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Foto do escritorChristian Lo Iacono

Preservando o Evangelho - Série Gálatas (Parte XII)



Digam-me vocês, os que querem estar sob a lei: será que vocês não ouvem o que a lei diz? Pois está escrito que Abraão teve dois filhos: um da mulher escrava e outro da mulher livre. O filho da escrava nasceu segundo a carne; o filho da mulher livre nasceu mediante a promessa. Estas coisas são alegóricas, porque essas mulheres são duas alianças. Uma se refere ao monte Sinai, que gera para a escravidão; esta é Agar.

Ora, Agar é o monte Sinai, na Arábia, e corresponde à Jerusalém atual, que está em escravidão com os seus filhos. Mas a Jerusalém lá de cima é livre e ela é a nossa mãe.

Porque está escrito: “Alegre-se, ó estéril, você que não dá à luz; exulte e grite, você que não sente dores de parto; porque os filhos da mulher abandonada são mais numerosos do que os filhos da que tem marido.” Mas vocês, irmãos, são filhos da promessa, como Isaque. Como, porém, no passado, aquele que nasceu segundo a carne perseguia o que nasceu segundo o Espírito, assim também acontece agora. Mas o que diz a Escritura? Ela diz: “Mande embora a escrava e seu filho, porque de modo nenhum o filho da escrava será herdeiro com o filho da mulher livre.” Portanto, irmãos, somos filhos não da escrava, mas da livre. Gálatas 4:21-31


Há quem diga que esse trecho é o mais complicado de Gálatas, porque pressupõe certo conhecimento do AT e porque Paulo aqui parece ser mais técnico ao utilizar um argumento familiar para as escolas dos rabinos judeus. O texto se dirige aos que “querem estar sob a lei” (v. 21). Ora, existe muita gente assim hoje, pessoas cuja religião é legalista, que imaginam que o caminho para Deus e com Deus consiste na obediência a certos padrões e regras. Até mesmo cristãos professos transformam com facilidade o evangelho em lei, supondo que seu relacionamento com Deus se baseia em regulamentos, tradições, cerimônias. Isso gera escravidão.


A esses, Paulo escreve: “vocês, os que querem estar sob a lei: será que vocês não ouvem o que a lei diz?” (v. 21). Ou seja, Paulo vai ao terreno argumentativo dos judaizantes e os refuta lá mesmo, denunciando a incoerência do sistema deles: “Vocês querem estar sob a lei? Então obedeçam a lei, e ela mesma será o juiz de vocês para a condenação”. Paulo usa aqui 3 estágios argumentativos: o histórico, o alegórico e o pessoal. No histórico (vv. 22-23), o apóstolo argumenta que Abraão teve 2 filhos, Ismael (filho de Agar, escrava) e Isaque (filho de Sara, livre). No alegórico (vv. 24-27), Paulo alega que os 2 filhos e suas mães representam duas religiões: a da servidão (judaísmo) e a da liberdade (fé cristã). E no estágio pessoal (vv. 28-31), o apóstolo argumenta que se somos cristãos, não somos como Ismael, escravos, mas como Isaque, livres.


Um dos motivos de maior orgulho dos judeus era serem descendentes de Abraão, o pai e fundador de sua raça. Séculos depois do pecado, foi a Abraão que Deus finalmente se revelou de maneira clara, prometendo ao mesmo a terra de Canaã e uma descendência numerosa como as estrelas e a areia da praia. Por causa dessa aliança, os judeus sentiam-se seguros. Por isso João Batista precisou dizer no seu tempo: “E não pensem que podem dizer uns aos outros: ‘Temos por pai a Abraão’, porque eu afirmo a vocês que Deus pode fazer com que destas pedras surjam filhos a Abraão” (Mt 3.9).


Semelhantemente, quando Jesus disse aos judeus que, se permanecessem na palavra dele, seriam verdadeiramente seus discípulos e conheceriam a verdade que os libertaria, eles responderam: “Somos descendência de Abraão e jamais fomos escravos de ninguém. Como você pode dizer que seremos livres?... Mas Jesus respondeu: - Se vocês fossem filhos de Abraão, fariam as obras que ele fez... Eles responderam: - Nós não somos filhos ilegítimos. Temos um pai, que é Deus. Jesus disse: - Se Deus fosse, de fato, o pai de vocês, certamente me amariam... Vocês são do diabo, que é o pai de vocês” (Jo 8.31-44).


Ora, Paulo argumenta que os verdadeiros filhos de Abraão não são os naturais, mas os espirituais; ou seja, não são aqueles que têm uma impecável genealogia judia, mas aqueles que creem no que Abraão creu e obedecem como Abraão obedeceu. Esse foi o argumento de Paulo no capítulo 3, que sustentou que a bênção prometida de Abraão não é dos judeus como tais, segundo a carne, mas dos crentes em Cristo, sejam judeus ou gentios (vv. 14 e 29). Portanto, não podemos ser descendentes de Abraão sem pertencermos a Cristo! Essa dupla descendência de Abraão é apresentada ilustrativamente nos seus 2 filhos.


A primeira diferença entre Ismael e Isaque é que eles nasceram de mães diferentes. Agar, a mãe de Ismael, era escrava de Abraão, e Sara, a mãe de Isaque, era a esposa de Abraão. Assim, Ismael nasceu na escravidão, e Isaque nasceu livre. A segunda diferença é que eles nasceram de maneiras diferentes: Isaque nasceu “contra a natureza”, pois seu pai tinha 100 anos, e sua mãe, que fora estéril, tinha mais de 90. “Pela fé, também, a própria Sara, apensar de não poder ter filhos e já ser idosa, recebeu poder para ser mãe, pois considerou fiel aquele que lhe havia feito a promessa” (Hb 11.11). Ou seja, Ismael nasceu segundo a natureza, mas Isaque nasceu segundo “a promessa” (v. 23). Para Paulo, essas diferenças eram alegóricas: todos somos escravos por natureza, até que no cumprimento da promessa de Deus sejamos libertados.


Paulo também argumenta que “essas mulheres são duas alianças” (v. 24). Ora, a aliança é um acordo solene entre Deus e os seres humanos, através do qual Ele os transforma em seu povo e promete ser o seu Deus. A antiga aliança, a mosaica, fundamentava-se na lei; mas a nova, figurada em Abraão e profetizada por Jeremias, fundamenta-se na promessa. Na lei, Deus colocou responsabilidades sobre as pessoas e disse: “farás, “não farás”; mas na promessa, Deus assume a responsabilidade, dizendo: “Eu farei”.


Também encontramos na passagem duas Jerusaléns. Ora, o povo de Deus sob a antiga aliança eram os judeus, a “Jerusalém atual”, a cidade terrena. Mas na nova aliança, o povo de Deus são os cristãos, a igreja, a “Jerusalém lá de cima”, a celestial. Assim, as duas mulheres, Agar e Sara, representam as duas alianças e as duas Jerusaléns, a terrena e a celestial. Como Agar deu à luz filhos “para a escravidão” (v. 24), ela representa a aliança do monte Sinai, pois “Agar é o monte Sinai, na Arábia”, e os árabes são conhecidos como filhos de Agar, sendo que ela também “corresponde à Jerusalém atual, que está em escravidão com os seus filhos” (v. 25). Já Sara, sendo livre, representa a igreja cristã: “mas a Jerusalém lá de cima é livre e ela é a nossa mãe” (v. 26). Ou seja, estamos ligados a Deus por uma nova aliança, e essa cidadania não é escravidão, mas liberdade.


A citação que Paulo faz de Is 54.1 no versículo 27 não é com referência a Agar e Sara, mas aos judeus. O profeta Isaías está se dirigindo aos exilados na Babilônia, comparando a sua condição no exílio, sob o juízo divino, a de uma mulher estéril finalmente abandonada por seu marido, que terá, porém, o seu futuro, depois da restauração, como uma mãe fértil com mais filhos do que as demais. Ou seja, Deus promete que depois do retorno, o seu povo será mais numeroso do que antes. Ora, o verdadeiro cumprimento disso se deu com o nascimento da igreja cristã! Isso é uma alegoria. Portanto, embora os filhos sejam semelhantes, porque ambos procedem de Abraão, os dois meninos eram fundamentalmente diferentes. Assim, não bastava para os judeus reivindicar a paternidade de Abraão; era preciso saber quem era a sua mãe, Agar ou Sara.


“Mas vocês, irmãos, são filhos da promessa, como Isaque” (v. 28). Como cristãos, nossa descendência de Abraão é espiritual, não natural. Se somos filhos de Deus, isso ocorreu de forma sobrenatural. Nesse sentido, podemos também esperar, como cristãos, o mesmo tratamento que Isaque recebeu de Ismael. Assim como também podemos esperar de Deus o mesmo tratamento que Isaque recebeu de Abraão. Ora, quando Isaque foi desmamado, com provavelmente 3 anos de idade, Ismael já era um jovem de 17, que não poupou Isaque de ser “zombado (Gn 21.9).


A perseguição da verdadeira igreja cristã nem sempre vem do ímpio, mas de nossos “meio-irmãos”, a gente religiosa. O Senhor Jesus foi cruelmente perseguido, rejeitado, zombado e condenado por sua própria nação. Os oponentes mais impetuosos do apóstolo Paulo, que o perseguiram e lutaram contra ele, foram os membros da “igreja oficial”, os judeus. A estrutura monolítica do papado medieval perseguiu todas as minorias protestantes com crueldade e ferocidade ininterrupta. Será que os maiores opositores da fé evangélica hoje são os incrédulos? Ou a própria igreja e o seu sistema, com a sua hierarquia?


“Mas o que diz a Escritura? Ela diz: ‘Mande embora a escrava e seu filho, porque de modo nenhum o filho da escrava será herdeiro com o filho da mulher livre’” (v. 30). Embora Isaque tivesse que suportar a zombaria de Ismael, foi Isaque quem se tornou herdeiro de seu pai, Abraão, e recebeu a herança. Num certo momento Abraão até desejou que Ismael fosse o herdeiro: “Quem dera que Ismael vivesse sob a tua bênção! Deus lhe respondeu:... a minha aliança eu estabelecerei com Isaque” (Gn 17.18-21). E, assim, Sara pediu a Abraão que lançasse fora a escrava e seu filho, e Deus disse a Abraão que atendesse esse pedido, embora ainda fosse criar uma nação dos filhos de Ismael, os árabes. Ou seja, vemos a própria Escritura rejeitando a lei (“mande embora”). Então, esses versículos que os judeus interpretavam como Deus rejeitando os gentios, Paulo inverte sua interpretação, aplicando-os à exclusão dos judeus incrédulos. É um golpe no judaísmo.


Assim, como cristãos, vivemos esse paradoxo: somos desprezados e rejeitados pelos seres humanos; mas somos filhos de Deus, “herdeiros de Deus e coerdeiros com Cristo” (Rm 8.17). Como escreveu Paulo aos coríntios, “em tudo nos recomendamos a nós mesmos como ministros de Deus: na muita paciência, nas aflições, nas privações, nas angústias... por honra e por desonra, por infâmia e por boa fama; como enganadores e sendo verdadeiros; como desconhecidos, mas sendo bem conhecidos; como se estivéssemos morrendo, mas eis que vivemos; como castigados, porém não mortos; como entristecidos, mas sempre alegres; como pobres, mas enriquecendo a muitos; como nada tendo, mas possuindo tudo” (2Co 6.4, 8-10).


Conclusão:


1. Nós herdamos as promessas do AT, por meio de Cristo, nós os que cremos nele, inclusive os gentios. Nós somos o “Israel de Deus” (Gl 6.16), “a circuncisão” (Fp 3.3). Por isso, acabamos sendo perseguidos. Todas as promessas de Deus ao seu povo no AT são nossas se estivermos em Cristo.


2. As categorias da antiga aliança são a natureza, a lei e a servidão; as da nova aliança são a promessa, o Espírito e a liberdade. A religião de Ismael é uma religião da natureza, do que as pessoas podem fazer por si mesmas, sem a intervenção especial de Deus. A religião de Isaque é uma religião da graça, do que Des fez e faz, uma religião de iniciativa divina, pois Isaque nasceu de modo sobrenatural, através de uma promessa divina. Os “Ismaéis” deste mundo confiam em si mesmos, acham que são justos; os “Isaques” confiam apenas em Deus através de Jesus Cristo. Os “Ismaéis” encontram-se na servidão porque é a isso que a autoconfiança conduz; os “Isaques” desfrutam a liberdade, porque é através da fé em Cristo que as pessoas são feitas livres, verdadeiramente.



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