GÁLATAS: 3.15-22
Nesse trecho da Palavra de Deus, Paulo continua sua exposição sobre o
evangelho, mostrando sua origem no AT. Somos remetidos ao tempo de Abraão,
por volta de 2.000 a.C., e ao tempo de Moisés, alguns séculos depois. O
“mediador” (v. 19) nesse texto é Moisés, através de quem a lei foi entregue por
Deus.
Ora, Deus chamou Abraão de Ur dos Caldeus e lhe prometeu uma posteridade
numerosa, além da possessão de uma terra específica. Essas promessas foram
confirmadas a seus descendentes Isaque e Jacó, sendo que este morreu ainda no
Egito (no exílio), para onde havia ido em razão da grande fome havida em
Canaã. Os 12 filhos de Jacó também morreram no Egito. Os 430 anos (v. 17)
correspondem ao tempo entre Abraão e Moisés bem como à duração da
escravidão no Egito (Êx 12.40; Gn 15.13; At 7.6).
A Abraão, Deus deu uma promessa (Gn 12.1-2); a Moisés, a lei, resumida em 10
mandamentos. Lutero escreve que “a lei e a promessa devem ser diligentemente
separadas, pois, no tempo, no lugar e na pessoa, e geralmente em todas as outras
circunstâncias, elas se encontram tão separadas como os céus da terra... Se o
evangelho não for claramente diferenciado da lei, a verdadeira doutrina cristã não
pode ser mantida sadia e incorrupta”. Na promessa, Deus diz “mostrarei...
abençoarei” (Gn 12.1-3); na lei, “faça isso... não faça aquilo”. A promessa
apresenta a religião de Deus, a graça de Deus e sua iniciativa; a lei apresenta a
religião do ser humano, o seu dever e suas obras. Para a promessa somente a fé é
necessária; mas a lei tem que ser obedecida.
Paulo conclui que a religião cristã é a de Abraão, da qual os cristãos estão
desfrutando até hoje, pela promessa de Deus feita ao patriarca. Mesmo assim, o
Deus de ambos, Abrãão e Moisés, é o mesmo (“Deus é um só”, v. 20). Como
conciliar essas diferenças? Ora, nos versículos 15-18, Paulo vai mostrar que a lei
não anulou a promessa de Deus, e nos versículos 19-22, que a lei iluminou a
promessa de Deus, tornando-a indispensável.
No versículo 15, Paulo usa “um exemplo da vida diária” (NTLH), o
“testamento”. A palavra grega diatheke (vs. 15 e 17) foi traduzida aqui por
“aliança” porque foi utilizada na Septuaginta ao falar das alianças de Deus. Mas
no grego clássico e nos papiros era usada comumente em se tratando de um
“testamento” (Hb 9.15-17). Ou seja, aparentemente Paulo quer destacar que os
desejos e promessas expressos num testamento são inalteráveis (embora isso
fosse diferente entre os romanos e também hoje, sendo permitidas essas
alterações). Ou talvez a ideia seria que o testamento não podia ser modificado
por outrem, embora certamente não podia ser alterado após a morte do testador.
De qualquer maneira, o argumento é que se o testamento de um ser humano não
pode ser ignorado nem alterado, muito menos as promessas de Deus, que são
imutáveis.
A promessa refere-se a uma herança prometida a Abraão e sua posteridade. No
sentido mais literal e imediato, essa promessa envolvia a entrega da terra de
Canaã como presente aos filhos de Abraão; mas a longo prazo, a promessa
envolvia todas as famílias da terra, ou seja, ela tinha um significado de salvação
mais abrangente. No versículo 16, Paulo usa o substantivo coletivo
“descendente” (Gn 13.15; 17.8) para se referir a Cristo e a todos aqueles que
estão em Cristo pela fé. Essa promessa de Deus foi feita de forma livre e
incondicional, não dependente de qualquer obra ou obediência humanas. Deus
não faz promessas para quebrá-las.
No versículo 17, Paulo vai mostrar que se os judaizantes estivessem certos, a
herança (a justificação) seria concedida somente aos que guardassem a lei. Mas
se a herança decorre da lei, não tem como decorrer da promessa
(incompatibilidade), porque “foi pela promessa que Deus a concedeu
gratuitamente a Abraão” (v. 18). O uso de kecharistai (“concedeu”) indica um
presente de graça e que foi concedido para sempre, por causa do grego no tempo
perfeito. Deus não retrocede em sua promessa. Todo pecador que confia no
Cristo crucificado para a sua salvação recebe a bênção da vida eterna.
Paulo, nos versículos 19 a 22, faz duas perguntas para explicar a função da lei de
Deus: primeira, qual a razão de ser da lei? Ora, os judaizantes acusavam Paulo de
ser “contra a lei” (At 21.28) ao ensinar o evangelho, que justifica pela fé. Por
isso, ele explica que a lei tinha a função de convencer o ser humano de seu
pecado e da sua necessidade de salvação. “Satanás gostaria que provássemos que
somos santos através da lei, a qual Deus deu para provar que somos pecadores”
(Andrew Jukes). Em Romanos, Paulo escreve que “pela lei vem o pleno
conhecimento do pecado” (3.20); “onde não há lei, também não há transgressão”
(4.15); “eu não teria conhecido o pecado, a não ser por meio da lei” (7.7). Ou
seja, o principal papel da lei é denunciar o pecado, transformando-o em
“transgressão” (v. 19), mostrando, assim, a violação da santa lei de Deus e a
revolta do ser humano contra o Criador.
Mas a lei olhava para Cristo, a semente de Abraão, como sendo Aquele através
de quem a transgressão seria perdoada. Paulo, então, mostra a inferioridade da lei
em relação ao evangelho. No versículo 19, a atividade dos “anjos” em conexão
com a doação da lei é mencionada em Dt 33.2; Sl 68.17; At 7.53 e Hb 2.2. O
mediador é Moisés, sem dúvida. Assim, ao dar a lei, Deus falou por meio de
anjos e Moisés, uma dupla mediação (Lightfoot). Mas o evangelho foi anunciado
diretamente por Deus a Abraão (“Deus é um”, v. 20)!
A segunda pergunta de Paulo é: a lei é contrária às promessas? A pergunta parece
ser direcionada por Paulo aos judaizantes, porque o apóstolo acusa os mesmos de
contradizerem o evangelho com a lei. Ele responde que “se fosse promulgada
uma lei que pudesse dar vida”, a promessa não seria necessária, e bastava que se
cumprisse a lei (v. 21), o que se mostrou impossível. “Porque aquilo que a lei
não podia fazer, por causa da fraqueza da carne, isso Deus fez, enviando o
seu próprio Filho em semelhança de carne pecaminosa e no que diz
respeito ao pecado. E assim Deus condenou o pecado na carne” (Rm 8.3).
“A Escritura encerrou tudo sob o pecado” (v. 22). Mais uma vez Paulo declara a
universalidade do pecado (Sl 14.3), para que “mediante a fé em Jesus Cristo, a
promessa fosse concedida aos que creem” (v. 22). “O ponto principal... da lei... é
tornar os homens piores, não melhores; isto é, ela lhes mostrou o pecado deles,
para que através do conhecimento eles se tornassem humildes, assustados,
desanimados e quebrantados, e desse modo fossem levados a buscar a graça,
sendo assim levados à semente bendita, Cristo” (Lutero). Ou seja, os judaizantes
defendiam que a lei anula e suplanta a promessa; Paulo ensina que a verdadeira
função da lei é confirmar a promessa e torná-la indispensável.
Conclusão:
1. Uma verdade acerca de Deus. Há quem pense que a Bíblia se contradiz; mas
ela, na verdade, é bem coerente. Toda a história bíblica aborda o propósito
gracioso de salvação do ser humano realizado por Deus. Começando em Abraão,
passando por Moisés e destacando o clímax da obra de Deus em Jesus Cristo,
Paulo chega até nossos dias, mostrando a unidade da Bíblia e de sua mensagem,
tanto no AT como no NT. Como essa visão do plano de Deus expresso nas
Escrituras de forma integral nos faz falta hoje!
2. Uma verdade acerca do ser humano. Depois da promessa a Abraão, Deus
precisou adicionar a lei, porque tinha que “piorar as coisas antes de melhorá-las”.
A lei evidenciou o pecado, desmascarando-o. Ela abalou a ideia de
respeitabilidade humana e desmascara a hipocrisia do politicamente correto. Ora,
o ser humano é mau por natureza, e essa maldade vem de dentro. Não adianta
taparmos o sol com a peneira, à semelhança do que fizeram alguns profetas:
“Curam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: ‘Paz, paz’; quando não
há paz” (Jr 6.14; 8.11).
Ir ao evangelho sem passar pela lei não é possível, a não ser quando fazemos do
evangelho uma nova lei. Usando a própria palavra de Jesus, as pessoas não
percebem a beleza da pérola porque não enxergaram a imundície do chiqueiro!
Só contra a escuridão do céu da noite é que se percebe o brilho das estrelas.
Somente contra o fundo escuro do pecado e do juízo é que o evangelho reluz! Só
depois que a lei nos fere e esmaga é que admitimos a nossa necessidade do
evangelho para curar nossas feridas. Somente depois que a lei nos aprisiona é que
desejamos que Cristo nos liberte. Somente depois que a lei nos tiver condenado e
matado é que vamos clamar a Cristo por justificação e vida. Que Deus tenha
misericórdia de nós, sua igreja!
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