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Foto do escritorChristian Lo Iacono

Vocação

Atualizado: 7 de mai. de 2020

Por não saber qual é a sua vocação e por perder de vista esse “sentido espiritual” de cada tarefa, a pessoa sofre de uma falta de sentido e de identidade no mundo.


Na oração do Pai Nosso pedimos que Deus nos dê o pão de cada dia. E Deus responde a essa oração na maioria das vezes por meios ordinários, através de diversas pessoas e suas atividades. Mesmo assim, afirmamos que é Deus quem “dá o sustento aos que o temem” (Sl 111.5) e mesmo aos que não o temem (Sl 136.25). Parece que Deus decidiu fazer essa provisão de modo indireto.


Deus poderia ter povoado a terra criando do pó cada nova criatura. Ao invés disso, resolveu criar novas vidas por intermédio da vocação de maridos e esposas, pais e mães (Sl 139.13). Através do cuidado amoroso dos pais, Deus estende seu cuidado às crianças. A vocação de médico também é uma maneira de Deus curar, embora Ele também possa fazer isso direta e extraordinariamente, obviamente.


Mesmo a leitura que fazemos da Bíblia, que tanto nos abençoa, acabou um dia sendo mediada por um professor, que nos ensinou o português. Deus nos dá beleza e significado mediante a expressão dos artistas. Ele leva pessoas à salvação por intermédio de pregadores.


Ocorre que nem sempre o vocacionado entende seu papel assim. Cansaço, desânimo e outros desafios acabam sendo o que mais aparece. A ênfase de quem trabalha geralmente está no seu sustento. O trabalho parece sem sentido, pois parece que sobrevivemos para trabalhar.


Embora o trabalho seja uma bênção (Gn 2.15), depois da queda ele é fonte de fadiga e frustração: “em fadigas obterás dela [terra] o sustento durante os dias de tua vida. Ela produzirá cardos e abrolhos... No suor do rosto comerás o teu pão” (Gn 3.17-19). Assim, as coisas deveriam transcorrer bem, com os seres humanos cooperando mutuamente para o bem-estar de todos, mas o pecado mudou esse quadro: há fome em muitas casas; pais maltratam seus filhos; cônjuges se machucam; políticos exploram o cidadão; pastores distorcem a Palavra etc.


Por não saber qual é a sua vocação e por perder de vista esse “sentido espiritual” de cada tarefa, a pessoa sofre de uma falta de sentido e de identidade no mundo. Além da noção de que tudo o que fazemos é para a glória de Deus, o entendimento correto da vocação mostra como os cristãos podem influenciar a cultura e o seu dia a dia com a presença de Deus.


Vocação tornou-se com o tempo uma palavra associada a trabalho ou a alguma habilidade. Mas o termo vem da palavra latina para “chamada” e pode ser encontrado em textos que mostram como fomos chamados à fé (2Ts 2.14) ou como somos chamados para um serviço ou modo de vida (1Co 1.1, 2; 7.15-20). Na Idade Média, ter um chamado significava exclusivamente ter um trabalho na igreja. As demais atividades e ocupações da vida diária eram tidas como seculares. Até o casamento podia ser visto como um empecilho à vida religiosa. A retomada do sacerdócio universal dos crentes mostrou que os leigos também tinham suas vocações e, então, podiam contar com a bênção de Deus, já que a salvação é pela fé, e não por obras. Assim, todo trabalho foi visto como uma vocação sagrada, como uma oportunidade de se prestar culto a Deus e serviço ao próximo. Mesmo para os clérigos, a família foi vista como uma vocação legítima, longe de ser menos espiritual do que a vida celibatária.


Na Reforma houve uma transformação enorme na educação. Se agora era possível todo crente ler a Bíblia, ele precisaria ser instruído. Foi implementada a educação clássica liberal, iniciada pelos gregos e romanos para permitir a um cidadão livre desenvolver todos os seus talentos (liberal vem de libera, “liberdade”). A Reforma amplia essa educação para atingir as classes mais baixas e se revelar libertadora. O Catecismo Menor de Lutero, com sua “lista de deveres”, colocou a vocação no centro da instrução cristã de todo leigo. Calvino fez a mesma coisa, e os puritanos aplicaram a doutrina com uma intensidade tal que a cultura americana foi moldada por esse conceito.


É evidente que a doutrina da vocação foi acusada de ter gerado individualismos, embora os diferentes dons tivessem sido concebidos por Deus para servir melhor a comunidade. A Reforma também pode ter resultado numa “ética protestante do trabalho”, mas isso não aconteceu devido à pressão de se provar a eleição de uma pessoa por meio do seu sucesso neste mundo, como já afirmou Max Weber. A ética do trabalho surgiu da compreensão do sentido do trabalho e da satisfação e realização que resultam do trabalho humano comum quando visto pela ótica da doutrina da vocação. Na Reforma, a Igreja Protestante exerceu sua maior influência cultural, na arte, literatura, música, nas instituições. E hoje?


Cada cristão tem múltiplas vocações: no trabalho, na família, na sociedade, na igreja. Como posso servir a Deus no meu trabalho, especialmente se ele não for gratificante? Como descobrimos as nossas vocações? Será que o cristão deveria se envolver com a política, por exemplo? Lutero considerava a vocação como aquilo que Deus faz em nós e por nosso intermédio, ou seja, é uma área na qual podemos experimentar o amor e a graça de Deus nas bênçãos que recebemos dos outros e na maneira como Deus está agindo por nosso intermédio apesar das nossas falhas. Para Lutero a vocação é uma máscara de Deus, ou seja, Deus se oculta no local de trabalho, na família... Isso é um modo de descrever sua presença, num mundo em que as pessoas buscam a Deus em experiências místicas e milagres espetaculares. Encontrá-lo na vocação o faz, literalmente, voltar à terra; nos faz ver o quão perto Deus está de nós e como Ele transforma a vida cotidiana.


A verdade é que Deus transcende a criação, mas Ele também a governa: “Ele mesmo é quem a todos dá vida, respiração e tudo mais... não está longe de cada um de nós; pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos” (At 17.25, 27-28). A providência de Deus vem da mesma raiz da palavra “prover”, que indica não apenas o controle de Deus, mas o cuidado dele sobre tudo o que existe.

Lutero acreditava que Deus governa dois mundos: o reino espiritual, em que os pecadores chegam a uma vida de fé, no qual ele controla o coração deles e os prepara para a vida eterna; e o reino terreno, no qual ele governa tudo o que criou. A Palavra de Deus é o principal meio da graça que chega aos pecadores. Também os sacramentos do batismo e da Ceia são manifestações tangíveis do evangelho. Quando o pastor, chamado ao ministério, ensina a Palavra, proclama o evangelho, batiza e preside a Ceia, é o próprio Cristo que está ensinando, evangelizando, batizando e presidindo, por meio de “vasos de barro”. Assim também os reformadores pensavam que Deus tem seus instrumentos no reino material. Ele age por meio de leis naturais, da lei moral, da vocação.


Rm 13.1-6. Não há autoridade que Deus não tenha instituído. Assim, a autoridade de Deus encontra expressão na autoridade contida em certas vocações do ser humano. Aqui os governantes são instrumentos de Deus, de modo que o mal é restringido em suas ações, tornando a vida em sociedade possível. Em Rm 12.17-21, Paulo orienta os cristãos a não se vingarem pessoalmente, portanto. Logo, Deus usa os magistrados para nos proteger, inclusive os não cristãos. Is 45.1, 4-7: Deus era bem maior do que os israelitas pensavam, de modo que todos os imperadores estão sob seu poder. Ele “dá semente ao que semeia e pão para alimento” (2Co 9.10). Deus manda chuva para justos e injustos (Mt 5.45).


Embora a nossa salvação seja totalmente pela graça, por meio de Jesus, e pela fé somente, “somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10). Isso significa que Deus está agindo em nós para realizar as boas obras que pretende! O nosso relacionamento com Deus não tem nada a ver com as nossas obras. Mas o nosso relacionamento com os outros, sim. Para Lutero, é a fé que torna uma pessoa santa (Catecismo Maior). Deus não precisa das nossas obras, mas o nosso próximo sim. Assim cumprimos os 2 principais mandamentos: amamos a Deus porque ele nos amou primeiro (1Jo 4.10,19); e amamos o nosso próximo como Jesus nos amou. É nesse sentido que todas as vocações são iguais perante Deus. Costumamos falar que servimos a Deus, mas no reino espiritual é Deus quem nos serve (Mt 20.28). Na vocação, estamos servindo às pessoas, em amor.


Assim, a autosuficiência é uma ilusão, porque dependemos das outras pessoas. “Não é bom que o homem esteja só” (Gn 2.18). O próprio criminoso convertido é aconselhado a trabalhar “para que tenha com que acudir ao necessitado” (Ef 4.28). Na reciprocidade das vocações estamos sempre dando e recebendo. Essa é a dinâmica do amor. Mas como somos pecadores, na prática estamos voltados para nós mesmos, e não estamos amando o outro. Mesmo assim, através das vocações, Deus cuida de todas as coisas, atuando além de nossas vontades individuais.


Para o cristão, o amor ao próximo torna-se um sentimento consciente na medida em que a fé opera o amor. À medida que crescemos em Cristo as tarefas cotidianas podem ser motivadas pelo amor. Mas quem é o meu próximo? Deus também está oculto no nosso próximo, especialmente nos necessitados: os que têm fome, sede, ou estão forasteiros, nus, enfermos e presos. Jesus disse: “Sempre que o fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes” (Mt 25.40). A característica marcante da vocação não é a autoridade, mas o amor e o serviço. Nesse sentido, quando estamos amando o nosso próximo estamos amando a Cristo.


Mas, afinal, qual é a minha vocação? Em vez de escolhermos o que devemos fazer, a questão é o que Deus está me chamando a fazer. A vocação também pode mudar com o tempo. “O SENHOR empobrece e enriquece; abaixa e também exalta. Levanta o pobre do pó e, desde o monturo, exalta o necessitado, para o fazer assentar entre os príncipes, para o fazer herdar o trono de glória; porque do SENHOR são as colunas da terra, e assentou sobre elas o mundo” (1Sm 2.7-8).


A família que Deus usou para nos trazer ao mundo é a prova de que não escolhemos nossa vocação. Nem nossos pais nos escolheram. Nem mesmo um casal na verdade simplesmente escolhe um ao outro: é mais uma questão de ser escolhido, ou atraído. A própria conversão não depende de nossa escolha: “a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que creem no seu nome; os quais não nasceram da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1.12-13). “Aos que chamou, a esses também justificou” (Rm 8.30). Isso não significa que não tomamos decisões. Mas lembre-se: “o coração do homem traça o seu caminho, mas o SENHOR lhe dirige os passos” (Pv 16.9) – ou “mas quem dirige a sua vida é Deus” (NTLH). “Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito” (Rm 8.28). Nossa vocação vem de fora de nós mesmos. E ela não é futura, mas atual, porque sempre estamos desempenhando alguma vocação. Cuidado para não sermos obsessivos em relação ao futuro! Nossa vocação acontece em coisas bem comuns. Descobrir a nossa vocação é muito mais uma questão de descobrir onde Deus está.


A doutrina da vocação ajuda os cristãos a enxergar significado no trabalho. Em Gn 1.27-28, vemos que o trabalho dos seres humanos é uma imitação do trabalho de Deus (Êx 20.9-11), uma espécie de participação na criação de Deus e em sua criatividade. Depois da queda, quando Deus chamou o casal, eles se esconderam. Então, o ser humano passou a trabalhar debaixo de maldição, embora o trabalho seja uma virtude, mas maculado pelo pecado. Entretanto, a promessa de Gn 3.15 nos assegura uma salvação plena em Cristo. Mesmo assim, Jesus orou: “não peço que os tires do mundo, e sim que os guardes do mal. Eles não são do mundo, como também eu não sou. Santifica-o na verdade; a tua palavra é a verdade. Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo” (Jo 17.14-18).


A família é a mais básica de todas as vocações. A partir do casal, uma alma imortal passa a existir, um potencial cidadão dos céus. Os pais precisam ensinar a criança no caminho em que deve andar (Pv 22.6). Os pais são os principais responsáveis pela educação de seus filhos, embora a igreja também deva ajudar. Dt 6.7 nos mostra a importância da prática devocional em família, do diálogo bíblico e da oração.


A vocação do filho é amar seu próximo, no caso, seus pais (Êx 20.12). Lutero escreveu que os filhos precisam “compreender que o corpo e a vida que têm foram recebidos de seus pais e que foram alimentados e cuidados por seus pais, caso contrário teriam perecido inúmeras vezes em sua própria imundícia... Aqueles que olham para essa questão desse ângulo e pensam sobre isso irão espontaneamente prestar honra a seus pais e estimá-los como aqueles por intermédio dos quais Deus lhes tem concedido tudo de bom... Não devemos lhes negar honra por causa de suas falhas. Por isso não devemos julgá-los, sejam eles como forem, mas sim pensar na vontade de Deus, que criou o mandamento e ordenou que as coisas fossem como são” (Catecismo Maior). A autoridade, as prerrogativas e a presença divina pertencem à função, e não à pessoa que a exerce. Há uma diferenciação necessária entre a pessoa e sua função. “Se alguém não tem cuidado dos seus e especialmente dos da própria casa, tem negado a fé e é pior do que o descrente” (1Tm 5.8). Rejeitar a família é equivalente a rejeitar a Deus!


Deus também está escondido nas instituições seculares. Ser cidadão de uma nação é um chamado divino. Mesmo que o pecado tenha maculado essas instituições, Deus age por meio delas para conter o mal e prover as necessidades de suas criaturas. Além disso, todos os seres humanos possuem um senso moral que foi gravado nos corações: Rm 2.14-15. C. S. Lewis, em Abolição do Homem, mostra a universalidade da lei moral, juntamente com uma amostra transcultural de princípios éticos. Essa não é somente uma questão religiosa. O que faz alguém ser cristão não são as regras morais, mas a fé em Jesus Cristo. Por isso, o cristão, como cidadão, deve ser engajado moral e politicamente, em favor de valores contemplados nas Escrituras, para que se transformem em lei, para o bem de sua nação, embora ele não deva confundir esse papel com sua vocação de filho de Deus, que proclama o evangelho de Jesus, para que as pessoas nasçam de novo, pelo Espírito.


Na época da Reforma, pensava-se que nenhum cristão podia servir ao exército ou ser juiz, por exemplo, pois como o crente deve amar e perdoar aos inimigos, ele não poderia exercer esses ofícios. Em resposta, Lutero escreveu que se Deus pode tirar uma vida humana, Ele faz isso por meio de alguns ofícios. Assim, um soldado cristão está amando o seu próximo quando prende um criminoso ou o entrega ao algoz (na época). Esses ofícios, portanto, não devem ser confundidos com a vida pessoal do cristão e seu exercício da piedade. Por isso, logo antes de Rm 13.1-6 (que lida com a função dos governos), Paulo adverte o cristão para que pessoalmente perdoe e não se vingue (Rm 12.17-21), pois Deus fará isso por ele. Além disso, devemos obedecer às leis também por razão de consciência (Rm 15.5). Isso porque muitas leis humanas refletem a lei divina.


E quando as leis são injustas e cruéis? Ora, a vocação de um líder não é oprimir o seu povo, mas servi-lo. Mas o pecado corrompeu as instituições. Quando os israelitas pediram um rei, Samuel os advertiu: 1Sm 8.11-18*. Mesmo assim, sob o comando de Deus, Saul foi ungido rei (8.22; 9.15-17). Samuel estava certo. Grande parte do AT consiste de profetas denunciando as idolatrias, imoralidades e injustiças dos seus reis legítimos. Mesmo assim, Deus agiu através deles, inclusive com o estabelecimento da linhagem real que culminaria em Jesus Cristo, o Rei dos Reis. “Como ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do SENHOR” (Pv 21.1). As nações pagãs consideravam seus reis deuses (teocracias). Daí a dificuldade de os reis sofrerem críticas. Foi a tradição dos hebreus, que colocava os reis sob a autoridade transcendente de Deus, que tornou possível a crítica social. Mesmo assim, Pedro escreveu que o rei deveria ser honrado (1Pe 2.13-17).


O próprio Paulo apelou para os seus direitos como cidadão romano (At 22.25-29). Nos EUA, muitos desses cargos são ocupados em cerimônia solene, realizada com as mãos sobre a Bíblia, em que se jura submissão à Constituição. Alguns reis europeus são ungidos por um oficial da igreja. Já o ditador geralmente chega ao poder pela força. A Revolução Francesa guilhotinou os seus antigos governantes, aboliu a lei e instituiu um novo sistema legal à força. A Revolução Americana foi resolvida pela Tratado de Paris, no qual o próprio rei da Inglaterra garantiu a independência às colônias. Um líder não pode violar as leis de sua nação, nem mesmo as leis de Deus, embora isso ocorra na prática, o que acaba por deslegitimá-lo, considerando que toda autoridade procede de Deus.


A Reforma, enquanto insistia no dever dos cidadãos de obedecer aos seus governantes, colocou os príncipes luteranos contra o imperador e inspirou os ingleses puritanos a depor seu rei. “Os cristãos têm o dever de estar sujeitos aos magistrados e à lei e de obedecer a eles em tudo o que não envolva pecado. Mais importa obedecer a Deus do que aos homens” (Confissão de Augsburgo, art. XVI). Lutero acreditava que quando for necessário desobedecer às autoridades, os cristãos devem estar dispostos a aceitar a sua punição.


Os cristãos também possuem uma vocação na igreja. Ser cristão é um chamado: “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o seu propósito. Porquanto aos que de antemão conheceu, também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos. E aos que predestinou, a esses também chamou; e aos que chamou, a esses também justificou; e aos que justificou, a esses também glorificou” (Rm 8.28-30). Você foi chamado? Então, você foi predestinado, foi justificado e será glorificado. Ver 2Ts 2.13-14. Ver 1Ts 2.12-13. A Palavra de Deus é viva e eficaz (Hb 4.12), e não voltará a Deus vazia, mas fará o que lhe apraz e prosperará naquilo para o que foi designada (Is 55.11). Esse chamado visa nos levar ao arrependimento e à salvação pelo evangelho de Jesus Cristo. “O evangelho é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê” (Rm 1.16). Ele, por meio do Espírito Santo, faz brotar a fé nos corações. “Fiel é Deus, pelo qual fostes chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor” (1Co 1.9). O chamado não é apenas uma experiência subjetiva, nem uma voz interior. Ele vem de fora, do exterior para o íntimo do nosso ser. É a Palavra de Deus que vem a nós. É o evangelho, que nos anuncia a morte e a ressurreição de Cristo, para a nossa redenção.


1Pe 2.9-10. Somos chamados pela Palavra de Deus à igreja (“os que são chamados para fora”) de Cristo, inclusive à igreja local, visível, com todos os seus desafios. Além de estar presente em outras vocações, Cristo também está presente, de uma maneira especial, nos cultos da igreja: “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome” (Mt 18.20). Ele está presente em sua Palavra e na vida dos crentes, que, embora muitas vezes pareçam medíocres e nada especiais, são chamados a exercer o sacerdócio real.


A vocação do pastor também é um ofício importante. Cristo chama seu povo por meio da Palavra, que chega aos ouvintes pela pregação. “Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam coisas boas!” (Rm 10-14-15). Cristo age no trabalho do pastor, graças à Palavra que ele carrega e às consequências eternas do ministério. Assim como os pais nutrem seus filhos através de seus papéis, o pastor tem o encargo de nutrir os filhos de Deus como um instrumento, um vaso de barro, utilizado por Cristo, que, então, é quem enfim proclama o seu perdão por meio dos lábios do pastor. Por isso o pastor precisa pregar somente a Palavra de Deus! É claro que Cristo também age a despeito das imperfeições do pastor, por causa da vocação em si.


Cristo pediu a Pedro: “apascenta as minhas ovelhas” (Jo 21.17). Um pastor cuida de suas ovelhas, das desgarradas, das rebeldes, alimentando-as com a Palavra de Deus e protegendo-as dos lobos. É claro que o verdadeiro Pastor é Cristo (Jo 10.1-16). Mas Ele usa os pastores terrenos no seu pastorado. Em At 6.1-4, verifica-se que a igreja é uma comunidade de fé, não só um lugar para onde se vai aos domingos, por alguns minutos. E logo no começo, essa igreja já apresenta seus desafios. Então, os apóstolos perceberam que estavam negligenciando sua principal vocação: a pregação da Palavra de Deus! Assim, alguns irmãos foram escolhidos para atender às necessidades mais práticas e administrativas da comunidade dos crentes. Muitas igrejas hoje adotam modelos de negócios para a sua gestão. O pastor acaba trabalhando mais como um executivo, gerindo bens, serviços, orçamento etc, e esquecendo-se da pregação e do ensino da Palavra de Deus. Não é bom pra ninguém a atuação fora da vocação.


A doutrina da vocação traz a vida espiritual literalmente para a terra. Porém, é possível pecar contra a vocação. No seu Catecismo Maior, Lutero recomenda à pessoa que, ao se preparar para confessar os seus pecados, “reflita sobre o modo como tem vivido à luz dos 10 Mandamentos: quer como pai, mãe, filho, filha, senhor, senhora, servo; se tem sido desobediente, infiel, preguiçosa ou relaxada; tenha ferido alguém por meio de palavra ou ato; tenha roubado, negligenciado, desperdiçado ou danificado qualquer coisa” (360). O modelo de confissão que ele apresenta é o seguinte: “em especial, eu confesso que não tenho cuidado dignamente do meu filho(a), dos membros da minha casa, e do meu esposo(a) para a glória de Deus. Eu tenho xingado, amaldiçoado, sido um mau exemplo por meio de atos e palavras indecentes; tenho prejudicado o meu próximo, falado mal dele, tenho cobrado acima do mercado, vendido mercadorias de qualidade inferior e enganado no troco” (361). Uma vez que o objetivo da vocação é amar ao próximo e servi-lo, deixar de fazê-lo é pecar contra a vocação.


Os policiais são vocacionados por Deus para proteger os cidadãos, não para espancá-los injustamente. Os negociantes não são chamados para trapacear os seus clientes. Os artesãos que fazem um trabalho mal feito, os jornalistas que escrevem mentiras, artistas que desperdiçam o próprio talento fazendo pornografia – pecam contra a vocação. Assim, práticas como a eutanásia e o aborto não fazem parte da vocação do médico, nem da vocação do pai ou da mãe. E como fica o doador anônimo de esperma (nos casos de infertilidade) quanto à sua vocação de pai, considerando que ele provavelmente nem mesmo conhecerá a criança gerada?


Nós temos uma vocação para servir em nossas igrejas locais, mas é preciso ressaltar que as nossas assim chamadas vocações “seculares” são santas vocações, com as quais devemos servir ao nosso próximo e viver a nossa fé. “Se você faz as suas tarefas de casa”, Lutero disse às suas servas, “isso é melhor do que a santidade e a vida austera de todos os monges” (Catecismo Maior, 406). Às vezes fazemos tanta atividade eclesiástica que negligenciamos nossa família e nosso trabalho. É correto, por exemplo, a mãe reclamar por ter que atender o seu bebê que chora porque ele supostamente estaria “roubando” o seu momento devocional? Ora, uma mãe, ou um pai, cuidar do seu bebê é algo espiritual! Mesmo assim, “na visão de Deus, é a fé, na verdade, que torna uma pessoa santa; somente ela serve a Deus, enquanto nossas obras servem aos outros” (Catecismo Maior, 406).


Não é só o pecado que dificulta o exercício de nossa vocação. As provações e tentações também. Desânimo, cansaço e baixa autoestima acabam fazendo parte do nosso dia a dia. E tentações ocorrem no casamento (cobiça), no exercício “bem sucedido” de alguma vocação (vaidade). Perde-se a noção da vocação como serviço ao outro, fazendo-se um caminho de idolatria de si próprio, de auto suficiência, à parte do evangelho de Cristo. Por isso, é importante que o cristão esteja consciente de suas fraquezas no desempenho de sua vocação e, assim, reconheça a sua dependência de Deus. Isso dá a ele empatia pelo próximo e um desejo de servi-lo em amor. A oração “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje” não significa que Deus não nos alimentará se não orarmos; mas a oração nos torna conscientes da provisão de Deus e se transforma em ações de graças. Quando percebemos que Deus está por trás de nossas vocações descansamos. “Ande cada um segundo o que o Senhor lhe tem distribuído, cada um conforme Deus o tem chamado” (1Co 7.17).




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