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Foto do escritorChristian Lo Iacono

Sermão do Monte - Parte I

E Jesus, vendo a multidão, subiu a um monte, e, assentando-se, aproximaram-se dele os seus discípulos;

E, abrindo a sua boca, os ensinava, dizendo:


Mateus 5:1,2 Quanto mais lemos os capítulos 5, 6 e 7 de Mateus, mais nos sentimos atraídos e, ao mesmo tempo, envergonhados por eles. Sua luz brilhante nos atrai como a lâmpada atrai para si a mariposa; mas a luz é tão brilhante, que seca e queima. Não há lugar para formas de piedade que sejam apenas “verniz e fingimento” aqui. O que é exigido é perfeição! Jesus diz: “Sejam perfeitos como é perfeito o Pai celestial de vocês” (5.48). O tema desses três capítulos é o reino do céu. “O reino do céu” é a expressão comumente usada por Mateus para se referir ao que outros autores do NT preferiram chamar de “o reino de Deus”. Mateus, como muitos judeus de seu tempo, evitava usar a palavra “Deus”. Para eles, era uma palavra muito sagrada, sublime demais; por isso, empregavam eufemismos, como “céu”, em seu lugar – daí “reino do céu”. Quanto ao significado, “reino do céu” é idêntico a “reino de Deus” (19.23-24; Mc 10.23-24). Watchmann Nee pensava diferentemente. Quatro observações talvez ajudem a esclarecer o sentido da expressão. Primeiro, a ideia de “reino”, tanto no AT como no NT, é sobretudo dinâmica, e não espacial. Não se trata tanto de um reino com fronteiras geográficas; a ideia principal aqui é a de “domínio e autoridade do rei”. Nas Escrituras, o significado espacial de reino é secundário e derivado. Em segundo lugar, embora o reino de Deus possa se referir à totalidade da soberania de Deus, não é isso que está em vista no Sermão do Monte. De fato, no sentido universal, o reino de Deus – sua soberania – é eterno e abrange tudo. Não há nada nem ninguém que esteja fora dele. A partir do momento da ressurreição e exaltação de Cristo, toda essa divina soberania passou a ser mediada por Cristo. O próprio Jesus ensinou: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra” (28.18). É a essa autoridade universal que Paulo se refere quando diz que é necessário que Cristo reine até que Deus tenha posto os seus inimigos debaixo de seus pés (1Co 15.25). Alguns, assim, se referem a esse “reino” como o reino mediador de Deus, porque a autoridade de Deus é mediada por Cristo. Contudo, não pode ser esse o “reino de Deus” a que o NT se refere com maior frequência. No Sermão do Monte, não são todos os que entram no reino do céu, mas só os que são pobres em espírito (5.3), obedientes (7.21) e extraordinariamente justos (5.20). Do mesmo modo, no Evangelho de João, apenas quem é nascido do alto pode ver o reino de Deus ou entrar nele (Jo 3.3-5). Como o reino universal, por definição, deve incluir todas as pessoas quer gostem dele, quer não, percebemos que o reino a que essas passagens se referem não pode ser universal. Existem condições a serem satisfeitas para que a entrada seja permitida. O reino que tem destaque no Sermão, e que é o reino pregado por Jesus, é uma parte do reino universal. Temos uma ideia do que esse reino significa quando comparamos dois versículos de Marcos: 9.45 e 9.47. O primeiro diz: “Se o seu pé o fizer pecar, corte-o. É melhor você entrar na vida aleijado, do que, tendo os dois pés, ser lançado no inferno”. O segundo diz: “Se o seu olho o fizer pecar, arranque-o. É melhor você entrar no reino de Deus com um olho só do que, tendo os dois olhos, ser lançado no inferno”. Entrar no reino de Deus, portanto, é entrar na vida. Esse é o vocabulário típico do Evangelho de João. Contudo, ele é encontrado no próprio Sermão do Monte. Esses três capítulos de Mateus tratam da entrada no reino (5.3, 10; 7.21), que equivale a entrar na vida (7.13, 14; 19.14, 16). Portanto, o reino do céu, nesse sentido restrito, é o exercício da soberania de Deus que tem ligação direta com os seus propósitos salvíficos. Todos os que estão no reino têm a vida; todos os que não estão no reino não têm a vida. Em outra passagem, Jesus conta uma parábola em que compara o reino de Deus com um homem que semeou boa semente em seu campo, mas depois viu ervas daninhas brotando por toda parte, semeadas por um inimigo (Mt 13.24-29, 36-43). É como se o reino, nesse ponto, englobasse tanto o trigo como a erva daninha; ou seja, o reino abrange tanto os seres humanos que têm a vida quanto os que não a têm. A mistura de trigo e erva daninha, que se vê agora no campo, um dia será separada; na hora da colheita, o joio é atado em feixes e queimado, e o trigo é recolhido no celeiro do dono (Mt 13.30). Essa ambiguidade nos ajuda a entender a passagem de Mt 8.10-12, na qual Jesus diz: “Digo-lhes a verdade, não encontrei ninguém em Israel com tamanha fé. Eu lhes digo que muitos virão do Oriente e do Ocidente e se sentarão à mesa com Abraão, Isaque e Jacó no reino do céu. Mas os súditos [filhos] do reino serão lançados fora, nas trevas, onde haverá choro e ranger de dentes”. Esperava-se que os judeus, que tinham o privilégio de ser os herdeiros da revelação do AT, fossem os “súditos [filhos] do reino”; mas Jesus afirma que na verdade muitas pessoas vindas do mundo inteiro se juntarão aos patriarcas no reino. Ele também adverte que muitos dos que esperavam ser súditos serão excluídos das alegrias do reino salvífico de Deus. Em terceiro lugar, a expressão “reino de Deus”, no sentido da salvação, aplica-se tanto ao presente quanto ao futuro. Os livros do NT enfatizam que o reino de Deus já chegou; uma pessoa pode entrar no reino e receber a vida agora, vida “em abundância” (Jo 10.10). O próprio Jesus argumenta que, se ele expulsa os demônios pelo Espírito de Deus, então o reino de Deus já chegou (Mt 12.28). Contudo, os livros do NT insistem em que o reino será herdado somente no futuro, quando Cristo voltar. Embora já seja vivida agora, a vida eterna só será consumada naquele dia, em conjunto com uma renovação do universo de tal proporção que só pode ser descrita adequadamente como “novos céus e nova terra” (Is 65.17; 66.22; 2Pe 3.13; Ap 21.1; Rm 8.21ss.). Jesus conta algumas parábolas com o objetivo específico de eliminar da mente de seus seguidores quaisquer conceitos errados que os levassem a crer que a chegada plena do reino ocorreria sem demora nenhuma. Ele queria que eles pensassem o contrário: a chegado do reino em sua plenitude podia ainda demorar muito. Por exemplo, em uma parábola do Evangelho de Lucas (19.11ss.), Jesus fala de um homem de nobre nascimento que vai para um país distante e depois retorna. Esse homem só recebe total autoridade sobre um reino após sua volta. Jesus é esse nobre, e a consumação do reino aguarda seu retorno. Em quarto lugar, apesar de serem sinônimos, entrar na vida e entrar no reino não são sempre a mesma coisa. A própria ideia de “reino” como “soberania dinâmica” traz em si nuances de autoridade e submissão que em geral não vêm à mente quando falamos de “vida”. O reino de Deus fala da autoridade de Deus, mediada por Cristo. Portanto, fala igualmente de nossa submissão sincera a essa autoridade. É por isso que a passagem de Mateus 7.21-23 enfatiza tanto a obediência: “Nem todo o que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no reino do céu, mas somente aquele que faz a vontade de meu Pai, que está no céu. Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor’, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não fizemos muitos milagres?’ Então lhes direi claramente: ‘Nunca os conheci. Afastem-se de mim, vocês que praticam o mal’”. O reino de céu é, portanto, o tema principal do Sermão do Monte. No final de Mateus 4, temos conhecimento de que Jesus percorreu toda a Galileia “pregando o evangelho do Reino” (4.23). Sua pregação e as curas milagrosas atraíam grandes multidões. Por isso, o capítulo 5 de Mateus se inicia com as seguintes palavras: “Quando viu as multidões, Jesus subiu ao monte e se sentou. Seus discípulos se aproximaram dele, e ele começou a ensiná-los”. Ora, no Evangelho de Mateus a palavra “discípulo” não se refere necessariamente aos 12 apóstolos nem mesmo a crentes e seguidores fiéis. Pode se referir a alguém que está apenas seguindo e aprendendo naquele momento – sem referência ao seu nível de compromisso (Mt 8.21; Judas Iscariotes). Além disso, mesmo que às vezes se faça distinção entre “discípulos” e “as multidões” (Mt 23.1), podemos nos assegurar de que as multidões se aglomeravam com frequência para ouvir os ensinamentos destinados principalmente aos que mais desejavam aprender. Dentre as enormes multidões que se reuniam por todo o norte da Palestina, talvez uma multidão menor de “discípulos” tenha seguido Jesus até a sossegada região de colinas, no oeste da Galileia, para receber instrução mais profunda; e talvez cada vez mais pessoas se juntassem ao grupo, em parte porque a reputação de Jesus estava crescendo, e em parte porque uma multidão atrai outra. Essa maneira de entender o texto é confirmada pela conclusão do Sermão: “Quando Jesus terminou de dizer essas palavras, as multidões estavam maravilhadas com seu ensino” (7.28). Jesus chegou ao lugar que escolhera e “se sentou”. Naquela época, essa era a posição tradicional de um mestre numa sinagoga ou escola. Existem algumas observações a se fazer acerca dessas bem-aventuranças antes de examinar cada uma delas. Em primeiro lugar, “bem-aventurança” encontra-se traduzida nas versões mais antigas por “beatitude”, derivada do latim beatus (“abençoado”). “Beatitude” é termo oriundo de palavras estrangeiras, cuja melhor tradução é “bênção”. Embora algumas traduções modernas prefiram “feliz” (NTLH) do que “abençoado”, essa troca pode deixar a desejar. Os abençoados em geral são profundamente felizes, mas bênção não pode se reduzir a felicidade. Na Bíblia, o homem pode abençoar Deus, e Deus pode abençoar o homem. Essa dualidade nos dá uma pista sobre o significado desse termo. Ser “abençoado” significa, basicamente, ser aprovado, ter aprovação. Quando o homem abençoa a Deus, ele está aprovando Deus. É claro que ele não está fazendo isso como deferência, mas, sim, como um elogio, bendizendo e louvando a Deus. Quando Deus abençoa o homem, ele o está aprovando, e esse é sempre um ato de aproximação divina. Como esse é o universo de Deus, não pode haver bênção maior do que ser aprovado por ele. Temos de nos perguntar de quem é a bênção que buscamos com tanta diligência. Se a bênção de Deus significa mais para nós do que a aprovação dos nossos entes amados, por mais queridos que sejam, ou de colegas, não importando o quanto sejam influentes, então as bem-aventuranças falarão ao nosso coração muito profunda e particularmente. O tipo de bênção não é arbitrário em nenhum das 8 beatitudes. O que se promete em cada caso brota naturalmente (ou melhor, sobrenaturalmente) do caráter descrito. No versículo 6, por exemplo, aquele que tem fome e sede de justiça é saciado com justiça; no versículo 7, os misericordiosos obtêm misericórdia. A bênção está sempre relacionada com a condição. É preciso notar que duas bem-aventuranças prometem a mesma recompensa. A primeira diz: “Bem-aventurados os pobres de espírito, pois deles é o reino do céu” (5.3). A última diz: “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, pois deles é o reino do céu” (5.10). Começar e terminar com a mesma expressão é um recurso estilístico chamado inclusio. Isso significa que tudo se encontra entre as duas molduras, isto é, as duas expressões iguais, conforma-se ao mesmo tema, neste caso, o reino do céu. É por isso que as bem-aventuranças podem ser chamadas coletivamente de “as normas do reino”. O que é pobreza de espírito? Sem dúvida não é privação financeira nem necessidade material. Também não é pobreza de consciência espiritual, muito menos falta de coragem ou vigor. E certamente não quer dizer carência do Espírito Santo. A expressão parece ter surgido na época do AT. O povo de Deus muitas vezes era chamado “os pobres” ou “os pobres do Senhor” por causa de sua extrema carência econômica. Essa pobreza em geral era resultante de opressão. Algumas palavras hebraicas usadas para “pobre” também podem significar “inferior” ou “humilde”: a associação das duas ideias é bem natural. Por exemplo, em Pv 16.19 lemos: “É melhor ser humilde de espírito com os humildes do que repartir o despojo com os orgulhosos”. A palavra aqui traduzida por “humilde” aparece em outras passagens traduzida por “pobre”, e tanto “pobre” como “humilde” se encaixam no contexto. Dois versículos de Isaías têm significado bem próximo da pobreza de espírito de que Jesus fala: “Assim diz o Alto e Sublime, que habita a eternidade e cujo nome é santo: Habito no lugar alto e santo, e também com o contrito e humilde [abatido] de espírito” (57.15); e: “Para esse homem olharei, a saber, ao humilde [aflito] e contrito [abatido] de espírito e que treme diante da minha palavra” (66.2). A pobreza de espírito é o reconhecimento pessoal da falência espiritual. É a confissão consciente da própria indignidade diante de Deus. Portanto, é a mais profunda forma de arrependimento. Ela é exemplificada pelo publicano que reconheceu sua culpa, num canto do Templo: “Ó Deus, tem misericórdia de mim, um pecador!” O que está retratado aqui não é um homem confessando que é ontologicamente insignificante ou sem nenhum valor pessoal, pois isso não seria verdade. Trata-se antes de uma confissão de que ele é pecador e rebelde e totalmente destituído de virtudes morais que o recomendem diante de Deus. Dentro desse quadro, pobreza de espírito vem a ser uma confissão geral da necessidade que uma pessoa tem de Deus, o humilde reconhecimento de impotência sem ele. A pobreza de espírito pode terminar com um Gideão derrotando as tropas inimigas, todavia começa com um Gideão que primeiro se reconhece incapaz de cumprir a missão e declara categoricamente que, se o Senhor não for com ele, prefere ficar em casa e debulhar grãos. A pobreza de espírito não pode ser induzida artificialmente pelo autodesprezo. Menos ainda tem em comum com a ostentação de humildade. Tampouco os de espírito arrogante, que cobiçam suas qualidades, conseguem imitá-la com êxito. Essas tentativas podem ter algum sucesso simbólico diante dos homens, mas jamais conseguem enganar a Deus. Na verdade, quase todos nós sentimos repulsa pela humildade fingida, seja a nossa própria, seja a dos outros! Suponho que não haja orgulho mais mortal do que aquele que se baseia em grande conhecimento, muita piedade exterior ou na presunçosa defesa da ortodoxia. Não estou com isso questionando o valor do conhecimento, da piedade ou da ortodoxia, mas apenas expondo os crentes professos ao pleno resplendor dessa bem-aventurança. O orgulho baseado em virtudes genuínas tem o maior potencial de levar o indivíduo a se iludir; mas nosso Senhor não há de permitir isso. Ele insiste na pobreza de espírito: o reconhecimento total, sincero, factual, consciente e consciencioso da nossa falta de valor moral diante de Deus. A pobreza de espírito é a forma mais profunda de arrependimento (Pv 3.7, NTLH). Não é de surpreender, portanto, que o reino do céu pertença aos pobres de espírito. Já no início do Sermão, descobrimos que não temos os recursos espirituais para pôr em prática nenhum dos preceitos do Sermão. Não podemos atingir os padrões de Deus por nós mesmos. Temos de nos apresentar diante de Deus e reconhecer nossa falência espiritual, esvaziando-nos de nosso senso de justiça própria, autoestima moral e vanglória pessoal. Uma vez esvaziados disso tudo, estamos prontos para que Deus nos encha, por meio de Jesus Cristo e de seu Espírito. Grande parte do restante do Sermão tem o propósito de retirar de nós esses autoenganos e promover a pobreza genuína de espírito. A sinceridade e a profundidade desse arrependimento são requisitos primordiais para entrar na vida.

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