Estamos começando outra vez a recomendar a nós mesmos? Ou será que temos necessidade, como alguns, de entregar cartas de recomendação para vocês ou pedi-las a vocês?
Vocês são a nossa carta, escrita em nosso coração, conhecida e lida por todos.
Vocês manifestam que são carta de Cristo, produzida pelo nosso ministério, escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas em tábuas de carne, isto é, nos corações.
E é por meio de Cristo que temos tal confiança em Deus.
Não que, por nós mesmos, sejamos capazes de pensar alguma coisa, como se partisse de nós; pelo contrário, a nossa capacidade vem de Deus,
o qual nos capacitou para sermos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do Espírito; porque a letra mata, mas o Espírito vivifica.
2 Coríntios 3:1-6
No sermão passado, vimos a importância da presença de Deus na vida do seu povo (Êx 33.15-16), desde o AT. Para o apóstolo Paulo, com a vinda do Espírito Santo para habitar a igreja, Deus cumpre três dimensões de sua promessa conforme o profeta Ezequiel (36.26-27; 37.14):
1. Deus dá ao seu povo um “novo coração” – o “coração de carne” substitui o “de pedra” (Jr 31.31-33) – e, para que isso seja possível, Deus lhe dá um “espírito novo” (Ez 36.26). Em Paulo, esse tema está refletido em 2Co 3.1-6, em que os coríntios são vistos como beneficiários da nova aliança, que está escrita “com o Espírito do Deus vivo... em tábuas de carne, isto é, nos corações” (v. 3). O próprio Paulo é o ministro dessa nova aliança, que não mais será firmada com “letra”, mas com o Espírito que “vivifica” (vv. 5-6). Esse mesmo entendimento está por trás das palavras de Rm 7.5-6 (“bem como da “circuncisão do coração pelo Espírito” em Rm 2.29 (Dt 30.6);
2. Esse “espírito novo” não é outro senão o Espírito de Deus, que capacita seu povo a seguir a sua palavra: “farei com que andem nos meus estatutos, guardem e observem os meus juízos” (Ez 36.27). Como se evidencia em Rm 8.3-4 e Gl 5.16-25, a vinda do Espírito é a resposta à pergunta sobre o que acontece à justiça se abolirmos a observância da Torá;
3. O Espírito de Deus também significa a presença do próprio Deus: “porei em vocês o meu Espírito, e vocês viverão” (Ez 37.14). De novo Paulo retoma esse tema em 2Co 3.5-6. Como o Espírito do Deus vivo, o Espírito supre para o povo de Deus a realidade essencial acerca de Deus. “O Espírito”, diz Paulo no contexto da nova aliança, “vivifica”, concede vida.
Assim também, a linguagem de 1Ts 4.8 (“Portanto, quem rejeita estas coisas não rejeita uma pessoa, mas rejeita Deus, que também dá o seu Espírito Santo a vocês”) é expressamente a de Ez 36–37. Toda rejeição da santidade por parte dos tessalonicenses é o mesmo que rejeitar ao Deus que “dá o seu Espírito Santo”. Se rejeitarem o chamado de Paulo a uma vida de santidade, estarão rejeitando a presença do próprio Deus santo, por meio de seu Espírito Santo. Podemos concluir que, para Paulo, Cristo efetivou, por meio de sua morte e ressurreição, a nova aliança para o povo de Deus; mas o Espírito é a chave para a nova aliança como realidade cumprida na vida do povo de Deus.
Os muitos textos de Paulo que falam do Espírito habitando no povo ou entre o povo de Deus estão relacionados com o tema da presença divina e com as passagens sobre a nova aliança no AT. Esse tema é encontrado primeiramente nos textos que identificam o Espírito dentro do crente. Ele é citado como estando “em vocês/nós” (1Ts 4.8; 1Co 6.19; 14.24-25; Ef 5.18). O local da presença “em vocês/nós” é o “coração” (2Co 1.22; 3.3; Gl 4.6; Rm 2.29; 5.5). E essa presença se transforma em “habitação” (1Co 3.16; 2Co 6.16; Rm 8.9-11; Ef 2.22).
1Co 14.24-25 e 2Co 6.16 são passagens esclarecedoras pelo fato de Paulo citar textos do AT que fazem referência a Deus habitando no meio de seu povo. Paulo agora vincula esses textos à presença do Espírito. Quando os pagãos se voltam para o Deus vivo porque seu coração foi tocado pelo Espírito, Paulo se refere a isso em 1Co 14.25 fazendo uso da linguagem de Isaías 45.14: “Certamente Deus está com você”. Assim também, na imagem do templo em 2Co 6.16, que pressupõe a presença do Espírito na vida da comunidade (1Co 3.16), Paulo entende que Deus está presente no meio de seu povo. Para defender essa ideia, ele recorre à linguagem da promessa da nova aliança citada em Ez 37.27: “O meu tabernáculo estará com eles; eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo”. Essa última passagem aponta para a suprema expressão da linguagem da habitação: o templo.
É primordialmente com a imagem do templo que Paulo se refere ao Espírito como presença renovada de Deus no meio do seu povo. Essa imagem ocorre quatro vezes em Paulo, três delas em harmonia com precedentes do AT (1Co 3.16,17; 2Co 6.16; Ef 2.22), em que Deus habita no meio do povo por meio do tabernáculo e do templo, e uma vez com base na nova aliança prometida (1Co 6.19-20), em que o “templo” é agora o corpo do crente, “que está em vocês, e que vocês receberam de Deus”. Assim, Paulo primeiramente liga o Espírito à imagem do templo no contexto da presença do Espírito no meio do povo de Deus. É assim que o Deus vivo está agora presente com seu povo, conforme fica mais claro em Efésios 2.22, no qual lemos que a igreja está sendo edificada para tornar-se um templo santo no Senhor; juntos, os crentes são edificados como “morada de Deus no Espírito”.
Aqui reside a importância de 1Co 3.16,17. As palavras introdutórias de Paulo, “vocês não sabem que são santuário de Deus [em Corinto]”, mais a discussão do contexto, deixam claro que o Espírito, cumprindo o tema do templo/presença de Deus, é a preciosa história que Paulo tem em mente. No contexto, ele está argumentando com aqueles que estão em vias de destruir a igreja em Corinto por causa do conflito em torno dos líderes em nome da sabedoria (meramente humana). Respondendo, Paulo passa das palavras sobre a insensatez de transformar em “senhores” servos meramente humanos (vv. 5-9) para palavras de advertência (vv. 10-15) dirigidas aos que estão liderando a igreja nessa direção desastrosa e, por fim, dirige-se à própria igreja, alertando-a sobre quem são eles como povo de Deus em Corinto – a saber, templo de Deus em Corinto.
O uso que Paulo faz da imagem do templo começa no v. 9 (“vocês [a igreja em Corinto] são... edifício de Deus”). O alicerce dos coríntios (o Cristo crucificado) havia sido lançado pelo apóstolo, mas na época da carta de Paulo estava sendo edificada uma superestrutura com material incompatível com o alicerce (madeira e palha, referindo-se ao fascínio diante da sabedoria humana e da retórica). Eles devem construir com material duradouro (ouro, prata, pedras de valor = o evangelho do Crucificado), imagem derivada da construção do templo de Salomão (1Cr 29.2; 2Cr 3.6). Em seguida, no v. 16, Paulo faz uma pergunta retórica: “Vocês não sabem que são santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vocês?” Como comunidade reunida, eles formavam o templo do Deus vivo, alternativa de Deus para os incontáveis templos pagãos em Corinto; e o que os havia transformado na alternativa divina era a presença do Espírito no meio deles.
Mas os coríntios estavam em vias de demolir o templo de Deus, porque o conflito e o fascínio com a sabedoria significavam que eles estavam excluindo de seu meio o Espírito revelador e unificador (Paulo está convencido de que o Espírito que eles receberam é também aquele que nos revela a sabedoria na “loucura de Deus”, a cruz (2.10; 1.18-25); em 12.13 ele declara que o Espírito faz de muitos deles, com toda sua diversidade, um corpo). Daí a mais forte das advertências: os responsáveis pela destruição seriam destruídos por Deus. Ele faria isso justamente porque seu templo, o lugar de sua presença, é santo; e “vocês, igreja em Corinto, são esse templo”. A igreja reunida é o lugar da presença pessoal do próprio Deus, por meio do Espírito. É isso o que distingue o novo povo de Deus entre “todos os povos da terra” (Êx 33.16).
Em todo o NT não há palavra mais importante do que essa no que diz respeito à natureza da igreja local! Ela é o templo de Deus na comunidade onde está presente; isso é assim somente pela presença do Espírito, por meio do qual Deus revisitou seu povo. Não surpreende, portanto, que Paulo tenha considerado a exclusão de um homem incestuoso da comunhão coletiva (eles não deveriam nem mesmo tomar as refeições com ele) como medida que acabaria por levar à sua salvação (1Co 5.1-13). Retirado do lugar da presença de Deus, o faltoso seria aparentemente levado ao arrependimento, de modo que pudesse ser salvo ao ser novamente acolhido pelo povo da Presença.
Essa ênfase sobre a igreja como templo de Deus e, portanto, a alternativa de Deus em face dos templos pagãos de Corinto, está igualmente alicerçada numa imagem idêntica em 2Co 6.16-7.1. Os membros da igreja devem afastar-se da idolatria de Corinto (repetindo a proibição de 1Co 8–10) e purificar-se de toda impureza, porque são o templo de Deus, lugar de sua eterna habitação em Corinto. Ao instar seus leitores em Ef 4.30, “não entristeçam o Espírito Santo de Deus”, Paulo usa a linguagem de Isaías 63.10, onde o conceito da presença divina com Israel no tabernáculo e no templo é equiparado ao “Espírito Santo de Yahweh”. Essa equiparação é a base da advertência de Paulo. A presença divina na forma do próprio Espírito de Deus, não de um anjo ou enviado, caminhou com o povo de Deus no deserto. Pelo Espírito Santo, a presença de Deus havia agora retornado a seu povo para nele habitar coletiva e individualmente, de forma que pudessem andar em seus caminhos. Portanto, Paulo insiste com os efésios para que não repitam o erro de Israel. Eles não devem, cometendo os vários pecados de discórdia que destroem a unidade do Espírito (4.3), entristecer a Deus, presente entre eles por meio de seu Espírito Santo.
Em 1Co 6.19-20, Paulo faz a notável transferência dessa figura da igreja para o crente como indivíduo. Assim, Deus não habita somente no meio de seu povo pelo Espírito, mas também individualmente pelo mesmo Espírito doador de vida. O significado dessa transferência de figura não nos deve passar despercebido. O contexto é de imoralidade sexual. A preocupação de Paulo é com a santificação do crente. Refletindo o pensamento da época, que fazia nítida distinção entre a esfera física, ou seja, da realidade material, e a esfera imaterial, invisível (dualismo helenístico), alguns coríntios estavam insinuando que o espírito humano não era afetado pelo que acontecia com o corpo, incluindo o envolvimento sexual com prostitutas. Mas Paulo não admite isso. O Deus que nos criou à sua imagem criou o corpo e também o espírito, e assim declarou que a ordem material deveria ser boa.
Nesse estágio final da discussão com eles, Paulo apela para a presença do Espírito na vida dos coríntios no contexto da obra salvífica de Cristo. Ao “comprá-los” para a glória de Deus, Cristo também comprou seus corpos, como testemunhado pelo Espírito Santo, de quem eles agora são templo, pois Deus habita não em templos feitos por mãos humanas, mas em templos edificados por suas mãos. Portanto, eles não se pertencem e não podem fazer o que bem entendem com o corpo. Eles pertencem a Deus, que os comprou por meio do sacrifício de Cristo e que agora habita neles por meio de seu Espírito. Nesse texto, bem como em 2Co 2.14–4.6, está o segredo da espiritualidade de Paulo e da compreensão que ele tinha do Espírito em sua vida. Ambos os textos finalmente se voltam para o homem exterior, isto é, o objetivo dessa dimensão da vida no Espírito não consiste simplesmente de contemplação, mas do comportamento ético gerado pelo Espírito. De modo algum a dimensão pessoal pode ser posta de lado. De fato, o primeiro local da presença de Deus na nova aliança são os indivíduos cuja existência ele santifica e marca com sua eternidade.
No entanto, como muitas vezes ocorre com as imagens em Paulo, elas podem, em vista de sua flexibilidade, assumir um caráter diferente em outro contexto. Parte de nosso acesso a uma compreensão adequada de 2Co 2.14–4.6 se dá outra vez por meio da combinação das figuras do tabernáculo/templo e da presença. Isso começa em 2.17, em que Paulo, validando seu ministério – em contraste com os que anunciavam outro evangelho – argumenta que faz suas alegações como alguém que “vive na presença de Deus”. Esse tema é então retomado em 3.7 e desenvolvido até o fim por meio do contraste de seu ministério com o de Moisés. Esse tratamento evolui finalmente para uma espécie de midrash (isto é, uma interpretação tradicional do judaísmo para uma passagem bíblica) sobre o fato de o rosto de Moisés estar coberto com o véu quando ele voltou da presença de Deus, ao passo que estava sem o véu quando entrou na tenda da Presença. Crentes são aqueles que agora se voltam para o Senhor, aqui equiparado ao Espírito do Senhor, chave para a presença de Deus nesta era. À semelhança de Moisés, mas agora por meio do Espírito, quando entramos no santuário, estamos sem o véu para contemplar a glória do Senhor.
O uso combinado das ideias de véu e Espírito é o que torna o argumento tão revelador; o Espírito da Presença removeu o véu, provavelmente aludindo também ao fato de que o véu separa a pessoa da presença de Deus dentro do templo. Pela vinda do Espírito, o véu é retirado tanto de nosso rosto como da Presença, para que possamos contemplar a glória do próprio Senhor na face do Filho de Deus, nosso Senhor Jesus Cristo. Paulo entra aqui no lugar santo. Pela presença do Espírito ele está agora atrás do véu na real presença de Deus, não somente contemplando sua glória em Cristo, mas sendo também transformado à semelhança de Deus de um grau de glória para outro. Aqui o clamor Aba evolui para louvor e adoração. Aqui também os filhos de Deus são transformados da semelhança de seu primeiro “pai”, o deus deste mundo que ainda cega o coração dos que não creem (4.4), na semelhança do próprio Deus (3.18). Portamos sua imagem em nossa presente existência do “já, mas ainda não”. Essa não é a única coisa que Paulo acredita que o Espírito esteja realizando em nosso mundo atual, mas ela é muito importante, e não seremos capazes de ter um bom entendimento de Paulo se não prestarmos muita atenção a ela.
Concluindo, para Paulo o Espírito não é meramente uma força impessoal, influência ou poder. O Espírito não é outra coisa senão o cumprimento da promessa de que o próprio Deus novamente estaria presente com seu povo. As implicações dessa verdade são consideráveis, não apenas no que diz respeito à compreensão de Paulo a respeito de Deus e do Espírito, mas também no que tange ao significado que, para nós, individual e coletivamente, tem o fato de sermos o povo de Deus. O Espírito é a própria presença pessoal de Deus em nossa vida e em nosso meio; ele nos conduz pelos caminhos da retidão por amor de seu nome; ele “está atuando em todas as coisas em todas as pessoas”; ele se entristece quando seu povo não reflete seu caráter para assim revelar sua glória; e ele está presente em nossa adoração quando cantamos “louvor e honra e glória e poder” a Deus e ao Cordeiro.
Cabe ao povo de Deus de uma época posterior como a nossa apreender uma vez mais essas realidades experimentando-as, para que de fato possamos captar o pensamento de Paulo. Talvez devamos iniciar reduzindo a importância de imagens impessoais (vento, fogo etc), por mais ricas que sejam no que concerne aos aspectos do ministério do Espírito, reordenando nosso pensamento para harmonizá-lo com o de Paulo, segundo o qual compreendemos e experimentamos o Espírito como a presença pessoal do Deus eterno em nós.
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