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Foto do escritorChristian Lo Iacono

Tal mestre, tal servo

Atualizado: 29 de out. de 2021

Porque me parece que Deus pôs a nós, os apóstolos, em último lugar, como se fôssemos condenados à morte. Porque nos tornamos espetáculo para o mundo, tanto para os anjos como para os seres humanos. Nós somos loucos por causa de Cristo, e vocês são sábios em Cristo. Nós somos fracos, e vocês são fortes; vocês são honrados, e nós somos desprezados. Até a presente hora, sofremos fome, sede e nudez; somos esbofeteados e não temos morada certa; e nos afadigamos, trabalhando com as nossas próprias mãos. Quando somos insultados, bendizemos; quando somos perseguidos, suportamos; quando somos caluniados, procuramos conciliação. Até agora, temos chegado a ser considerados lixo do mundo, escória de todos. 1 Coríntios 4:9-13  Introdução A frase final do versículo 8 prepara os contrastes do restante do parágrafo que estamos lendo, contrastes não só entre os coríntios e Paulo, mas também entre as ideias opostas que tinham do apostolado – e do discipulado. Paulo na verdade ainda não chegou ao tempo de reinar – o reino de Deus ainda é uma esperança futura –, e, por inferência, os coríntios também não. Paulo, então, expõe da forma mais dura a prova de que ele e os outros apóstolos ainda não começaram a reinar. Para tanto, ele emprega a imagem daqueles condenados a morrer na arena. Nós, os apóstolos, somos como eles – e diz –, e não como aqueles que têm lugar de honra nos camarotes. v. 9 Muitos entendem que “em último lugar” sugere os números finais dos espetáculos, cujos participantes eram os condenados a morrer, quer como gladiadores, quer como aqueles simplesmente lançados às feras. A NVI, por outro lado, entende a expressão como associada à entrada triunfal em Roma, em que um general conquistador oferecia um desfile esplêndido que incluía não só seu exército, mas também os despojos. Bem no “final da procissão” vinham aqueles cativos que haviam sido “condenados a morrer na arena”. Dessa forma, eles se tornavam um espetáculo (lit. “o que alguém assiste em um teatro”) à vista de todos. Visto que Paulo, também em conexão com seu apostolado, tornará a empregar essa imagem na próxima carta a eles (2Co 2.14), parece provável que isso também esteja em vista aqui. De todo modo, a metáfora é impressionante, tendo o propósito de iniciar a série com a mesma sensação de humilhação total com a qual ela terminará (v. 13). O escândalo da cruz é bem óbvio na maneira toda de Paulo ver seu próprio apostolado. Para ele, seu apostolado era verdadeiramente uma questão de “tal mestre, tal servo” (Mt 20.26-27). Ao que parece, o orgulho dos coríntios com seu nível espiritual incluía certa medida de constrangimento para eles pelo fato de Paulo não ter esse nível, para não mencionar a falta de sabedoria e eloquência dele. Da perspectiva deles, talvez fosse de duvidar que ele era um apóstolo muito importante. Desferindo um golpe final nesse orgulho, ele declara não apenas que é como alguém condenado à morte, mas que o espetáculo é para o mundo todo assistir. Aliás, com palavras que com certeza tinham o propósito de deixá-los pouco à vontade, Paulo diz que existe uma dimensão cósmica do espetáculo: ele está sendo exibido, por assim dizer, perante o Universo todo – não apenas perante os seres humanos, mas também perante os anjos. Parece que essa é a razão da referência a anjos, que, de outra forma, não seria plenamente compreensível (“anjos” são mencionados em outras três passagens: 6.3; 11.10; 13.1). v. 10 Paulo agora estabelece um forte contraste entre os coríntios e ele próprio (e outros apóstolos), de novo com absoluta ironia. A maioria dos coríntios não está entre os “sábios...fortes...[e] honrados”; mas está agindo como se estivesse. Em certo sentido, Paulo admitiria que eles estão, visto que estão “em Cristo”. Mas eles são todas essas coisas da maneira errada; como já anteriormente, o propósito dessa ironia, bem como da lista seguinte de tribulações (v. 11-13), é didático e apologético. A “teologia da glória” dos coríntios precisa dar lugar, por fim, à única que é cristã, a teologia da cruz. Ao mesmo tempo, eles precisam para de fazer pouco caso do apostolado de Paulo. O primeiro contraste deriva de forma direta do texto imediatamente anterior (v. 9), mas também repete os temas de duas seções anteriores (1.18-25; 3.18-19). O fato de os apóstolos serem espetáculo de dimensões cósmicas os torna “loucos por causa de Cristo”. No entanto, existe aí um claro duplo sentido: com isso, eles também refletem a verdade do evangelho, que é loucura aos olhos dos sábios do mundo. Por outro lado, os coríntios se encontram na “roda dos escarnecedores”: “vocês são sábios em Cristo”. O acréscimo de “em Cristo”, que provavelmente ocorre para contrabalançar o “por Cristo” da primeira frase, só aumenta a ironia. É verdade que eles estão “em Cristo”; mas estão perdendo Cristo totalmente de vista (2.6-16). Aqueles que estão em Cristo devem de fato ser “sensatos”, mas para Paulo isso significa aceitar a ideia que ele tem do evangelho, e não a opinião dos sábios do mundo, que não estão em Cristo. O segundo contraste também retoma os temas do argumento inicial (1.18-25), que são repetidos dois parágrafos adiante (2.3-5). “Somos fracos”. Esse é o problema da perspectiva coríntia (2.1-3). Mas aqui de novo há um duplo sentido: as fraquezas de Paulo refletem a “fraqueza de Deus”, que é exibida na cruz como seu poder salvador, e também (2.4-5) devem ser entendidas como os canais apropriados por meio dos quais o poder de Deus pode se manifestar. Por outro lado, “vocês são fortes!” À luz do que Paulo disse anteriormente acerca da posição social deles na época da conversão (1.26-28), essa é a ironia maior. É fato que eles não estão entre os poderosos e influentes em Corinto, mas, ao julgarem Paulo, estão se arrogando a posição de tais pessoas. No entanto, repetindo, em Cristo eles deviam estar entre os “fortes” de verdade, mas lamentavelmente não estavam. O conjunto final de contrastes é apresentado em ordem inversa, provavelmente para criar uma transição suave para o que vem em seguida (v. 11-13), que tratará apenas dos apóstolos. A mudança aqui em comparação com os “de nobre nascimento” (1.26) é digna de nota. Ele não poderia dizer que eles eram de nobre nascimento, justamente porque tão poucos deviam ser. Mas eles podem ser chamados de “os honrados”, em parte porque em Cristo isso é verdade – eles estão destinados à glória (2.7). Mas, com certeza, o título tem propósito irônico, visto que no caso deles a única “honra” é a honra que se atribuem. Os sábios do mundo, cuja teologia estão copiando, dificilmente dariam honra àqueles que constituíam a maioria da comunidade cristã em Corinto. Além de ser um jogo de palavras com a descrição anterior (1.26), esse contraste também ecoa a frase anterior. A posição em que Deus colocou os apóstolos, a saber, no final da procissão com aqueles condenados a morrer na arena, é a derradeira humilhação dos “desonrados”. Os coríntios, por outro lado, estariam entre aqueles na procissão ou na multidão, “os honrados”, que assistiriam à ida dos “desonrados” para a morte. Mas Paulo é “desonrado” apenas perante o mundo, que também desonra a Cristo – o que mais uma vez coloca os coríntios em posição de perigo. O restante da passagem passa a detalhar a natureza da “desonra” que cai sobre aqueles que carregam a mensagem da cruz. vv. 11-13 Agora, Paulo passa a falar franca e diretamente. Essa lista de tribulações, que esmiúça a “desonra” que acompanha o ministério apostólico de Paulo, reflete um fenômeno comum na Antiguidade. Essas listas podem ser encontradas em outras passagens do próprio Paulo (2Co 4.8-9; 6.4-5, 8-1-; 11.23-29; 12.10), em Hebreus 11.33-38, bem como em filósofos estoicos (Epiteto: “Mostre-me um homem que, embora doente, esteja feliz; embora em perigo, esteja feliz; embora moribundo; esteja feliz; embora condenado ao exílio, esteja feliz; embora em descrédito; esteja feliz. Mostre-os! Pelos deuses! Eu me alegro em ver um estoico!”). As listas podem ser encontradas em apocaliptistas judeus (2Enoque 66.6: “Andem, meus filhos, com paciência, com mansidão, com aflições, com angústia, com fidelidade, com verdade, com esperança, com fraqueza, com zombaria, com agressões, com tentação, com privações, com nudez, tendo amor uns pelos outros, até que vocês saiam desta era de sofrimento”). Também em Flavio Josefo (sumo sacerdote Anano: “Quando saqueados, vocês se submetem; quando espancados, ficam calados; nem pelos assassinados alguém ousa gemer audivelmente”). As listas também existem nos biógrafos e historiadores gregos, e nos gnósticos posteriores. O que Paulo tem em comum com essas listas é o fenômeno em si, além do uso esporádico de linguagem aqui e ali. O conteúdo dessa lista é adaptado tanto a suas circunstâncias de missionário do evangelho de Cristo quanto a seus embates com os coríntios. A grande diferença entre essa lista e as listas análogas de 2Co é a finalidade didática desta aqui. Essas palavras de conclusão formam uma unidade, começando e terminando com a mesma nota “até agora/até a presente hora”. Parece que esse é um contraste intencional com a escatologia ultrarealizada dos coríntios tratado no v. 8, de novo enfatizando as duras realidades da vida cristã entre as eras em contraste com o fato de eles terem começado a reinar. A lista está dividida em três partes: 1) uma relação de cinco itens bem comuns, que descrevem as privações e maus tratos sofridos pelo missionário (v. 11), aos quais se acrescenta um sexto item que parece ser uma área em que o comportamento de Paulo aborrecia os coríntios (v. 12a); 2) uma série de três antíteses, que descrevem as reações do apóstolo diante dos maus tratos recebidos (v. 12b, 13a); 3) uma metáfora final de humilhação, com propósito parecido com a metáfora anterior da “morte na arena” (v. 9), mas ainda mais pesada (v. 13b). Não há nada de extraordinário com a lista de itens comuns. Privações são um tema recorrente nessas listas. No entanto, aqui elas contrastam diretamente com os coríntios “fartos, ricos e reinantes” (v. 8). Fome e sede “até a presente hora” se opõem ao fato de eles “já” estarem saciados. “Nudez” (2Co 11.27; Rm 8.35) é o oposto de “já ser rico”. Os dois últimos itens podem parecer estar fora de ordem, visto que “não temos morada certa” tem relação com os três primeiros, ao passo que “esbofeteados” retoma um tema diferente. Mas esses são os dois temas desenvolvidos nos versículos seguintes. A palavra significa literalmente “golpear com o punho” (2Co 12.7: mensageiro de Satanás). Aqui parece denotar maus tratos em geral, embora também possa incluir lesões corporais, visto que a lista na carta seguinte (2Co 11.23-20) inclui explicitamente tanto golpes físicos quanto palavras de um tipo mais geral que infligem maus tratos. Por fim, ele lista a falta de “morada certa”, que os lembra da natureza itinerante dos missionários, os quais, dessa forma, declaram que aqui não possuem nenhuma residência permanente (Hb 11.13-16). Ser tratado com brutalidade e não ter onde morar dificilmente descreve os que “já estão reinando”. v. 12 O sexto item, “nos afadigamos, trabalhando com as próprias mãos” (v. 12a), parece deslocado, pois não se encaixa na mesma categoria de “dificuldades” como as demais. Provavelmente é incluído aqui por algumas razões. Pelo menos desde a missão em Tessalônica, aquilo que originariamente tinha sido uma necessidade havia se desenvolvido em uma manifestação deliberada de sua missão (1Ts 2.9; 4.11; 2Ts 3.6-13). Sabemos, com base nessa carta aos coríntios (9.4-18) e na seguinte (2Co 11.9; 12.13-17), que “trabalhar com as mãos” não apenas foi a prática de Paulo em Corinto, mas também havia se tornado ponto de discórdia entre os coríntios e o apóstolo. Assim, aqui ele lista isso como parte de suas “provações apostólicas”, para que saibam que o fato de ele os “privar” do privilégio de ajudá-lo estava de acordo, antes de mais nada, com a atitude geral de Paulo como discípulo do Crucificado. As três antíteses seguintes (v. 12b, 13a) vão além e expressam a reação de Paulo aos maus tratos. A pergunta que fica é se esse não é o jeito de Paulo indicar para os coríntios não apenas a resposta do apóstolo àquilo que eles vêm fazendo com ele, mas também o tipo de resposta que eles também precisam aprender. Esses são claros resultados do ensino de Jesus e prenunciam o tema da “imitação de Cristo”. “Quando somos insultados, bendizemos” reflete tanto o ensino (Lc 6.28) quanto o exemplo de Jesus (Lc 23.34). Esse tema ético é recorrente em Paulo (1Ts 5.15; Rm 12.17). Talvez tenha alguma relevância o fato de que o verbo “insultar” aparece, na forma de substantivo (“maldizente”), como um dos comportamentos que deve levar a dissociar-se do irmão que insiste nele (5.11). “Quando somos perseguidos, suportamos” não se encontra no ensino de Jesus, mas de novo reflete seu exemplo, especialmente em seu julgamento e crucificação. “Quando somos caluniados, procuramos conciliação” é parecido com a primeira antítese, e pode reforçar uma ideia de “súplica humilde” no sentido de que parem com a calunia e sigam a Cristo. v. 13 Por fim, Paulo conclui com a menos lisonjeira das metáforas, indicando a reação do mundo a esse modo de vida. Nós que seguimos a Cristo dessa forma – diz Paulo –, não recebemos os aplausos dos sábios do mundo. Pelo contrário, somos para eles “o lixo do mundo, escória de todos” (Lm 3.45). As duas palavras, que são praticamente sinônimas, se referem à “sujeira” que é removida no processo de limpeza, seja aquilo que é varrido do chão, seja o cascão que é retirado do corpo. Ambas as palavras vieram, portanto, a ser usadas metaforicamente para tudo aquilo que é desprezível. No entanto, muitos intérpretes entendem essas palavras como uma referência velada aos sofrimentos de Paulo como uma espécie de “sacrifício” (Pv 21.18); ou seja, como um da “ralé”, ele é, em suas fraquezas, uma espécie de “bode expiatório” para o mundo (com frequência Cl 1.24 é apresentado como exemplo). Mas isso não é provável. A mensagem de Paulo é singular. Em contraste com os coríntios, ele e seus colegas se parecem mais com o seu Senhor, o qual se encaixa bem na imagem do Servo Sofredor de Isaias 53.2b,3: “Não tinha boa aparência nem formosura; olhamos para ele, mas não havia nenhuma beleza que nos agradasse. Era desprezado e o mais rejeitado entre os homens, homem de dores e que sabe o que é padecer. E, como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele não fizemos caso”. Não é uma cena bonita, mas, com imagens fortes, essa lista oferece uma conclusão apropriada para o tema da loucura de Deus como mais sábia do que a sabedoria apenas humana. Paulo levava a sério que seus sofrimentos e fraquezas eram uma participação real no próprio Cristo. Para ele, o discipulado implicava comunhão nos sofrimentos de Cristo (Rm 8.17; Fp 3.10); mas isso não queria dizer que alguém tem que sofrer para ser discípulo de verdade. Seu próprio destino e o de muitos outros com ele implicavam grande sofrimento em consequência direta de pertencerem a Cristo. Tanto era assim que Paulo considerava que isso era a norma (1Ts 3.3; Fp 1.29). Mas, antes de mais nada, essa norma se baseava na grande inversão que Deus já havia operado na cruz. Esse texto é de difícil aceitação na igreja contemporânea, em especial a ocidental; ele é desconcertante. É preciso ter maior consciência sobre o lado coríntio desse texto. Tentamos geralmente nos identificar com Paulo quando, na verdade, provavelmente somos mais parecidos com os coríntios. Somos ricos, temos de tudo, e com frequência essa “abundância” nos deixa cegos para nossas reais necessidades e a dos outros. Talvez, se fôssemos mais parecidos com o Senhor, e nos posicionássemos mais claramente a favor dele e de sua justiça, saberíamos o que significa ser escória aos olhos das pessoas “belas” e “poderosas” do mundo. Que Deus nos dê do seu ouro refinado pelo fogo, para que sejamos ricos de fato; que Ele nos dê vestiduras brancas para cobrir a nossa nudez; e que Ele nos forneça colírio para os nossos olhos, para que possam ver. “Eu repreendo e disciplino aqueles que amo” (Ap 3.18-19). Amém!

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