Estai, pois, firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, e não torneis a colocar-vos debaixo do jugo da servidão. Eis que eu, Paulo, vos digo que, se vos deixardes circuncidar, Cristo de nada vos aproveitará. E de novo protesto a todo o homem, que se deixa circuncidar, que está obrigado a guardar toda a lei. Separados estais de Cristo, vós os que vos justificais pela lei; da graça tendes caído. Porque nós pelo Espírito da fé aguardamos a esperança da justiça. Porque em Jesus Cristo nem a circuncisão nem a incircuncisão tem valor algum; mas sim a fé que opera pelo amor. Corríeis bem; quem vos impediu, para que não obedeçais à verdade? Esta persuasão não vem daquele que vos chamou. Um pouco de fermento leveda toda a massa. Confio de vós, no Senhor, que nenhuma outra coisa sentireis; mas aquele que vos inquieta, seja ele quem for, sofrerá a condenação. Eu, porém, irmãos, se prego ainda a circuncisão, por que sou, pois, perseguido? Logo o escândalo da cruz está aniquilado.
Eu quereria que fossem cortados aqueles que vos andam inquietando.
“Cristo nos libertou para que nós sejamos realmente livres” (Gl 5.1, NTLH). Ou seja, nossa condição anterior, sem Cristo, era de escravidão. Assim, a conversão é apresentada aqui como um ato de emancipação, e a vida cristã, como uma vida de liberdade. Essa liberdade não é, em primeiro lugar, uma libertação do pecado, mas, sim, da lei! O que Cristo fez ao nos libertar não foi tanto libertar a nossa vontade da servidão do pecado, mas libertar a nossa consciência da culpa do pecado. Ou seja, a liberdade que Paulo descreve aqui é a de consciência, liberdade da tirania da lei, da luta terrível para guardar a lei e não conseguir êxito. É a liberdade da aceitação divina e do acesso a Deus através de Cristo! Esse entendimento é fundamental!
Por isso, considerando que Cristo nos libertou para sermos livres, devemos permanecer “firmes”, não nos “submetendo, de novo, a jugo de escravidão” (v. 1). Portanto, devemos desfrutar a gloriosa liberdade de consciência que Cristo comprou para nós através do seu perdão. Não devemos cair na ideia de que devemos ganhar a nossa aceitação junto a Deus através da obediência. O quadro aqui parece ser o de um boi arcado sob um pesado jugo, já que “não se submeter” significa “não estar sobrecarregado com”. “Eu sou o SENHOR, o Deus de vocês, que os tirei da terra do Egito, para que não fossem escravos dos egípcios; quebrei o jugo que pesava sobre vocês e os fiz andar de cabeça erguida” (Lv 26.13).
Ora, isso acontece na vida cristã. Uma vez estivemos sob o jugo da lei, subjugados por exigências às quais não tínhamos capacidade de atender, e estávamos condenados pela nossa desobediência. Mas Cristo atendeu a essas exigências da lei em nosso lugar, resgatando-nos da maldição da lei (3.13).
Assim, como imaginar a possibilidade de nos colocarmos novamente sob esse jugo cruel? Ocorre que os falsos mestres estavam ensinando que os crentes gálatas precisavam ser circuncidados, o que, à primeira vista, até parecia ser não muito relevante. Afinal, qual o problema de se fazer uma pequena cirurgia diante do valor da nova vida em Cristo? O problema é que esses falsos mestres estavam dando a esse rito um significado teológico: “se vocês não forem circuncidados segundo o costume de Moisés, não podem ser salvos” (At 15.1). Isso era a mesma coisa que dizer que Moisés devia ter a permissão de concluir o que Cristo havia começado, e que, então, os crentes gálatas deviam cumprir toda a lei (v. 3).
“Eu, Paulo, lhes digo” (v. 2) indica uma advertência direta: “Cristo não terá valor algum para vocês” (v. 2); e “estão separados de Cristo; vocês caíram da graça de Deus” (v. 4). Ou seja, acrescentar a circuncisão é perder a Cristo, e procurar ser justificado pela lei é cair da graça. Não há como conciliar esses 2 caminhos, pois eles são diferentes. Se acrescentamos alguma coisa a Cristo para a nossa salvação, perdemos a Ele. A salvação está em Cristo somente, pela graça somente, através da fé somente (solus Christus, sola gratia, sola fide).
A partir do versículo 5, o pronome muda de “vocês” para “nós”, indicando que Paulo está pensando em sua experiência pessoal e, quem sabe, no risco que nós podemos correr compreendendo mal o evangelho. A ênfase nos versículos 5 e 6 está na fé. Nós “aguardamos a esperança da justiça que provém da fé” (v. 5), ou seja, a expectativa da justiça plena, futura, fruto de nossa justificação diante de Deus, para estarmos eternamente com Cristo. Portanto, não trabalhamos por essa salvação, mas a aguardamos pela fé. Não lutamos ansiosamente para garantir a nossa salvação, nem imaginamos que temos que obtê-la através de boas obras. A glorificação final no céu é um dom tão livre quanto a nossa justificação inicial.
Além disso, “em Cristo Jesus” o que importa é a “fé” (v. 6). Quando uma pessoa está em Cristo, nada mais é necessário. “Mas vocês são dele, em Cristo Jesus, o qual se tornou para nós, da parte de Deus, sabedoria, justiça, santificação e redenção, para que, como está escrito, ‘aquele que se gloria, glorie-se no Senhor’” (1Co 1.30). Por outro lado, é verdade que essa vida de fé é também uma vida “pelo Espírito” (v. 5), que, então, em nós, produzirá boas obras de amor, como veremos a partir do versículo 22. A fé por meio da qual recebemos a salvação também é receptora do amor de Deus, que será compartilhado pelo cristão.
A respeito da “fé que atua pelo amor” (v. 6), Lutero escreveu em seu Comentário aos Gálatas: “Quem quer ser um verdadeiro cristão ou pertencer ao Reino de Cristo precisa crer verdadeiramente. Mas não se crê verdadeiramente se as obras do amor não se seguem à fé. Assim ele exclui do Reino de Deus os hipócritas dos dois lados, à direta e à esquerda. À esquerda, exclui os judeus e os presunçosos de obras próprias, dizendo: ‘Em Cristo, nem a circuncisão, isto é, nenhuma obra, nenhum culto e, absolutamente, nenhum gênero de vida tem valor, mas, somente, a fé sem alguma confiança nas obras’. À [direita], exclui os ociosos, os inativos, os desocupados, que dizem: ‘Se a fé justifica sem as obras, então, não façamos nada, mas, tão-somente, creiamos e façamos o que queremos’. ‘Não é assim, ó gente ímpia’, diz Paulo”. Lutero continua: “A fé perante Deus é interna, e o amor ou as obras perante o próximo é externo, de modo que, assim, um homem é totalmente cristão, internamente, pela fé, perante Deus, que não necessita de
nossas obras e, externamente, perante os homens, aos quais a nossa fé de nada
aproveita, mas, sim, as nossas obras ou o amor”.
A partir do versículo 7, o contraste é apresentado entre Paulo e os falsos mestres. Paulo gostava de comparar a vida cristã a uma corrida, e ele pergunta quem havia impedido os gálatas de “obedecerem à verdade”, compreendendo que a fé leva a uma vida de obediência a Cristo. Mas parece que um obstáculo havia sido jogado na pista dos gálatas para desviá-los do caminho. Então, Paulo vai escrever sobre a origem da falsa doutrina, seus efeitos e seu fim. Ora, segundo o apóstolo, a mensagem dos falsos mestres era incoerente com a vocação dos gálatas (v. 8), cujo autor é o próprio Deus (“estão passando tão depressa daquele que os chamou na graça de Cristo”, 1.6). Ou seja, aquela doutrina não vinha da parte de Deus. Além disso, o erro dos falsos mestres estava se espalhando pela comunidade cristã de tal forma que quase toda a igreja estava sendo contaminada (v. 9). Paulo usa o mesmo provérbio em 1Co 5.6 (“um pouco de fermento leveda toda a massa”), mas para um pecado moral. Infelizmente, o mal e o erro têm a facilidade de se espalhar, porque encontram muita ressonância no ser humano, pecador!
Por causa disso, Paulo está disposto a resistir a falsa doutrina. Ele está certo de que o erro não vai triunfar, mas que os gálatas vão reconsiderar, e que os falsos mestres sofrerão a condenação de Deus (v. 10). Paulo estava tão preocupado com a destruição do falso ensino que expressa o desejo de que “se mutilassem” (v. 12) ou “se castrassem” (NTLH) os falsos mestres, como os sacerdotes de Cibele, a deusa pagã da Ásia Menor. Alguém pode até imaginar que Paulo exagerou. Será? Mesmo considerando as consequências desse falso ensino difundido entre os gálatas, como o afastamento de Cristo? Será que hoje, em nome do amor, não temos sido relativamente complacentes quando somos instados a nos posicionar a favor da verdade? Num mundo relativista como o nosso, o “progressismo cristão” se apresenta aparentemente cheio de amor. Pois bem, “ódio do bem” é o apelido irônico dado à postura que exige o amor dos outros, mas, ao mesmo tempo, se sente justificada no seu desamor, quando lhe for interessante. Aonde vamos chegar com tudo isso?
Parece que estavam acusando Paulo de defender as ideias dos judaizantes (v. 11), como se ele fosse a favor da circuncisão. Ele alega que se estivesse fazendo isso, sua mensagem não refletiria mais “o escândalo da cruz”. Ora, a mensagem da circuncisão é totalmente inofensiva e popular, porque é lisonjeira. Já a mensagem do Cristo crucificado é ofensiva ao orgulho humano, daí a razão de ela gerar tanta perseguição. Portanto, considerando que Paulo estava sendo perseguido, é difícil que ele estivesse pregando a circuncisão. “‘Eis que ponho em Sião uma pedra angular, eleita e preciosa; e quem nela crer não será envergonhado’.
Portanto, para vocês, os que creem, esta pedra é preciosa. Mas, para os descrentes, ‘A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a pedra angular’. E: ‘Pedra de tropeço e rocha de ofensa’” (1Pe 2.6-8). No capítulo 6 de Gálatas, Paulo escreve: “Todos os que querem ostentar-se na carne, esses querem obrigar vocês a se deixarem circuncidar, e agem assim somente para não serem perseguidos por causa da cruz de Cristo” (v. 12).
A oposição ou perseguição é uma característica do pregador verdadeiro. Os Isaques desse mundo estão sempre sendo perseguidos pelos Ismaéis. Os profetas do AT, como Amós, Jeremias, Ezequiel e Daniel, bem como os apóstolos do NT, descobriram essa verdade. Até hoje os pregadores cristãos que se recusam a distorcer ou diminuir o evangelho da graça de Deus têm algum tipo de sofrimento. As boas novas do Cristo crucificado continuam sendo “escândalo”, pedra de tropeço, ofensivas ao nosso orgulho, porque nos dizem que somos pecadores, rebeldes, sujeitos à ira de Deus, que só podem ser salvos por Jesus Cristo. Por outro lado, quem prega a “circuncisão”, os méritos e a suficiência do ser humano é quem escapa à perseguição e ganha popularidade, infelizmente.
Conclusão:
A nossa era é um tempo de tolerância. As pessoas gostam de aproveitar o melhor de tudo e detestam ter que escolher. Costuma-se dizer que não faz diferença o que as pessoas creem, contanto que sejam sinceras, e que é falta de sabedoria esclarecer demais a questão ou focalizá-la com demasiada severidade. Mas parece que a religião do NT difere dessa perspectiva mental. O cristianismo não nos permite ficar sentados em cima do muro, ou viver numa confusão mental. Ele insiste que tenhamos compreensão e posição, e que nossa decisão seja por Cristo, com todas as suas implicações. Coisa impossível era o que os gálatas estavam tentando fazer, ou seja, conciliar Cristo (graça) e a circuncisão (obras); e, portanto, ficar com os dois! Ora, Paulo mostra que esses caminhos são mutuamente excludentes! Por trás de nossa escolha se esconde a nossa motivação. Quando nos inclinamos a agradar a nós mesmos e aos outros, escolhemos o caminho da circuncisão. Mas diante da cruz só cabe a submissão e a humilhação. Que Deus tenha misericórdia de nós!
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