharam um maravilhoso aliado, Pedro, que agora se afastava dos crentes gentios. “As palavras descrevem convincentemente o afastamento cauteloso de uma pessoa tímida que se esquiva dos observadores” (Lightfoot).


Ora, por que Pedro se deixou influenciar? Será que esse grupo convenceu a Pedro de que ele estava errado? Certamente não! Pedro havia recebido uma revelação especial e direta de Deus, em Jope, exatamente sobre esse tema. Nessa visão, repetida três vezes, ele escutou: “não considere impuro aquilo que Deus purificou” (At 10. 15). Foi, então, que Pedro concluiu que devia ir à casa do gentio Cornélio pregar o evangelho, atitude que era considerada imprópria para um judeu (v. 28). Chegando lá, além de dizer que “Deus não trata as pessoas com parcialidade” (v. 34), Pedro viu o Espírito Santo cair sobre os gentios, que foram batizados e recebidos na comunhão da igreja (vs. 44-48). Será que Pedro esqueceu de tudo isso ou mudou de opinião?

O motivo do afastamento de Pedro foi outro: “temendo os da circuncisão” (v. 12). Além disso, “os demais judeus se fizeram hipócritas juntamente com ele, a ponto de o próprio Barnabé ter-se deixado levar pela hipocrisia deles” (v. 13). Ou seja, todos estavam “fingindo”. A acusação de Paulo é séria: Pedro e os outros estavam agindo com falta de sinceridade, e não por convicção pessoal. Pedro ficou com um medo covarde de um pequeno grupo, fazendo exatamente o oposto daquilo que Paulo fez em Jerusalém, quando este não cedeu à pressão. O mesmo Pedro que negou o Senhor com medo de uma criada, negou-o agora com medo do “partido da circuncisão”. Pedro contradisse o evangelho com a sua postura, porque lhe faltou coragem nas convicções!


Segundo Lightfoot, “a dissimulação deles foi uma enchente que levou tudo de roldão”. Até Barnabé, que havia ido com Paulo à Jerusalém (2.1-9), cedeu (v. 13)! Isso é muito importante! Se Paulo não tivesse se colocado contra Pedro naquele dia, toda a igreja cristã teria derivado para uma estagnação, ou haveria uma permanente rixa entre um cristianismo gentio e um judeu (Neill). A coragem de Paulo naquele dia preservou a verdade do evangelho e a fraternidade internacional da igreja.


Paulo “resistiu” a Pedro “face a face”, porque este “havia se tornado repreensível” (v. 11; “porque ele estava completamente errado”, NTLH). Além disso, Paulo fez isso “na presença de todos” (v. 14), franca e publicamente, ainda que Pedro tivesse sido apóstolo antes dele (1.17) e contasse com todo o respeito de Paulo (2.7, 9). Nada disso impediu que Paulo se opusesse a Pedro. Alguém deve ter aconselhado Paulo a ser cauteloso, a evitar “lavar roupa suja teológica em público”. O problema é que o afastamento de Pedro dos crentes gentios havia provocado um escândalo público, que precisava ser reparado. É o tipo de coisa que todos nós hoje queremos evitar, não?


Alguns já sugeriram que Paulo fez isso por causa do seu temperamento. Na verdade, Paulo estava preocupado com o princípio que Pedro parecia ignorar. Lutero escreveu: “Ele não estava lidando com um assunto superficial, mas com o artigo principal de toda a doutrina cristã... Pois quem é Pedro? Quem é Paulo? Quem é um anjo do céu? O que são todas as outras criaturas para com o artigo da justificação? O que somos nós, se é que o sabemos, estamos à luz clara do dia; mas se somos ignorantes nesse ponto, então estamos na mais miserável escuridão”.


Duas vezes nesse capítulo 2, Paulo chama esse princípio de “a verdade do evangelho”. Ele fora o assunto discutido em Jerusalém (v. 5) e novamente em Antioquia (v. 14). Paulo “viu” (v. 14), ou seja, ele discerniu que não estavam “agindo corretamente segundo a verdade do evangelho”, o que parece indicar uma certa tendência na prática da doutrina da justificação pela fé, que passa a ser explicitada a partir do versículo 15. Ora, no começo da Carta, Paulo pronunciou um terrível “anátema” sobre os falsos mestres (1.8-9). Em Jerusalém, ele não se submeteu aos judaizantes (2.5). E agora, em Antioquia, mais uma vez Paulo está determinado. Por quê?

No versículo 15, Paulo escreve “nós sabemos” (Pedro e Paulo), retomando o que ambos sabiam a respeito do evangelho, que salva tanto judeus como gentios pela fé somente! Portanto, “quem somos nós”, Paulo argumenta, para negar comunhão aos crentes gentios apenas porque eles não foram circuncidados? Se Deus não exige tal obra para aceita-los, como nos atrevemos a lhes impor uma condição? Se Deus os aceita na sua comunhão, vamos nós negar-lhes a nossa? Se Deus os reconciliou consigo mesmo, como podemos nos afastar daqueles a quem Deus reconciliou? “Portanto, acolham uns aos outros, como também Cristo acolheu vocês, para a glória da Deus” (Rm 15.7). Ora, o próprio Pedro fora justificado pela fé em Cristo somente (v. 16). Além disso, ele já “vivia como gentio”, sem observar regulamentos dietéticos (v. 14).


Não sabemos o resultado exato da atitude de Paulo. Mas sabemos que o fato precipitou o futuro Concílio de Jerusalém (At 15). É possível que Paulo já estivesse a caminho desse Concílio quando escreveu a Carta. Paulo, Barnabé e mais alguns foram designados em Antioquia para ir a Jerusalém falar com os apóstolos a esse respeito. Esse Concílio, por fim, decidiu que a circuncisão não deveria ser exigida dos crentes gentios, o que foi uma grande vitória do evangelho.


Conclusão:


Esse tipo de controvérsia continua existindo na igreja hoje, embora os temas também possam ser outros, bem menos importantes, como o batismo infantil, a forma do batismo, o ministério pastoral, o papel do Espírito Santo etc. A questão, porém, é em que base os crentes podem ter comunhão uns com os outros ou afastar-se uns dos outros? A base é o evangelho somente!


Não basta que “creiamos” no evangelho, nem que lutemos para preservá-lo. É preciso vivenciá-lo! Pedro acrescentou a circuncisão como condição extra para a comunhão com seus irmãos, contrariando o evangelho. Ora, será que somos mais criteriosos do que Deus?




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